sexta-feira, 17 de dezembro de 2010

A Religião, o Conhecimento de Deus e o seu Reino em Hobbes: Uma Introdução.

Dedico este texto ao Rev. Assir Pereira, por sua humildade e dedicação ao Reino de Deus!

No Cap. XII do Leviatã Hobbes trata da Religião, mostrando que ela é peculair ao homem. Aí ele examina as Religiões dos Gentios, baseadas no medo, e mostra seu uso na política de forma oportunista, como se a vontade das autoridades civis fosse a vontade de Deus. Aí ele também trata da Religião dos que buscam as causas das coisas, os quais chegaram à concepção de uma causa não causada, à qual “os homens dão o nome de Deus”, o que, de acordo com o filósofo, foi reconhecido mesmo entre os pagãos. Porém, entre eles não havia necessariamente a adoração do Deus único, o qual, apesar de ser adorado mesmo antes de Abraão, como por Abel, Enos, Noé, Melquisedeque, escolheu revelar-se de forma especial a Abraão e a seus descendentes, com quem selou aliança, a qual, mais adiante, foi selada com o povo, sob a mediação de Moisés, líder civil e religioso, e grande guerreiro. Mas no citado capítulo do Leviatã Hobbes apenas menciona isso, prometendo ao leitor que examinará essa questão nas Partes III e IV da obra.

Vejamos, então, o que ele afirma sobre a natureza religiosa do homem, para enfim expormos de forma introdutória seu pensamento sobre o Reino de Deus: "Verificando que só no homem encontramos sinais, ou frutos da religião, não há motivo para duvidar que a semente da religião se encontra também apenas no homem, e consiste em alguma qualidade peculiar, ou pelo menos em algum grau eminente dessa qualidade, que não se encontra nas outras criaturas vivas”.

Ele relaciona o desejo do conhecimento das causas com o reconhecimento de um único Deus eterno, como podemos verificar nas afirmações seguintes: “O reconhecimento de um único Deus eterno, infinito e onipotente pode ser derivado do desejo que os homens sentem de conhecer as causas dos corpos naturais, e suas diversas virtudes e operações, mais facilmente que do medo do que possa vir a acontecer-lhes nos tempos vindouros. Aquele que de qualquer efeito que vê ocorrer... mergulhe profundamente na investigação das causas, deverá concluir que necessariamente existe um primeiro motor. Isto é, uma primeira e eterna causa de todas as coisas, que é o que os homens significam com o nome Deus".

Para Hobbes, porém, a rigor, Deus, devido à sua natureza, não é um objeto de estudo da Filosofia. Ele definira isso bem antes, n´Os Elementos da Lei Natural e Política (1640), ao afirmar: “Assim como Deus Todo-Poderoso é incompreensível, segue-se que nós não podemos ter uma concepção ou imagem da Divnidade, e consequentemente todos os seus atributos significam a nossa inabilidade e impotência para conceber qualquer coisa concernente à sua natureza, e não alguma concepção sua, excetuando-se apenas esta, que existe Deus. Afinal, os efeitos que naturalmente reconhecemos envolvem uma potência que os produziu antes que eles tivessem sido produzidos; e essa potência pressupõe alguma coisa existente que a tenha enquanto potênca. E a coisa que assim existe como potência para produzir, se não fosse eterna, deveria ter sido produzida por alguma outra anterior a ela, e esta novamente por outra anterior a ela, até que chegássemos a uma eterna, ou seja, à potência primeira de todas as potências, e causa primeira de todas as causas. E esta é aquela que todos os homens concebem pelo nome de Deus, envolvendo eternidade, incompreensibilidade e onipotência. E então todos que o considerarem poderão saber que Deus existe, mas não o que ele é. Mesmo num homem que tenha nascido cego, embora não seja capaz de ter qualquer imaginação acerca de que tipo de coisa é o fogo, ainda assim ele não pode deixar de saber que existe alguma coisa a que os homens dão o nome de fogo, porque ela o esquenta”.

Também na obra Sobre o Corpo Hobbes afirma que Deus é “eterno, não-gerado, incompreensível”. E na obra Do Cidadão explica que “eterno” significa fora do tempo. Ora, isso só pode ser entendido como uma forma de demonstrar a veneração de Deus, pois se tudo o que existe está no tempo, logo não existiria Deus. Porém ao chamá-lo de eterno, certamente o homem está querendo dizer que Ele, apesar de estare no tempo, não tem uma existência tempoalmente limitada. Porém, explicar a sua natureza não é possível.

No Leviatã ele reafirmará que a linguagem usada em relação à natureza de Deus é uma forma de veneração, pois, por um lado, afirma ele, “seja o que for que imaginemos é finito”, e por outro lado, as afirmações de “que alguma coisa está toda neste lugar, e toda em outro lugar ao mesmo tempo; que duas, ou mais coisas, podem estar num e no mesmo lugar ao mesmo tempo: nenhuma destas coisas jamais ocorreu ou pode ocorrer na sensação; mas são discursos absurdos, aceitos pela autoridade (sem qualquer significação) de filósofos iludidos, e de escolásticos iludidos, ou iludidores”.

Sendo assim, é forçoso em seu raciocínio afirmar, sobre o conhecimento de Deus e a sua veneração: “Quando dizemos que alguma coisa é infinita, queremos apenas dizer que não somos capazes de conceber os limites e fronteiras da coisa designada, não tendo concepção da coisa, mas de nossa própria incapacidade. Portanto o nome de Deus é usado, não para nos fazer concebê-lo (pois ele é incompreensível e sua grandeza e poder são inconcebíveis), mas para que o possamos venerar”.

Quanto ao medo como origem das religiões dos gentios, afirma o filósofo: “Alguns dos antigos poetas disseram que os deuses foram criados pelo medo dos homens, o que quando aplicado aos deuses (quer dizer, aos muitos deuses dos gentios), é muito verdadeiro”.

Esses deuses, inventados devido à ignorância que a maioria dos homens têm das causas, eram tantos que Hobbes observa “que havia entre os pagãos quase tão grande variedade de deuses como de atividades”.

Mas as sementes da religião, além de serem cultivadas por homens que “as alimentaram e ordenaram segundo sua própria invenção”, como os gentios, também foram cultivadas por aqueles “que o fizeram sob o mando e direção de Deus”. Porém, Hobbes afirma que o objetivo, em ambas as espécies de religião era levar os que confiavam em seus autores a “tender mais para a obediência, as leis, a paz, a caridade e a sociedade civil”.

A primeira espécie de religião faz parte da política humana, enquanto a segunda “é a política divina, que encerra preceitos para aqueles que se erigiram como súditos do Reino de Deus” e deste fazem parte, afirma Hobbes, “Abraão, Moisés e nosso abençoado Salvador, dos quais chegaram até nós as leis do Reino de Deus”.

E Hobbes define bem claramente quem participa do Reino de Deus, ao dizer: “No reino de Deus, não consideramos como seus súditos os corpos inanimados ou irracionais, embora estejam subordinados ao poder divino; e não os contamos, porque eles não entendem o que sejam os mandamentos e ameaças de Deus; nem tampouco os ateus, porque não acreditam que Deus exista; nem mesmo os que, acreditando na existência de Deus, não crêem, contudo, que ele governe estas coisas inferiores; pois estes últimos, embora sejam governados pelo poder de Deus, não reconhecem, porém nenhum de seus mandamentos, nem temem suas ameaças. Considera-se pertencente ao reino de Deus, portanto, apenas esses que confessam ser ele o regente de todas as coisas, e acreditam que ele tenha dado mandamentos aos homens, e fixado castigos para quem os descumprir. Os demais não devemos chamar súditos, mas inimigos, de Deus”. (Do Cidadão, Parte III: Religião)

terça-feira, 2 de novembro de 2010

Pedro, o Papado e a Soberania Civil, a partir das Escrituras e de Thomas Hobbes

Aos meus pais, Epaminondas e Rosa Carvalho, e à minha irmã Eneida, que repousam com o Senhor.

