Ideologia
e Razão de Estado nas páginas da Bíblia
O texto a seguir é o Cap. VI de meu trabalho de Pós-Doutorado
A Razão de Estado pode
ser verificada no conceito de Maquiavel de que ao príncipe não importa “incorrer na fama de ter certos defeitos,
defeitos estes sem os quais dificilmente poderia salvar o governo, pois que, se
considerar bem tudo, encontrar-se-ão coisas que parecem virtudes e que, se bem
praticadas, lhe acarretariam a ruína, e outras que poderão parecer vícios e
que, sendo seguidas, trazem a segurança e o bem-estar do governante”.
E Napoleão, ao comentar a afirmação de Maquiavel de que “la grandeza de los crímenes borrará la
vergüenza de haberlos cometido”, afirma: “Triunfad siempre, aunque sea por los peores medios, y siempre os darán
la razón”.
Há diversos textos
bíblicos que demonstram interesses ideológicos, ardis e traições nas relações
políticas, nalguns dos quais os autores, além de darem a sua leitura ou
interpretação dos fatos, incluem também seus interesses ideológicos e
políticos.
Isso nos leva a observar
que, de acordo com várias narrativas bíblicas, essa forma de pensar e de agir
já estava presente, tanto no nascente povo de Israel quanto em seus vizinhos.
Esse tipo de pensamento parte de uma interpretação realista da História e da Política,
e se orienta para evitar, no presente e no futuro, os erros do passado. E assim
como a natureza tem suas leis, comparativamente, a ação humana, especialmente
na área da Política, tem as suas, podendo-se ampliar o uso da expressão “essa é
a natureza das coisas” para a área da Política.
Por isso, mesmo em Israel,
quando se tratava da Política, chegou-se a prescindir de ideais morais
consagrados, como o do amor ao próximo como a si mesmo, o qual já está presente
no Livro do Levítico, no Antigo Testamento. E assim, mesmo entre os atores
políticos do povo de Deus observa-se que, de acordo com diversas narrativas
bíblicas, predomina o resultado em lugar dos ideais morais e o pensamento
conduz-se de forma pragmática, isto é, a razão é instrumentalizada em função do
resultado, e não seria exagero dizer que aquilo que é conhecido como Razão de
Estado, mesmo antes desse conceito surgir na História da Política, já era
colocado em prática, não só por Israel, mas também por outros povos, sejam seus
vizinhos ou não, posto que faz parte da Política em geral. Por outro lado, isso
é contraposto pela pregação dos profetas e por suas advertências aos reis de
Israel e de Judá, de tal forma que, se por um lado, a violência de Israel
contra os moradores de Canaã é justificada teologicamente, por outro lado,
depois de Israel ter sido constituído como povo, seus reis, fossem do Reino do
Norte (Israel), ou do Sul, eram advertidos pelos profetas devido à sua
impiedade (diante de Deus) e à sua injustiça (diante dos cidadãos).
Em
primeiro lugar, observamos nas narrativas do Antigo Testamento que era comum,
entre os ministros, conselheiros e outros oficiais dos reis a adulação e a
busca da aprovação de decretos visando interesses pessoais, o que é narrado
tanto no Livro de Ester quanto no
Livro de Daniel. No caso do Livro de Ester, o ministro Hamã paga uma alta
quantia em tesouros de prata para que o rei Assuero aprove um decreto para a
aniquilação dos judeus. Trata-se de um suborno, visando à matança dos judeus, o
qual o rei aceita.
Quanto
ao Livro de Daniel, nele narra-se a
aprovação de um decreto de culto ao Rei Dario, decreto esse feito claramente
com a finalidade de condenar à morte Daniel, que era o mais sábio conselheiro
da corte. Sabendo que Daniel não deixaria de cultuar o Deus de Israel, seus
adversários convenceram o rei a autorizar um decreto que dispunha que qualquer
pessoa que fosse flagrada cultuando a outro “deus” seria condenada à morte,
sendo lançada na cova dos leões. O caráter de adulação contido nessa proposta
feita ao rei pelos opositores de Daniel era óbvio, porém foi aceito pelo
envaidecido rei, que teve uma grande estátua levantada em sua homenagem, não só
cívica, mas também religiosa. E quando Daniel foi condenado à morte o rei não
podia mais voltar atrás, pois não era assim que se fazia entre os medos, e o
próprio rei desejou a Daniel que o Deus de Israel o livrasse.