A doutrina católica sustenta com argumentos baseados em textos e interpretações das Escrituras que Pedro tinha o primado entre os apóstolos, bem como têm argumentos baseados em registros de São Jerônimo, Santo Agostinho, Sulpício Severo, Eusébio, São Cipriano e outros, de que Pedro exerceu o episcopado na capital do Império.
Se nos detivermos apenas nas Escrituras, verificaremos que de fato há textos que o colocam em lugar de liderança entre os apóstolos. Vejamos alguns exemplos:
Em primeiro lugar, ao relacionar os nomes dos apóstolos, o Evangelho de Mateus diz: “Ora, os nomes dos doze apóstolos são estes: primeiro, Simão, por sobrenome Pedro”. E em Marcos, o Evangelho mais antigo do Cânon, a escolha dos doze começa a ser assim exposta: “Eis os doze que designou: Simão, a quem acrescentou o nome de Pedro”.
Em segundo lugar, Pedro tomava a palavra por diversas vezes diante de Cristo, expondo dúvidas não só suas, mas também dos outros discípulos, e Hobbes entende que ele falava em nome de todos.
Em terceiro lugar, Pedro, ao lado de Tiago e João, estava mais próximo de Cristo em seu ministério, privando de alguns ensinos e experiências.
Em quarto lugar, foi dele a Confissão considerada por Hobbes como o fundamento da Igreja. Quando Cristo lhes perguntou: “Mas vós, quem dizeis que eu sou?”, ele respondeu: “Tu és o Cristo, o Filho do Deus vivo”, da qual Hobbes diz que ele a fez em nome de todos. E ele fez outra importante Confissão, semelhante à anterior: “Senhor, para quem iremos? Tu tens as palavras da vida eterna”.
Em quinto lugar, a teologia católica entende que a afirmação de Cristo a seguir deve ser entendida como base para o Primado de Pedro: “Também eu te digo que tu és Pedro, e sobre esta pedra edificarei a minha igreja, e as portas do inferno não prevalecerão contra ela” (Mt 16:18).
Em sexto lugar, Cristo ordenou a Pedro, por três vezes, que apascentasse o seu rebanho, o que lhe conferiu autoridade, mas também imensa responsabilidade.
Em sétimo lugar, e como consequência do que expusemos acima, Pedro foi líder, pastor e grande pregador da Igreja nascente. Sua liderança é assim descrita por Lucas: “Naqueles dias, levantou-se Pedro no meio dos irmãos” e também: “Então, se levantou Pedro, com os onze”.
Em oitavo lugar, no Concílio de Jerusalém, que discutia se a lei de Moisés e os costumes judaicos deveriam ser cumpridos pelos gentios convertidos, Pedro foi o primeiro a orientar os conciliares, opondo-se a isso, e após a sua palavra, “toda a multidão silenciou”.
Em nono lugar, Paulo afirmou que seu apostolado foi apoiado por Pedro, que era reputado como uma das colunas da Igreja: “Tiago, Cefas (que é Pedro) e João, que eram reputados colunas, me estenderam, a mim e a Barnabé, a destra de comunhão”.
Apesar de sua liderança, porém, como já vimos, o apóstolo Pedro ensinava a obediência civil. Acrescentaríamos ao que já dissemos sobre isso que ele ressalva, como os demais apóstolos, e como Hobbes cita na obra Do Cidadão, que “antes importa obedecer a Deus do que aos homens”.
Ainda que a Igreja argumente que Pedro tenha sido o primeiro Papa, era certamente um Papa diferenciado, humilde, que não morava num palácio ou era protegido por uma guarda armada, que não adotava rituais pomposos em catedrais suntuosas, mas reunia-se nas catacumbas, e não era um bispo metropolitano, com influências sobre a política, mas vivia sob a perseguição de Nero, que o levou à execução.
E de acordo com as Escrituras, apesar de Cristo ter dito: “Tu és Pedro, e sobre esta pedra edificarei a minha Igreja”, quando Pedro procurou dissuadi-lo de se entregar para ser crucificado, Cristo lhe disse: “Tu és para mim pedra de tropeço, porque não cogitas das coisas de Deus, e sim das dos homens”. Ora, dificilmente Cristo colocaria a alguém que lhe serviu de pedra de tropeço como pedra fundante de sua Igreja.
E também o próprio Pedro, quando da condenação de seu mestre, negou-o veementemente, chegando a dizer sobre Cristo: “Não o conheço, nem compreendo o que dizes” (Mc 14:68). Bem como, depois de negá-lo segunda vez, sendo novamente interpelado, o texto de Marcos afirma que ele “começou a praguejar e a jurar: Não conheço esse homem de quem falais” (Mc 14:71). Isso também o desabilitaria para ser a pedra sobre a qual a Igreja se assentaria.
Porém, o próprio Pedro reconhece que a pedra, ou o fundamento da Igreja, é Cristo, pois o apóstolo afirmou: “Este Jesus é pedra rejeitada por vós, os construtores, a qual se tornou a pedra angular" (At 4:11). E em sua Primeira Carta, que é considerada autêntica pela Crítica, ele escreve: “A pedra que os construtores rejeitaram, essa veio a ser a principal pedra, angular” (I Pd 2:7), referindo-se novamente a Cristo. Ora, se ele mesmo disse isso, como seria ele a pedra sobre a qual a Igreja se edificaria?
A Igreja ainda argumenta que Cristo colocou a Pedro como seu Vigário, isto é, como seu substituto, ao dizer-lhe: “Dar-te-ei as chaves do reino dos céus; o que ligares na terra terá sido ligado nos céus; e o que desligares na terra terá sido desligado nos céus” (Mt 16:19). E no decorrer da História, os Papas seriam sucessores de Pedro e, portanto, Vigários de Cristo, e pretendendo, como tal estar acima do bem e do mal. Mas se a Escritura estiver certa, ao agir assim eles ignorariam duas passagens bíblicas muito valorizadas por Hobbes: primeiro, que Cristo disse: “O meu reino não é deste mundo”, segundo, que para Paulo o Reino de Deus ainda não veio em sua plenitude, pois o apóstolo diz que Cristo ainda irá “entregar o reino ao Deus e Pai” (I Co 15:24), o que Hobbes cita na obra Do Cidadão, onde faz uma explicação sobre o Reino de Deus que se constitui numa grande aula sobre o Reino de Deus, mesmo para boa parte dos teólogos e dos que o chamam de ateu.
De forma que, concluindo essas considerações a partir das Escrituras, certamente devemos reconhecer o importante papel de Pedro na História da Igreja, mas quanto a considerá-lo o primeiro Papa, com base no Novo Testamento, dificilmente, pois a Igreja ainda era marcada pelo carisma, vindo a institucionalizar-se com o passar do tempo, e a moldar-se na hierarquia de Roma para administrar-se, sendo o Bispo de Roma, a capital do Império, o Bispo primaz, o que é um sinônimo de Papa. E a rigor, se a palavra Papa significa “Pai”, de acordo com o Evangelho ela dificilmente poderia ser usada em relação a um homem, pois Cristo teria dito, segundo Mateus: “A ninguém sobre a terra chameis vosso pai; porque só um é vosso Pai, aquele que está nos céus” (Mt 23.9).
Agora, vamos ao que Hobbes pensou sobre isso no Cap. XLII do Leviatã, ao discutir as teses do Cardeal Belarmino sobre o Sumo Pontífice. Apesar de ser longa a citação, o leitor verá que ela é necessária, por ser sustentável e suficiente:
“Nosso Salvador pregava unicamente, por ele mesmo, por João Batista e por seus apóstolos, um único artigo de fé, que ele era o Cristo; sendo que todos os outros artigos exigem apenas a fé que nesse se fundamenta. João começou primeiro (Mt 10,7), pregando apenas isto: O Reino de Deus está próximo. E nosso Salvador pregava o mesmo (Mt 4,17); e quando encarrega os doze apóstolos de sua missão (Mt 10,7) não há referência à pregação de qualquer outro artigo a não ser esse. Era este o artigo fundamental, e é ele o fundamento da fé da Igreja. Posteriormente, quando os apóstolos voltaram a ele, perguntou a todos eles, e não apenas a Pedro (Mt 16,13), quem os homens diziam que ele era, e eles responderam que alguns diziam que ele era São João Batista, outros Elias, outros Jeremias, ou um dos profetas. Então ele voltou a perguntar-lhes, e não apenas a Pedro (v. 15): Quem dizeis vós que eu sou? Ao que São Pedro respondeu (em nome de todos): Tu és Cristo, Filho do Deus vivo; o que eu já disse ser o fundamento da fé de toda a Igreja. Aí nosso Salvador aproveitou a ocasião para dizer: Sobre esta pedra construirei minha Igreja. Pelo que fica manifesto que a pedra fundamental da Igreja era o mesmo que o artigo fundamental da fé da Igreja”.
Hobbes afirma que o termo “pontifex maximus” significava inicialmente que o Papa era a suprema autoridade em assuntos espirituais e, portanto, indicava também que ele estava sujeito ao poder civil, como um funcionário deste. Mas, continua o filósofo, depois do fim do Império o termo foi apropriado pela Igreja em relação ao Bispo de Roma e a Igreja, que pretendia ter um império universal, conseguiu-o conseguiu através do medo que incutiu nos fiéis, aos quais ensinava que, nas divergências entre os imperadores, eles deveriam permanecer fiéis, acima de tudo à Igreja, antes que a seus príncipes, pois o papa detinha o poder espiritual, e desobedecê-lo era o mesmo que se opor a Cristo. Assim, afirmando que é “a Igreja agora sobre a terra o reino de Cristo”, e se isso for aceito, prossegue Hobbes, “tem de se aceitar que Cristo tenha um representante entre nós para dizer-nos quais são as suas ordens”. E quem será esse representante, senão o Papa?
Obviamente, diz Hobbes, toda essa doutrina foi criada pelos próprios Papas, visando atender à sua presunção de poder e à sua aplicação junto à consciência dos súditos do poder civil. Porém, Hobbes afirma que “não deve haver nenhum poder sobre as consciências dos homens, a não ser da própria palavra (de Deus)” bem como que “é desarrazoado... exigir de um homem dotado de razão própria que siga a razão de qualquer outro homem”.
Hobbes também afirma que depois que essa doutrina de que a Igreja é o Reino de Deus prevaleceu, as ciências naturais e a moralidade da razão natural foram suprimidas, bem como a sabedoria, a humildade, a clareza de doutrina e a sinceridade de linguagem. Os pastores da Igreja cometeram não apenas simples faltas, mas escândalos, e a ambição pelos cargos, principalmente pelo de representante de Cristo e sua consequente influência sobre o poder civil levou-os a perderem “a reverência devida à função pastoral”. O que é impressionante é que não é um profeta quem está falando, mas um filósofo. Ou os dois termos são, em relação a ele e a muitos outros, sinônimos?
Diante da decadência do clero assim exposta, em relação à doutrina, à sabedoria, moralidade e à reputação, Hobbes afirma que “os homens mais sábios, entre aqueles que possuíam qualquer poder no Estado civil, só precisavam da autoridade de seus príncipes para lhes negarem obediência”.
E enfim, sobre a presunção do Bispo de Roma de ser sucessor de Pedro, Hobbes afirma:
“Desde a época em que o bispo de Roma conseguiu ser reconhecido como bispo universal, pela pretensão de suceder a São Pedro, toda sua hierarquia, ou reino das trevas, pode ser comparado adequadamente ao reino das fadas, isto é, às fábulas contadas por velhas na Inglaterra referentes aos fantasmas e espíritos e às proezas que praticavam de noite. E se alguém atentar no original deste grande domínio eclesiástico verá facilmente que o Papado nada mais é do que o fantasma do defunto império romano, sentado de coroa na cabeça sobre o túmulo deste, pois assim surgiu de repente o Papado das ruínas do poder pagão”.
Porém, a despeito das contradições em torno da doutrina do Papado, da sucessão de Pedro e das interferências da Igreja na cultura e na Política, até hoje a Igreja define o Bispo de Roma como o Vigário de Cristo, conforme a seguinte definição atual, da Catholic Encyclopaedia:
“The title pope… is at present employed solely to denote the Bishop of Rome, who, in virtue of his position as successor of St. Peter, is the chief pastor of the whole Church, the Vicar of Christ upon earth”.
Uma definição que tem, sem dúvida, um conteúdo tanto metafísico quanto devocional, mas também pretensioso, ideológico e político. Porém, na História da Igreja, observa-se que a autoridade de Cristo, dos apóstolos e profetas não se estendia ao domínio político, como muito o bem o demonstrou Hobbes, e como já diziam as Escrituras, as quais Hobbes insiste em reler em oposição à pretensão de hegemonia civil da Igreja: “O meu reino não é deste mundo”.
E hoje, se olhássemos para o despojamento de Pedro, por um lado, e para a suntuosidade da Catedral de S. Pedro, por outro, poderíamos perguntar o que o santo homem pensaria de seu luxo e da presumida soberania da instituição eclesiástica em tempos idos da História, ele que ensinou:
“Sujeitai-vos a toda instituição humana por causa do Senhor; quer seja ao rei, como soberano, quer às autoridades como enviadas por ele, tanto para castigo dos malfeitores, como para louvor dos que praticam o bem... Tratai a todos com honra, amai aos irmãos, temei a Deus, honrai ao rei”.
Assim, mesmo em Pedro, considerado pela própria Igreja o príncipe dos apóstolos, podemos encontrar, abaixo da obediência a Deus, a legitimação da obediência ao poder civil, a qual, porém, não está acima de Deus, como o próprio Hobbes reconhece, citando Pedro e os demais apóstolos, que disseram: “Antes importa obedecer a Deus do que aos homens” (Atos 5.29)