O
conteúdo teológico dessa narrativa reforça o cumprimento do primeiro
mandamento: “Não terás outros deuses diante de mim”, bem como incentiva o povo
cativo a manter-se fiel à Aliança com o Deus de Israel.
Em segundo lugar, observamos que
também pelos reis de Israel era feito esse tipo de manipulação dos decretos em
seu próprio favor. O próprio Salomão usou desse expediente, de forma ardilosa,
para condenar a Simei, que havia ofendido a honra de seu pai, o rei Davi, ao
praguejar contra ele. Já idoso, Davi incumbe a Salomão de vingá-lo, dizendo:
“Não o tenhas por inculpável, pois és homem prudente e bem saberás o que lhe
hás de fazer para que as suas cãs desçam à sepultura com sangue”.
Nessas palavras de Davi: “bem saberás o
que lhe hás de fazer” está clara a declaração de morte de Simei, por quem Davi
havia jurado pelo Senhor que não o mataria. Então, foi um falso juramento, pois
ele delegou a Salomão a morte de seu súdito.
Então
Salomão proibiu a Simei de sair da cidade de Jerusalém sob pena de, no dia em
que o fizesse, seria morto, por ter desobedecido a um decreto real. O homem,
porém, ao cabo de três anos, tendo dois escravos foragidos, saiu em sua busca
e, ao retornar, foi morto. E Salomão ainda argumentou que Simei não guardou o juramento do Senhor, nem a
ordem que ele, o rei, lhe dera, justificando assim sua estratégia para manter a
hegemonia.
Este Davi é o mesmo homem de quem
Paulo disse, em pregação em Antioquia da Pisídia, que dele falara o Senhor:
“Achei Davi, filho de Jessé, homem segundo o meu coração, que fará toda a minha
vontade”. E
por isso ele é citado até hoje pela tradição cristã como o homem “segundo o
coração de Deus”.
E Salomão, que foi exaltado nos textos
do AT como o mais sábio de sua época, politicamente tratava a “sabedoria” de
forma pragmática e astutamente. Cristo parece zombar dos textos laudatórios do
AT sobre a sua glória, afirmando: “Considerai como crescem os lírios do campo: eles não trabalham, nem
fiam. Eu, contudo, vos afirmo que nem
Salomão, em toda a sua glória, se vestiu como qualquer deles”. E quanto à
sua sabedoria disse: “E eis aqui está quem é maior do que Salomão”.
Outra narrativa bíblica que pode ser
lida na perspectiva da Razão de Estado, e talvez até antecipando esse conceito,
é aquela sobre Eúde, um do juízes de Israel, que para vencer os moabitas mentiu
ao seu rei de duas formas. Primeiro, disse: “Tenho uma palavra secreta a
dizer-te, ó rei”. A seguir, tendo sido recebido em audiência particular, disse:
“Tenho a dizer-te uma palavra de Deus”.
Porém, ele assassinou o rei com um golpe
de punhal, e depois disso venceu os moabitas, levando Israel a ficar em paz por
80 anos. Essa suposta palavra de Deus, porém, era um ardil, ele agiu como falso
profeta, e depois ainda disse aos filhos de Israel: “Segui-me, porque o Senhor
entregou nas vossas mãos os vossos inimigos”.
Se fizermos uma leitura dessas e de
determinadas outras narrativas bíblicas sob a perspectiva da estratégia política
e bélica, portanto, verificaremos que o conceito de Razão de Estado, que é
usado a partir da Renascença, mas que já está presente na obra de Tácito Roma,
na realidade já estava presente, na prática, na Política do Oriente Próximo,
não só na opressão faraônica sobre os hebreus, mas também na própria estratégia
de José, hebreu que levou todo o Egito a tornar-se escravo de Faraó, bem como,
conforme vimos nos exemplos acima, na História de Israel e de outros povos.