terça-feira, 5 de outubro de 2010

Obediência e Resistência ao Poder Civil nos Primórdios do Evangelho

Dedico este texto ao meu querido sobrinho Lauro, que, antes de tudo, é meu verdadeiro irmão!

Mesmo que se concorde com os argumentos de Hobbes em relação ao papel dos profetas e apóstolos, isto é, com o fato do filósofo considerá-los apenas como conselheiros dos reis e doutras autoridades, é necessário admitir que os primeiros líderes da Igreja, mesmo indiretamente, faziam frente ao poder estabelecido ao afirmarem a soberania de Deus. Há textos no Novo testamento, seja nos Evangelhos, em Atos dos Apóstolos, nas Epístolas ou no Apocalipse que orientam as comunidades cristãs sobre a obediência civil, bem como colocam acima de tudo a soberania de Deus, e mesmo apresentam claras críticas e denúncias ao poder civil.

Os cristãos foram ensinados a obedecer à autoridade civil, primeiramente, pelo próprio Cristo, que disse: “Dai, pois a César o que é de César e a Deus o que é de Deus” (Mt 22:21), e ainda por Paulo, que escreveu: “Pagai a todos o que lhes é devido: a quem tributo, tributo; a quem imposto, imposto; a quem respeito, respeito; a quem honra, honra” (Rm 13:7), e mais ainda, pelo príncipe dos apóstolos, Pedro, que escreveu: “Tratai todos com honra, amai os irmãos, temei a Deus, honrai o rei” (I Pd 2:17).

Porém, quando se tratava de uma ordem civil contrária aos princípios de sua fé, os cristãos obedeciam em primeiro lugar a estes, pois como disse Pedro: "Antes importa obedecer a Deus do que aos homens" (At 5:19).

Já no início do Evangelho de Mateus encontra-se a afirmação do nacimento de um novo rei:“É nascido o rei dos judeus”, o que levou Herodes, usando a falsamente chamada razão de Estado, a se alarmar e a ordenar a morte de muitos meninos recém-nascidos. Mas o autor do texto não desiste, e encerra sua narrativa com a célebre afirmação de Cristo: “É-me dada toda a autoridade no céu e na terra”.

Essa afirmação, inegavelmente, tem um conteúdo que era entendido pelos cristãos espiritualmente, por exemplo, quando o autor da Epístola aos Efésios diz: “A nossa luta não é contra o sangue e a carne, e sim contra os principados e potestades, contra os dominadores deste mundo tenebroso, contra as forças espirituais do mal, nas regiões celestes” (Ef 6:12).

Porém, a mesma afirmação servia de motivação para a expansão do Reino de Deus, expressão que, ainda que fale de um reino espiritual, toma de empréstimo à linguagem da política um termo fundamental: "Reino”. E no caso de contradição entre os princípios desse Reino e as ordens das autoridades civis, prevalecia aquilo que era relativo ao Reino de Deus. E assim, muitos cristãos desobedeceram às autoridades religiosas de Israel e civis do Império Romano.

E também é claro que Lucas, apesar de enfatizar o arrependimento noem seu Evangelho, fazia também uma dura crítica à violência do Império Romano, ao escrever: “Naquela mesma ocasião, chegando alguns, falavam a Jesus a respeito dos galileus, cujo sangue Pilatos misturava com os sacrifícios que os mesmos realizavam” (Lc 13:1). - Quem não seria capaz de ver nisso uma denúncia dos abusos do poder civil?

E as mensagens de esperança dadas aos cristãos por Paulo, sem dúvida, se referiam às perseguição judaicas e romanas, pois ele escreveu: “Quem nos separará do amor de Cristo? Será tribulação, ou angústia, ou perseguição, ou fome, ou nudez, ou perigo, ou espada?... Nem a morte, nem a vida, nem os anjos, nem os principados, nem os poderes... poderá separar-nos do amor de Deus, que está em Cristo Jesus, nosso Senhor”. (Rm 8: 35-39)E quando foi prisioneiro em Roma, quanto a si mesmo, chegou o momento em que tinha consciência de sua condenação por Nero, tendo afirmado: “Estou sendo já oferecido por libação, e o tempo da minha partida é chegado” (II Tm 4: 6). Porém, observe-se: o Senhor não é o Estado, não é o Império, não é Nero, mas sim Cristo.

Os cristãos, chamando a Cristo de Senhor, colocavam sua autoridade acima de qualquer principado ou potestade, espiritual ou temporal, e faziam uma resistência pacífica aos seus perseguidores. Os romanos admiravam-se e até mesmo criticavam o fato dos cristãos não resistirem quando eram torturados e levados à morte. Alguns até os consideravam sem virtude. Porém, os cristãos acreditavam, como Paulo os ensinou, na Carta aos Filipenses que “o viver é Cristo, e o morrer é lucro” (Fp 1: 21), e para confortá-los, também escreveu o apóstolo: “Porque vos foi concedida a graça de padecerdes por Cristo e não somente de crerdes nele” (Fp 1: 29). Na História da Igreja, porém, também houve daqueles que exageraram, querendo tornar-se mártires, no que foram censurados pelas autoridades eclesiásticas.

Para os cristãos, Deus é soberano e Cristo é o Rei dos reis e o Senhor dos senhores. Tomás de Aquino registrava sua fé na soberania de Deus na dedicatória da obra Do Governo dos Príncipes ao Rei de Cipro, afirmando que a escreveu “confiando o princípio, progresso e consumação da obra ao auxílio daquele que é Rei dos reis e Senhor dos senhores, pelo qual reinam os reis: Deus, grande Senhor, e rei magno sobre todos os deuses”.

Apesar disso, Pedro os ensinou a obedecerem à autoridade civil, pelo bem do Evangelho e pelo bom testemunho, quando disse: “Sujeitai-vos a toda instituição humana por causa do Senhor; quer seja ao rei, como soberano, quer às autoridades como enviadas por ele, tanto para castigo dos malfeitores, como para louvor dos que praticam o bem... Tratai a todos com honra, amai aos irmãos, temei a Deus, honrai ao rei”.(I Pd 2:13-14 e 17). Portanto, Pedro ensina, abaixo da obediência a Deus, a obediência ao poder civil.

O mesmo se encontra em Paulo que, sabiamente, não ofereceu resistência ao poder civil, como a maioria dos cristãos, cumprindo o princípio de Cristo de que “se o grão de trigo caindo, não morrer, fica ele só, mas se morrer, dá muito fruto”.

E assim esses homens, e suas ovelhas, sem uma ideologia política, sem um partido ou facção, mas apenas tendo a Cristo como Senhor, ainda que tenham sido desprezados até à morte, foram o fermento que levedou toda a massa. Eles lançaram com seus próprios corpos, templos do Espírito, as sementes do Reino de Deus.

Sigamos as suas pisadas.

sábado, 25 de setembro de 2010

Hobbes: a peculiaridade da Religião ao Homem e seus usos na Política

Dedico este texto à minha querida irmã Eneida (in memoriam), que naquela vida simples da roça sempre me incentivou a estudar. Obrigado, Eneida!

No Cap. XII do Leviatã Hobbes afirma que a religião é uma característica natural do homem, das religiões dos gentios, baseadas no medo, e de seu uso na política de forma oportunista, como se a vontade das autoridades civis fosse a vontade de Deus, bem como da religião daqueles que buscam as causas das coisas, chegando à concepção de uma causa não causada, à qual “os homens dão o nome de Deus”, o que foi reconhecido mesmo entre os pagãos, afirma o filósofo, mas nestes não havia necessariamente a adoração do Deus único, a qual, apesar de presente antes de Abraão, como em Abel e Noé, foi revelada a Abraão e aos seus descendentes, e selada através de um pacto, sob Moisés, que tanto era um líder político quanto sacerdotal, a respeito do que o filósofo tratará mais pormenorizadamente no Leviatã (Parte III), mostrando como, com a instauração da monarquia em Israel, o povo rejeitou o pacto com Deus e fez um pacto de obediência ao poder civil, comandado por Saul, que tinha um poder absoluto, dato pelo próprio Deus, donde o filósofo corroborará sua tese da obediência em primeiro lugar ao poder civil, o que já trabalhara antes em sua obra Do Cidadão.
Sobre natureza religiosa do homem, Hobbes afirma:

“Verificando que só no homem encontramos sinais, ou frutos da religião, não há motivo para duvidar que a semente da religião se encontra também apenas no homem, e consiste em alguma qualidade peculiar, ou pelo menos em algum grau eminente dessa qualidade, que não se encontra nas outras criaturas vivas”.

Ele relaciona o desejo do conhecimento das causas com o reconhecimento de um único Deus eterno, como podemos verificar nas afirmações seguintes:

“O reconhecimento de um único Deus eterno, infinito e onipotente pode ser derivado do desejo que os homens sentem de conhecer as causas dos corpos naturais, e suas diversas virtudes e operações, mais facilmente que do medo do que possa vir a acontecer-lhes nos tempos vindouros. Aquele que de qualquer efeito que vê ocorrer mergulhe profundamente na investigação das causas, deverá concluir que necessariamente existe um primeiro motor. Isto é, uma primeira e eterna causa de todas as coisas, que é o que os homens significam com o nome Deus.