Concluamos essa
breve abordagem da presença Razão de Estado em fatos narrados na Bíblia fazendo
uma comparação entre um texto do AT e um do Evangelho.
Vejamos o caso
de Moisés, narrado no Êxodo. Apesar dos elementos mitológicos e idealizados
dessa narrativa, Moisés é reconhecido como um personagem verdadeiro da
História. Por ter liderado por 40 anos um povo que não tinha território,
Rousseau o considerou um grande líder da antiguidade, e Freud afirma que
Moisés, por ter comandado 600 mil homens no deserto, era mais que um líder
sacerdotal, podendo ser considerado como um General formado pelo Egito.
Em torno dele
havia uma esperança de caráter religioso e político. Nesse caso, a religião era
uma ameaça à hegemonia, e poderíamos constatar, como reação, um dos primeiros
registros de uma Razão de Estado por parte do rei egípcio que reinou após a
morte de José. Para livrar-se da ameaça de um futuro libertador hebreu, o rei
ordenou que os meninos recém-nascidos fossem mortos. O texto afirma que “o rei
do Egito ordenou às parteiras hebreias, dizendo: Quando servirdes de parteira
às hebreias, examinai: se for filho, matai-o; mas se for filha, que viva”.
As parteiras
deveriam logo afogar a criança no Rio Nilo, caso fosse do sexo masculino.
Porém, por temor a Deus, não obedeceram a essa ordem homicida, e logo o rei do
Egito mudou sua estratégia, como diz o texto: “Então ordenou Faraó a todo o seu povo, dizendo: a todos os
filhos que nascerem aos hebreus lançareis no Nilo, mas a todas as filhas
deixareis viver”.
Dessa forma, a
perseguição passaria a ser praticada pela própria população, não só pelas
autoridades. Mas o menino Moisés adentra o palácio como filho adotivo de uma
princesa, é educado como príncipe e posteriormente liberta seu povo de origem. Em relação à perseguição ao futuro
libertador, há semelhanças entre essa narrativa do Êxodo e a narrativa do
Evangelho de Mateus sobre o nascimento de Cristo, que foi interpretado por
Herodes como uma ameaça à sua hegemonia. De acordo com o Evangelho, o rei da
Judéia, procurando eliminar a ameaça de um futuro rei dos judeus, “mandou matar
todos os meninos de Belém e de todos os seus arredores, de dois anos para
baixo”.
Aí também já se
pode verificar o uso da Razão de Estado, a qual é tão contraditória e
oportunista que admite que a autoridade civil se proclame como uma divindade ou
um filho dos deuses e, ao mesmo tempo, mande assassinar crianças recém-nascidas.
Ap
esar da
expressão “Razão de Estado” ser própria do século XVI, o conceito é aplicado a
Nero na obra Quo Vadis?.
Assim, o autor de obra tão conhecida na área de Literatura está, na realidade,
falando de Política, criticando o Estado Romano e
denunciando a submissão do pensamento a objetivos
políticos, independente dos padrões morais, por exemplo, quando afirma que para
César “os cristãos, posto que não tivessem incendiado Roma, deviam ser
exterminados a bem da cidade”, e que “o massacre se justificava pela
razão de Estado”.
A
obra também atribui a Nero a afirmação de que “os atos de um homem podem ser
cruéis, quando o homem não o é”.
E um dos mais leais servos de Nero, líder da Guarda Pretoriana,
Tigellinus, teria dito: “Não existem razões
em ordens imperiais”.
Quanto
à sociedade grega, ela era, sem dúvida, pia, mas em alguns casos o sentimento
religioso chegava à superstição e ao fanatismo, sendo também associado à
política de forma dogmática. Plutarco afirma, no volume das Vidas Paralelas dedicado a Alexandre e César, que em seus dias
finais, Alexandre, na Babilônia, tinha a seu serviço inúmeros sacerdotes, de
diferentes religiões, possivelmente devido à consciência de sua violência e ao
sentimento de culpa. Nesse contexto, o historiador afirma que o fanatismo é
pior do que a falta da religião.