Para Hobbes, porém, a rigor, Deus, devido à sua natureza, não é um objeto de estudo da Filosofia. Ele definira isso bem antes, n´Os Elementos da Lei Natural e Política (1640), ao afirmar:

“Assim como Deus Todo-Poderoso é incompreensível, segue-se que nós não podemos ter uma concepção ou imagem da Divnidade, e consequentemente todos os seus atributos significam a nossa inabilidade e impotência para conceber qualquer coisa concernente à sua natureza, e não alguma concepção sua, excetuando-se apenas esta, que existe Deus. Afinal, os efeitos que naturalmente reconhecemos envolvem uma potência que os produziu antes que eles tivessem sido produzidos; e essa potência pressupõe alguma coisa existente que a tenha enquanto potênca. E a coisa que assim existe como potência para produzir, se não fosse eterna, deveria ter sido produzida por alguma outra anterior a ela, e esta novamente por outra anterior a ela, até que chegássemos a uma eterna, ou seja, à potência primeira de todas as potências, e causa primeira de todas as causas. E esta é aquela que todos os homens concebem pelo nome de Deus, envolvendo eternidade, incompreensibilidade e onipotência. E então todos que o considerarem poderão saber que Deus existe, mas não o que ele é. Mesmo num homem que tenha nascido cego, embora não seja capaz de ter qualquer imaginação acerca de que tipo de coisa é o fogo, ainda assim ele não pode deixar de saber que existe alguma coisa a que os homens dão o nome de fogo, porque ela o esquenta”.

Também na obra Sobre o Corpo Hobbes afirma que Deus é “eterno, não-gerado, incompreensível”. E na obra Do Cidadão explica que “eterno” significa fora do tempo. Ora, isso só pode ser entendido como uma forma de demonstrar a veneração de Deus, pois se tudo o que existe está no tempo, logo não existiria Deus, porém ao chamá-lo de eterno, certamente o homem está querendo dizer que Ele, apesar de estare no tempo, não tem uma existência tempoalmente limitada. Porém, explicar a sua natureza não é possível.

Quanto ao medo como origem das religiões dos gentios, afirma o filósofo:
“Alguns dos antigos poetas disseram que os deuses foram criados pelo medo dos homens, o que quando aplicado aos deuses (quer dizer, aos muitos deuses dos gentios), é muito verdadeiro”.

Sobre o uso que as autoridades dos gentios fizeram do medo e da piedade dos povos, visando conter suas revoltas, afirma o filósofo:
“Os primeiros fundadores e legisladores de Estados entre os gentios, cujo objetivo era apenas manter o povo em obediência e paz, tiveram os seguintes cuidados:Incutir em suas mentes a crença de que os preceitos que ditavam a respeito da religião não deviam ser considerados como provenientes de sua própria invenção, mas como os ditames de algum deus.Fazer acreditar que aos deuses desagradavam as mesmas coisas que eram proibidas pelas leis.Prescrever cerimônias, suplicações, sacrifícios e festivais, os quais se devia acreditar capazes de aplacar a ira dos deuses.E através destas e outras instituições semelhantes conseguiam, a serviço de seu objetivo (que era a paz do Estado), que o vulgo, em ocasiões de desgraça, atribuísse a culpa à falta de cuidado, ou ao cometimento de erros, em suas cerimônias, ou à sua própria desobediência às leis, tornando-se assim menos capaz de rebelar-se contra seus governantes.E assim se vê como a religião dos gentios fazia parte de sua política”.

E ainda no Cap. XII do Leviatã ele antecipa de forma sintética e contundente o que irá expor com riqueza de detalhes nas Partes III e IV da obra sobre a presença indevida da Igreja em assuntos civis, e à obviedade disso. Por exemplo, ela deixa essa pergunta ao leitor:
“Haverá alguém que não seja capaz de ver para benefício de quem contribuía acreditar-se que um rei só recebe de Cristo sua autoridade no caso de ser coroado por um bispo? Que um rei, se for sacerdote, não pode casar-se? Que se um príncipe nasceu de um casamento legítimo ou não é assunto que deve ser decidido pela autoridade de Roma? Que os súditos podem ser libertos de seu dever de sujeição, se a corte de Roma tiver condenado o rei como herege?”.

E assim conclui sua crítica à decadência da Religião e à sua extensão à Política, não só na Igreja Romana, mas também na Reformada, atribuindo-as à decadência do clero, chegando a afirmar que podia “atribuir todas as mudanças de religião no mundo a uma e à mesma causa, isto é, sacerdotes desprezíveis, e isto não apenas entre os católicos, mas até naquela Igreja que mais presumiu de Reforma”.

Hobbes organiza o Leviatã falando de uma evolução do homem do estado de natureza para o Estado Civil. Na própria titulação das partes do Leviatã ele mostra a decadência advinda da usurpação do poder civil pela Igreja, pois vejamos: Do Homem (parte I) ao Estado (II), deste para o Estado Cristão (III), e daí para o Reino das Trevas (IV), de onde o filósofo quer com todas as forças de seu intelecto resgatar o Homem.

Para isso ele se utiliza da principal arma da Igreja, as Escrituras, às quais ele chama de “fortificações avançadas do inimigo, de onde este ameaça o poder civil”. Agora, porém, ele as lerá procurando demonstrar a anterioridade do poder civil a qualquer outra instituição, principalmente a que se diz guardiã dos mistérios de Deus.

Se os gentios usavam da religião para fortalecer a sua hegemonia, a Igreja procurou, a partir da religião, criar uma nova hegemonia, em nome de Deus, sobre o poder civil, presumindo ser a única intérprete das Escrituras e procurando usurpar não só o lugar do Estado, mas até do próprio Deus, pois presumia que só seu discurso sobre Ele era válido, controlando tanto o Cânon quanto a posterior interpretação do que era tido como canônico.

Eis a grande missão de Hobbes: demonstrar, não só pela razão, mas também pelas Escrituras, que a Igreja laborava em um erro! Por isso, Richard Tuck teria razão ao afirmar:
“Segundo Hobbes, a área mais importante de potencial intervenção dosoberano é a religião. Faz sentido dizer que são as partes III e IV de Leviatã que constituem o objetivo principal da obra”.

terça-feira, 21 de setembro de 2010

A Filosofia definida por Hobbes no Leviatã

Thomas Hobbes (1588-1679)
Abaixo segue parte das definições de Filosofia de acordo com Hobbes, transcritas de sua obra Leviatã, publicada em 1651:

“Por filosofia se entende o conhecimento adquirido por raciocínio a partir do modo de geração de qualquer coisa para as propriedades; ou das propriedades para algum possível modo de geração das mesmas, com o objetivo de ser capaz de produzir, na medida em que a matéria e a força humana o permitirem, aqueles
efeitos que a vida humana exige. Assim o geômetra, a partir da construção de figuras, encontra muitas de suas propriedades, e a partir de suas propriedades novos modos de construí-las por raciocínio, com o objetivo de ser capaz de medir a terra e a água, e para outros inumeráveis usos. Assim o astrônomo, a partir do nascente, do poente e do movimento do sol e das estrelas, em várias partes dos céus, descobre as causas do dia e da noite e das diferentes estações do ano, com o que mantém uma contagem do tempo. E o mesmo acontece nas outras ciências.
Definição pela qual fica evidente que não consideramos como parte dela aquele conhecimento originário chamado experiência, no qual consiste a prudência, porque não é atingido por raciocínio, mas se encontra igualmente nos animais e no homem, e nada mais é do que a memória de sucessões de eventos em tempos passados, na qual a omissão de qualquer pequena circunstância, alterando o efeito, frustra a esperança
do mais prudente, visto que nada é produzido pelo raciocínio acertadamente senão a verdade geral, eterna e imutável.
Nem devemos portanto dar esse nome a quaisquer falsas conclusões, pois aquele que raciocina corretamente com palavras que entende nunca pode concluir um erro.
Nem aquilo que qualquer homem conhece por revelação sobrenatural, porque não é adquirido por raciocínio.
Nem aquilo que se tira por raciocínio da autoridade de livros, porque não é por raciocínio de causa a efeito, nem do efeito para a causa, e não é conhecimento, mas crença.
Sendo a faculdade de raciocinar consequente ao uso da linguagem, não era possível que não houvesse algumas verdades gerais descobertas por raciocínio, quase tão antigas como a própria linguagem. Os selvagens da América não deixam de possuir algumas boas proposições morais; também possuem um pouco e aritmética para adicionar e dividir com números não muito grandes, mas nem por isso são filósofos. Pois assim como havia plantas de cereal e de vinho em pequena quantidade espalhadas pelos campos e bosques antes de os homens conhecerem suas virtudes, ou usarem-nas como alimento, ou plantarem-nas separadamente em campos e vinhas, época em que se alimentavam de bolotas e bebiam água, assim também deve ter havido várias especulações verdadeiras, gerais e úteis desde o início, à maneira de plantas naturais da
razão humana, mas ao princípio eram muito poucas. Os homens viviam baseados na experiência grosseira, não havia método, isto é, não semeavam nem plantavam o conhecimento por si próprio, separado das ervas daninhas e das plantas vulgares do erro e da conjetura. E sendo a causa disso a falta de tempo, devida à procura das necessidades da vida e à defesa contra os vizinhos, era impossível, até que se erigisse um grande Estado, que as coisas se passassem de maneira diferente. O ócio é o pai da filosofia, e o Estado, o pai da paz e do ócio. Quando pela primeira vez surgiram grandes e florescentes cidades, aí surgiu pela primeira vez o estudo da filosofia.
A filosofia não surgiu entre os gregos e os outros povos do ocidente, cujos Estados (que não eram talvez maiores do que Lucca ou Gênova) nunca tinham paz, a não ser quando seus receios recíprocos eram iguais, nem ócio para observar outra coisa além de se observarem mutuamente. Por fim, quando a guerra uniu muitas destas cidades gregas
menores em cidades menos numerosas e maiores, então começaram a adquirir a reputação de sábios sete homens de várias partes da Grécia, alguns deles devido a máximas morais e políticas, e outros devido ao saber dos caldeus e egípcios, que era astronomia e geometria. Mas ainda não ouvimos falar de quaisquer escolas de filosofia.
Depois que os atenienses, pela derrota dos exércitos persas, alcançaram o domínio do mar, e portanto de todas as ilhas e cidades marítimas do Arquipélago, tanto da Ásia como da Europa, e se tornaram ricos, não tinham nada que fazer nem em seu país nem fora dele, exceto (como diz São Lucas, Atos, 17,21) contar e ouvir notícias, ou discorrer publicamente sobre filosofia, dirigindo-se aos jovens da cidade. Todos os mestres
escolheram um lugar para esse fim: Platão em certos passeios públicos denominados academia, derivado de Academus, Aristóteles no caminho para o templo de Pan, chamado Lyceum, outros na Stoa, ou caminho coberto, onde as mercadorias dos comerciantes eram trazidas para terra, outros em outros lugares, nos quais passavam o tempo de seu ócio ensinando ou discutindo suas opiniões, e alguns em qualquer lugar onde pudessem reunir a juventude da cidade para ouvi-los falar. E isto foi também o que fez Carnéades em Roma, quando era embaixador, o que levou Catão a aconselhar ao Senado que o mandasse embora rapidamente, com receio de que ele corrompesse os costumes dos jovens que se encantavam ao ouvi-lo falar (como eles pensavam) belas coisas.
Daqui resultou que o lugar onde qualquer deles ensinava e discutia se chamava schola, que em sua língua significava ócio, e suas disputas diatribae, o que significa passar o tempo. Também os próprios filósofos tinham o nome de suas seitas, algumas delas derivadas destas escolas, pois aqueles que seguiam a doutrina de Platão eram denominados acadêmicos, os seguidores de Aristóteles, peripatéticos, do nome do
caminho onde ele ensinava, e aqueles que Zenão ensinava estóicos, de stoa, como se denominássemos os homens a partir de Morefelds, igreja de São Paulo e Bolsa, porque eles ali se encontram muitas vezes para tagarelar e vaguear”.

(O textocompleto encontra-se no Volume da Coleção Os Pensadores dedicado a Thomas Hobbes. Tradução de João Paulo Monteiro e Maria Beatriz N. da Silva. 2. ed. S. Paulo, Abril Cultural, 1974.)

quarta-feira, 25 de agosto de 2010

Razão, Ciência e Paz Civil em Hobbes

No Cap. IV do Leviatã, após tratar da origem da linguagem e de sua utilidade para a vida associada, o contrato e a paz civil, Hobbes argumenta contra a linguagem das Escolas, na qual estão presentes conceitos insignificantes, tais como “entidade", "intencionalidade" e "qüididade”.

Hobbes observa que os nomes ditos universais designam, na realidade, coisas particulares: “... homem, cavalo, árvore, cada um dos quais, apesar de ser um só nome, é contudo o nome de várias coisas particulares, em relação às quais em conjunto se denominam um universal, nada havendo no mundo universal além de nomes, pois as coisas nomeadas são, cada uma delas, individuais e singulares”. E conclui a distinção conceitual afirmando que “enquanto o nome próprio traz ao espírito uma coisa apenas, os universais recordam qualquer dessas muitas coisas”.

Em sua crítica dos conceitos universais é relevante o recurso à Geometria. Ele afirma que “... a consequência descoberta num caso particular passa a ser registrada e recordada, como uma regra universal... e faz que aquilo que se descobriu ser verdade aqui e agora seja verdade em todos os tempos e lugares”.

A Geometria, portanto, é a ciência dos universais e o discurso que se utiliza das consequências de forma correta, pois nela começa-se pelas definições, colocadas no início dos cálculos. Aquilo que é descoberto geometricamente, aqui e agora, é verdade em todos os tempos. É nesse contexto conceitual que Hobbes afirma da Geometria “que é a única ciência que prouve a Deus conceder à humanidade”.

E a análise das definições, partindo da Geometria, vai para a crítica da leitura daqueles que simplesmente avaliam as palavras “pela autoridade de um Aristóteles, de um Cícero, ou de um Tomás, ou de qualquer outro doutor que nada mais é do que um homem”.

Para Hobbes, os maus raciocínios e a má leitura podem fazer com que as palavras, de “calculadores dos sábios”, se tornem “a moeda dos loucos”, quando aceitas sob o argumento da autoridade. Dessa forma, Hobbes vai minando a Escolástica e qualquer tradição de autoridade, seja filosófica ou religiosa, mas principalmente esta, desde o início de sua obra, preparando o espírito do leitor para que concorde com o argumento principal de sua obra, longamente sedimentado: o da soberania do Estado sobre a Igreja.

Verifica-se em sua crítica às más definições que a Geometria é considerada um modelo de tigor, devido à sua exigência de precisão no método e, consequentemente, na elaboração das definições. Por isso, de acordo com Bobbio, “o verdadeiro fundador das ciências morais foi Hobbes”, devido à aplicação de um novo método, com base na Geometria, à análise da vida moral e política.

Bobbio afirma que para Hobbes a desordem da vida social de sua época era devida a um problema de método e de interpretação, e estava vinculada a doutrinas falsas de escritores antigos e modernos, bem como ao sectarismo dos maus teólogos. Hobbes comparava a concórdia do campo da Matemática “com o reino da discórdia sem trégua em que se agitavam as opiniões dos teólogos, dos juristas e dos escritores políticos”.

Assim, ainda de acordo com Bobbio, para Hobbes os males da humanidade seriam eliminados se fossem conhecidos em suas causas com a mesma certeza das “grandezas das figuras”. As leis de natureza, dessa forma, portanto, “sobre o que se deve fazer ou deixar de fazer”, são deduzidas da razão. Assim, como a discórdia na sociedade civil tinha como uma de suas causas a discórdia dos teólogos, e que ele pretendia aplicar à moral e à política a mesma precisão da Geometria.

No Cap. V do Leviatã, estendendo a análise da Linguagem o filósofo tratará da Razão e da Ciência. Quando raciocinamos, afirma ele, fazemos adições e subtrações, as quais podem ser observadas na em diversas áreas, mas é relevante o fato dele afirmar que isso está presente na filosofia civil, na filosofia jurídica e moral, conforme se segue, quando ele já usa a palavra pactos, associando-a a um cálculo, conforme o ará depois, ao final do Cap. XIII, falando das paixões e da razão que levaram à criação da Pessoa Soberana visando a paz civil:

“Os escritores de política adicionam em conjunto pactos para descobrir os deveres dos homens, e os juristas leis e fatos para descobrir o que é certo e errado nas ações dos homens privados”.