Por
outro lado, o dogmatismo na política e na religião pode ser verificado na
condenação de Sócrates, que foi acusado de não venerar os deuses da cidade de
Atenas. Essa ligação entre a cidade e os deuses chega ao extremo de o apóstolo
Paulo, séculos mais tarde, ter sido levado ao Areópago sob a acusação de pregar
estranhos deuses. O que os seus ouvintes, marcados pelo politeísmo, chamavam de
estranhos deuses eram simplesmente Jesus e a Ressurreição.
Causa estranheza o fato de estarem,
entre aqueles que constrangeram Paulo a explicar a nova doutrina no Areópago,
alguns filósofos:
“E alguns
dos filósofos epicureus e estóicos contendiam com ele, havendo quem
perguntasse: Que quer dizer esse tagarela? e outros: Parece pregador de
estranhos deuses, pois pregava a Jesus e a ressurreição. Então, tomando-o consigo, o levaram ao
Areópago, dizendo: Poderemos saber que nova doutrina é essa que ensinas?”.
Dessa
forma, o dogmatismo pode ser encontrado nos membros das próprias escolas
filosóficas citadas, que participaram do constrangimento imposto a Paulo. Foi
no Areópago, chamado “Monte de Marte”,
um tribunal político e religioso, que muito tempo antes os juízes “acusaram a
Sócrates e o condenaram por impiedade”.
Apesar de Atenas
ser uma cidade politeísta, pelo que expusemos, era também dogmática. O apóstolo
Paulo reconhece que os atenienses eram religiosos, mas seu espírito se
inquietava com a idolatria ali reinante. O centro cultural da Grécia “era uma
das cidades mais idólatras de todo o império romano… Havia mais de 3.000 ídolos
na cidade”. No o I século da Era Cristã
havia um provérbio popular que dizia: “Há mais deuses do que homens em Atenas”.
E de acordo com Pausânias,
“havia mais ídolos em Atenas do que em toda a Grécia”.
No
Cap. XII do Leviatã Hobbes estabelece
uma crítica do uso que as autoridades dos gentios fizeram do medo e da piedade
dos povos, visando conter suas revoltas. Ele afirma que “os primeiros
fundadores e legisladores de Estados entre os gentios” procuravam convencer o
vulgo de que “os preceitos que ditavam a respeito da religião não deviam ser
considerados como provenientes de sua própria invenção, mas como os ditames de
algum deus”, bem como levava-os a crer aquilo que era proibido por lei
também aos deuses.
E
assim as próprias situações de desgraça e calamidade não eram atribuídas à
autoridade civil, mas sim a algum descuido ou erro cometido em relação aos
cultos, ou à própria desobediência às leis. Isso continha as rebeliões. Por
isso, conclui Hobbes, “assim se vê como a religião dos gentios fazia parte de
sua política”.
Isso
era muito comum em Roma, onde o próprio imperador se declarava divino e bastava
ele ordenar e um novo culto poderia ser instituído. O próprio imperador era
considerado, ideologicamente, como divino. Nero afirmava ser o sumo pontífice
da deusa Vesta. Em Roma também se adoravam inúmeros deuses. Venerar os
imperadores como deuses era o mesmo que considerar o Estado divino e, portanto,
não precisava haver razões nas ordens e nas decisões imperiais.
Certamente
a veneração de César como deus era feita por muitos por adulação, por medo ou
por interesse, não por convicção. E ao mesmo tempo em que eles se declaravam
sumos pontífices, eram, na realidade, pragmáticos, usando o sentimento
religioso como forma de preservação e aumento do próprio domínio.
Nas palavras de Hobbes citadas abaixo
observamos que em Roma todas as formas de culto eram aceitas, desde que não
ameaçassem o poder civil:
“Os romanos, que tinham conquistado a
maior parte do mundo então conhecido, não tinham escrúpulos em tolerar qualquer
religião que fosse, mesmo na própria cidade de Roma, a não ser que nela
houvesse alguma coisa incompatível com o governo civil”.