O Cap. V da obra reveste-se de capital importância em sua luta contra os absurdos das escolas, e a afirmação abaixo bem pode ser uma ironia contra as autoridades eclesiásticas, que presumindo que o Papa possuía um poder universal, afirmavam absurdos como se fossem razões:

“Quando os homens que se julgam mais sábios do que todos os outros clamam e exigem uma razão certa para juiz, nada mais procuram senão que as coisas sejam determinadas, não pela razão de outros homens, mas pela sua própria. É tão intolerável na sociedade dos homens como no jogo, uma vez escolhido o trunfo, usar como trunfo em todas as ocasiões aquela série de que se tem mais cartas na mão. Pois nada mais fazem do que tomar cada uma de suas paixões, à medida que vão surgindo neles, pela certa razão, e isto em suas próprias controvérsias, revelando sua falta de justa razão com a exigência que fazem dela”.

O homem supera a todos os outros animais, pois é capaz de conceber, inquirir as consequências e reduzi-las a “regras gerais, chamadas teoremas, ou aforismos”, de “raciocinar, ou calcular, não apenas com números, mas com todas as outras coisas que se podem adicionar ou subtrair umas às outras”, porém, continua Hobbes, “este privilégio é acompanhado de um outro, que é o privilégio do absurdo, ao qual nenhum ser vivo está sujeito, exceto o homem”.

Em oposição aos absurdos, Hobbes está em busca da razão ou da ciência, que é “obtida com esforço, primeiro através de uma adequada imposição de nomes, e em segundo lugar através de um método bom e ordenado de passar dos elementos, que são nomes, a asserções feitas por conexão de um deles com o outro, e daí para os silogismos, que são as conexões de uma asserção com outra, até chegarmos a um conhecimento de todas as consequências de nomes referentes ao assunto em questão, e é a isto que os homens chamam ciência”.

Enfim, Hobbes relaciona a ciência com a paz civil e com o bem da própria humanidade quando afirma, aso contrário das palavras bem definidas, próprias da ciência, “as metáforas e as palavras ambíguas e destituídas de sentido são como ignes fatui, e raciocinar com elas é o mesmo que perambular entre inúmeros absurdos, e o seu fim é a disputa, a sedição ou a desobediência”.


* As citações de Hobbes são do Leviatã, 2a. ed., publicada pela Abril em 1979. Trad. de João Paulo Monteiro da Cruz e Maria Beatriz N. da Silva. A obra de Bobbio citada é Sociedade e Estado na Filosofia Politica Moderna, S. Paulo, Brasiliense, 1986, p. 19 e 20.

sexta-feira, 23 de julho de 2010

Ideologia e Razão de Estado em Textos Bíblicos

Aos meus alunos, como diz Roberto DaMatta, "com quem aprendi a ser professor".
Há diversos textos bíblicos que demonstram interesses ideológicos, ardis e traições nas relações políticas, nalguns dos quais os autores, além de exporem a sua leitura ou interpretação dos fatos, incluem também seus interesses ideológicos e políticos. Podemos mesmo ver em várias narrativas bíblicas uma presença da Razão de Estado, que se caracteriza pelo pragmatismo servil, que instrumentaliza a razão e a ação moral em função do resultado. Vejamos alguns casos.
Em primeiro lugar, observamos nas narrativas do AT que era comum entre os ministros, conselheiros e outros oficiais dos reis a adulação e a busca da aprovação de decretos visando interesses pessoais, o que é narrado tanto no Livro de Ester quanto no Livro de Daniel. No caso do Livro de Ester, o ministro Hamã paga uma alta quantia em tesouros de prata para que o rei Assuero aprove um decreto para a aniquilação dos judeus. Trata-se de um suborno, visando a matança dos judeus, o qual o rei aceita.
Quanto o Livro de Daniel, nele narra-se a aprovação de um decreto de culto ao Rei Dario, decreto esse feito claramente com a finalidade de condenar à morte Daniel, que era o mais sábio conselheiro da corte. Sabendo que Daniel não deixaria de cultuar o Deus de Israel, seus adversários convenceram o rei a autorizar um decreto que dispunha que qualquer pessoa que fosse flagrada cultuando a outro “deus” seria condenada à morte, sendo lançada na cova dos leões.
O caráter de adulação contido nessa proposta feita ao rei pelos opositores de Daniel era óbvio, porém foi aceito pelo envaidecido rei, que teve uma grande estátua levantada em sua homenagem, não só cívica, mas também religiosa. E quando Daniel foi condenado à morte o rei não podia mais voltar atrás, pois não era assim que se fazia entre os medos, e o próprio rei desejou a Daniel que o Deus de Israel o livrasse, o que de fato ocorreu, pois Daniel foi salvo da boca dos leões, mas quanto a seus inimigos, o texto diz que foram devorados por eles.
O conteúdo teológico dessa narrativa reforça o cumprimento do primeiro mandamento: “Não terás outros deuses diante de mim”, bem como incentiva o povo cativo a manter-se fiel à Aliança com o Deus de Israel.
Em segundo lugar, observamos que também pelos reis de Israel era feito esse tipo de manipulação dos decretos em seu próprio favor. O próprio Salomão usou desse expediente, de forma ardilosa, para condenar a Simei, que havia ofendido a honra de seu pai, o rei Davi, ao praguejar contra ele.
Já idoso, Davi incumbe a Salomão de vingá-lo, dizendo: “Eis que também contigo está Simei..., que me maldisse com dura maldição... e eu, pelo Senhor, lhe jurei, dizendo que o não mataria à espada. Mas, agora, não o tenhas por inculpável, pois és homem prudente e bem saberás o que lhe hás de fazer para que as suas cãs desçam à sepultura com sangue” (I Rs 2:8-9).
Nessas palavras de Davi: “bem saberás o que lhe hás de fazer”, está clara a declaração da morte de Simei, por quem Davi havia jurado pelo Senhor que não o mataria. Então, foi um falso juramento, pois ele delegou a Salomão a morte de seu súdito. E até Cristo era mandamento isso: "Ouvistes que foi dito aos antigos: Não jurarás falso, mas cumprirás rigorosamente para com o Senhor os teus juramentos". (Mt 5:33).
Então, atendendo ao ardil insinuado por Davi, Salomão proibiu a Simei de sair da cidade de Jerusalém sob pena de que, no dia em que o fizesse, seria morto, por ter desobedecido a um decreto real (I Rs 2:36-46). O homem, porém, ao cabo de três anos, tendo dois escravos foragidos, saiu em sua busca e, ao retornar, foi morto. E Salomão ainda argumentou que Simei não guardou o juramento do Senhor, nem a ordem que ele, o rei, lhe dera (v. 43), justificando assim sua estratégia para fortificar o reino, o que é claro no texto (v. 46).
Assim, Davi, homem de quem Paulo disse, em pregação em Antioquia da Pisídia, que dele falara o Senhor: “Achei Davi, filho de Jessé, homem segundo o meu coração, que fará toda a minha vontade” (At 13:22), citado até hoje pela tradição cristã como o homem “segundo o coração de Deus”, e seu filho Salomão, que foi exaltado nos textos do AT como o mais sábio de sua época, politicamente não eram cordeiros, usando a razão de forma pragmática e com astúcia.
Mas quanto a Salomão, Cristo parece zombar dos textos laudatórios do AT sobre a sua glória, afirmando: “Considerai como crescem os lírios do campo: eles não trabalham, nem fiam. Eu, contudo, vos afirmo que nem Salomão, em toda a sua glória, se vestiu como qualquer deles” (Mt 6: 28-29). E quanto à sabedoria de Salomão, afirmou: “E eis aqui está quem é maior do que Salomão”. (Mt 12:42).
Outra narrativa bíblica que pode ser lida na perspectiva da razão de Estado, e talvez até antecipando esse conceito, é aquela sobre Eúde, um Juiz de Israel. Este, para vencer os moabitas, mentiu ao seu rei de duas formas. Primeiro, disse: “Tenho uma palavra secreta a dizer-te, ó rei”. A seguir, tendo sido recebido em audiência particular, disse: “Tenho a dizer-te uma palavra de Deus”. (Jz 3:19-20)
Porém, o que ele fez foi assassinar o rei com um golpe de punhal, e depois disso venceu o seu povo, isto é, os moabitas, levando a terra de Israel a ficar em paz por 80 anos (Juízes 3:30). É difícil garantir que esse período de paz tenha sido de 80 anos, pois Espinosa demonstra que há informações contraditórias sobre a cronologia em vários textos do AT. Um exemplo, de acordo com ele, é o de que, apesar de I Reis 6: 1 afirmar que 480 anos após a saída de Israel do Egito, Salomão começou a edificar o Templo, somando-se os anos citados no Pentateuco, em Josué e em Juízes, na realidade o Templo começou a ser construído 580 anos depois da saída do Egito. (Tratado Teológico-Político, p. 158-160, S. Paulo: Martins Fontes, 2003).
E voltando ao juiz Eúde, a suposta palavra de Deus alegada por ele era um ardil. Ele agiu como falso profeta, pois o próprio AT diz que "Deus não é homem, para que minta" (Nm 23:19), enquanto o NT afirmará que "é impossível que Deus minta" (Hb 6:18). Além disso, Eúde, depois de matar o piedoso rei dos moabitas, possivelmente temente ao Deus de Israel, disse aos seus subordinados: “Segui-me, porque o Senhor entregou nas vossas mãos os vossos inimigos” (Jz 3:28).
Se fizermos uma leitura dessas e de determinadas outras narrativas bíblicas sob a perspectiva da estratégia política e bélica, portanto, verificaremos que o conceito de razão de Estado, que é usado a partir da Renascença, e que está presente na obra de Tácito sobre Roma, na realidade já era praticado na Política do Oriente Próximo, não só na opressão faraônica sobre os hebreus, mas também na própria estratégia de José, hebreu que governava o Egito e que levou toda a população a tornar-se escrava de Faraó, bem como, conforme vimos nos exemplos acima, na História de Israel e de outros povos.
A Razão de Estado pode ser verificada no conceito de Maquiavel de que ao príncipe não importa “incorrer na fama de ter certos defeitos, defeitos estes sem os quais dificilmente poderia salvar o governo, pois que, se considerar bem tudo, encontrar-se-ão coisas que parecem virtudes e que, se bem praticadas, lhe acarretariam a ruína, e outras que poderão parecer vícios e que, sendo seguidas, trazem a segurança e o bem-estar do governante”.(Maquiavel, O Príncipe, Cap. XV, p. 64. Os Pensadores. 2. ed. S. Paulo: Abril, 1979).
E Napoleão, ao comentar a afirmação de Maquiavel de que “la grandeza de los crímenes borrará la vergüenza de haberlos cometido”, afirma: “Triunfad siempre, aunque sea por los peores medios, y siempre os darán la razón”. (Apud Guillermo Fraile, Historia de la Filosofía, Vol. III,p. 303).
Poderíamos concluir essa breve abordagem da presença da Razão de Estado em fatos narrados na Bíblia fazendo uma comparação entre um texto do AT e um do Evangelho.
Vejamos o caso de Moisés, narrado no Êxodo. Apesar dos elementos mitológicos e idealizados dessa narrativa, Moisés é reconhecido como um personagem verdadeiro da História. Por ter liderado um povo que não tinha território por 40 anos, Rousseau o considerou o maior líder da antigüidade, e Freud afirma que Moisés, por ter comandado 600 mil homens, era mais que um líder sacerdotal e poderia ser considerado como um General formado pelo Egito.
Em torno dele havia uma esperança de caráter religioso e político. Nesse caso, a religião era uma ameaça à hegemonia, e poderíamos constatar, como reação, um dos primeiros registros de uma Razão de Estado por parte do rei egípcio que reinou após a morte de José. Para livrar-se da ameaça de um futuro libertador hebreu, o rei ordenou que os meninos recém-nascidos fossem mortos. O texto afirma: “O rei do Egito ordenou às parteiras hebréias, dizendo: Quando servirdes de parteira às hebréias, examinai: se for filho, matai-o; mas se for filha, que viva”. (Êx 1:15-16)
As parteiras deveriam logo afogar a criança no Rio Nilo, caso fosse do sexo masculino. Porém, por temor a Deus, não obedeceram a essa ordem homicida. Logo o rei do Egito mudou sua estratégia, como diz o texto: “Então ordenou Faraó a todo o seu povo, dizendo: a todos os filhos que nascerem aos hebreus lançareis no Nilo, mas a todas as filhas deixareis viver”. (Êx 1: 22) . Dessa forma, a perseguição passaria a ser praticada pela própria população, não só pelas autoridades. Mas o menino Moisés adentra o palácio como filho adotivo de uma princesa, é educado como príncipe e posteriormente liberta seu povo de origem.