Por isso, prossegue Hobbes, o monoteísmo
judaico não era benquisto em Roma:
“Não
há notícia de que lá alguma religião fosse proibida, a não ser a dos judeus, os
quais (por serem o próprio Reino de Deus) consideravam ilegítimo reconhecer
sujeição a qualquer rei mortal ou a qualquer Estado. E assim se vê como a
religião dos gentios fazia parte de sua política”.
Isso é registrado no próprio Novo
Testamento, pois o Imperador Cláudio decretou que os judeus saíssem de Roma,
conforme descreve Lucas:
“Depois
disto, deixando Paulo Atenas, partiu para Corinto. Lá, encontrou certo judeu chamado Áqüila, natural do Ponto,
recentemente chegado da Itália, com Priscila,
sua mulher, em vista de ter Cláudio decretado que todos os judeus se retirassem
de Roma...”.
Os
judeus resistiram à ordem de Calígula de que no Templo de Jerusalém houvesse um
busto seu para ser adorado e foram às armas. Também se sentiram ultrajados com
o fato de Domiciano ter se intitulado “Senhor e Deus”, título com o qual
assinava os documentos oficiais, e de ter exigido que o cultuassem. Também os
cristãos se recusaram a obedecer a essa ordem e sofreram dura perseguição.
Em
todos os casos citados observamos que a soberania civil está acima de qualquer
outro valor, seja moral ou religioso, não só nos Estados politeístas, mas isso
veio a ocorrer também no próprio Israel.
Em
Hobbes, no entanto, apesar do caráter absoluto da soberania, o que vem em
primeiro lugar é o direito fundamental à vida, e o Estado tem como suprema
finalidade a preservação da paz e a saúde do povo, pois como diz a Introdução
do Leviatã: “Salus Populi é o seu
objetivo”, o que frequentemente é olvidado através de estereótipos de um Hobbes
da guerra de todos contra todos, do homem como lobo do homem, do Leviatã como figura que representa o
Estado absoluto etc. E saber que Hobbes afirma que quando o Estado não for mais
capaz de preservar a paz civil, não se lhe deverá mais obediência, pois foi
para isso é que ele foi concebido.
É
de se deduzir, portanto, que em seu pensamento, em lugar de uma defesa
ideológica da Razão de Estado, o que predomina é a defesa da autoridade civil
em prol da paz civil, não dos caprichos de um déspota como Nero, Calígula ou
qualquer outro.
Hobbes afirma que os ensinamentos dos
profetas, apóstolos e, posteriormente, do clero, serviam apenas como conselhos
para a autoridade civil, confirmando, assim a soberania do Estado e admitindo a
Razão de Estado.
Os cristãos foram ensinados a
obedecer à autoridade civil, por exemplo, por Cristo, que disse: “Dai, pois a César o que é de César e a
Deus o que é de Deus”. E ainda por Paulo, em sua I carta,
considerada autêntica pela Crítica, onde ele escreveu: “Pagai a todos o que lhes é devido: a quem tributo, tributo; a quem
imposto, imposto; a quem respeito, respeito; a quem honra, honra”. E
ainda por Pedro, que escreveu: “Tratai todos com honra, amai os irmãos, temei a
Deus, honrai o rei”.
Porém, quando se tratava de uma ordem civil contrária a um princípio de fé, os
cristãos eram ensinados a obedecer em primeiro lugar a estes.
Já no início de seu Evangelho,
Mateus dá a entender que nascera um novo rei, ao escrever que os magos
perguntavam: “Onde está o recém-nascido rei dos judeus?”. Essa pergunta era uma
ameaça política que, de acordo com a narrativa, levou Herodes a se alarmar e a
ordenar a morte de muitos meninos recém-nascidos. E o mesmo Evangelho se
encerra com a afirmação, atribuída a Cristo: “Toda a autoridade me foi dada no
céu e na terra”.
Essa última declaração, ainda que não fosse interpretada politicamente pelos
cristãos servia-lhes de motivação para, no caso de ocorrer alguma contradição
entre a sua fé e as ordens das autoridades civis, prevalecesse aquilo que se
entendia ser relativo ao Reino de Deus, e assim muitos cristãos desobedeciam à
autoridade, quer a religiosa, de Israel, quer a civil, de Roma. E a própria
expressão “
Reino de Deus” é uma
expressão com conteúdo político, a qual, porém, foi ideologizada pela Igreja,
depois de sua passagem do carisma para a institucionalização.
E também é claro que Lucas fazia
também uma dura crítica à violência do Império Romano, ao escrever: “Naquela
mesma ocasião, chegando alguns, falavam a Jesus a respeito dos
galileus, cujo sangue Pilatos misturava com
os sacrifícios que os mesmos realizavam”.
E as mensagens de esperança dadas
aos cristãos por Paulo, sem dúvida se referiam à perseguição judaica e romana.
Ele chegou a escrever, referindo-se a isso, que
nem a morte, nem os principados, nem os
poderes poderiam separar os cristãos do amor de Deus.
Os romanos admiravam-se e até mesmo
criticavam o fato dos cristãos não resistirem quando eram torturados e levados
à morte, e alguns até os consideravam sem virtude. Porém os cristãos chegavam a
crer, como Paulo escreveu que “o viver é Cristo e o morrer é lucro”.
Confessando,
assim, a Cristo como Senhor, acima do Estado, eram vistos como desobedientes e
como uma ameaça ao poder civil, e negando-se a venerar o imperador como
divindade, poderiam, de acordo o que Hobbes viria a escrever tanto tempo
depois, ser vistos como hereges e perturbadores da paz civil. Por isso, do
ponto de vista da Razão de Estado, alguma coisa deveria ser feita, mas não
necessariamente a perseguição e a condenação dos cristãos à morte, num
espetáculo público, devorados por feras, como tanto se viu no Coliseu, lugar
que dificilmente poderia ser considerado um ponto turístico em nossos dias,
para quem não crê nessa Razão que justifica o derramamento de sangue dos
discordantes. É que faltava a Roma a ideia de tolerância religiosa, de convívio
com o diferente, e de separação entre o Poder Civil e a Religião, a qual, se
efetivada, deveria manter, pela natureza das coisas, a soberania daquele, sem o
que a paz civil seria impossível, desde que, como diz Hobbes, esse grande homem
artificial cumprisse a sua missão, a de garantir nossa paz e defesa.
Porém, tanto tempo depois do declínio do Império Romano, a
paz completa não veio, e se nos dias antigos o Estado perseguia aos cristãos,
com o passar dos séculos a Igreja passou a perseguir e a matar os discordantes
de seus dogmas, querendo ser um Estado dentro do Estado, provocando a
desestabilização do poder civil e prejudicando a paz.
E foi nesse contexto que Hobbes escreveu Do Cidadão, Leviatã, Behemoth
e a Narração Histórica sobre a Heresia e
as Formas de seu Castigo, num contexto em que essa paz ainda não havia sido
alcançada, e esse é o objetivo que serve de norte e de base ao seu pensamento
político: a busca da paz civil.
A Razão de Estado dirá que o que importa são os resultados,
então, por que não colocar a paz civil como o resultado maior?
O texto de I Rs
2:36-46 pode assim ser sintetizado: “Mandou o rei chamar a Simei e lhe disse:
Edifica-te uma casa em Jerusalém, e habita aí, e daí não saias, nem para uma
parte nem para outra. Porque há de ser que, no dia em que saíres, fica sabendo
que serás morto. Ao cabo de três anos, porém, dois escravos de Simei fugiram
para Aquis. Então, Simei foi em busca dos seus escravos. O rei deu ordem a
Benaia, o qual saiu e arremeteu contra ele, de sorte que morreu”. (Bíblia:
Almeida Revista e Atualizada).
Henryk Sienkiewicz,
Quo Vadis? S. Paulo: Saraiva. 1949, p 257.
The Geneva Study
Bible, op. cit, cf. nota supra.