Em relação à perseguição ao futuro libertador, há semelhanças entre essa narrativa do Êxodo e a narrativa do Evangelho de Mateus sobre o nascimento de Cristo, que foi interpretado por Herodes como uma ameaça à sua hegemonia. De acordo com o Evangelho, o rei da Judéia, procurando eliminar a ameaça de um futuro rei dos judeus, “mandou matar todos os meninos de Belém e de todos os seus arredores, de dois anos para baixo” (Mt 2:16). Aqui também já se pode verificar o uso da Razão de Estado.
Nos dois casos, isto é, em relação a Moisés e a Jesus, a Razão de Estado é tão contraditória e oportunista que admite que a autoridade civil se proclame como uma divindade ou um filho dos deuses e, ao mesmo tempo, mande assassinar crianças recém-nascidas.
Na obra Quo Vadis?, Henryk Sienkiewicz aplica o conceito de Razão de Estado a Nero, denunciando a prática antiga desse tipo de estratégia e de raciocínio pragmático pelos perseguidores dos cristãos. De acordo com sua narrativa literária, o Senador Sêneca afirmara que "os cristãos, posto que não tivessem incendiado Roma, deviam ser exterminados a bem da cidade, e que o massacre se justificava pela Razão de Estado”.
A obra também atribui a Nero a seguinte afirmação: “Os atos de um homem podem ser cruéis, quando o homem não o é”. E um dos mais leais servos de Nero, líder da Guarda Pretoriana, Tigellinus, teria dito para justificar o incêndio de Roma: “Não existem razões em ordens imperiais”.
E infelizmente, como vimos, esse procedimento é bem mais antigo, localizável também em líderes do povo de Deus, e denunciado por seus profetas.

domingo, 4 de julho de 2010

Hobbes: um profeta Pós-Reforma?

Ao meu saudoso pai, Epaminondas Soares de Carvalho, Presbítero Emérito da IPI do Brasil (1925-2008)

Do ponto de vista do contexto de suas idéias, é fundamental observar que o pensamento de Hobbes a respeito da soberania absoluta tinha antecedentes na História da Inglaterra, especialmente no caso de Henrique VIII (1491-1547). Este, em 1527, como pretendia repudiar sua mulher Catarina de Aragão e se casar com Ana Bolena, enfrentou a oposição do Papado, o qual, mesmo que estivesse defendendo os princípios da moral cristã em relação à família, apresentava elementos de controle social e político.
A rigor, em relação à soberania, os reis vinham de uma tradição de poligamia que deveria ser pensada não só em relação à moral social em diferentes povos, mas também em relação à própria razão de estado, pois, por exemplo, enquanto se pregava a fidelidade conjugal nos próprios profetas de Israel, os reis tomavam as mulheres que queriam, e enquanto a Igreja pregava sobre a família, os membros do clero não constituíam família, ou negavam o celibato na prpatica etc.
A interferência do Papado na sucessão do trono e na decisão de um monarca em relação ao seu divórcio e novo casamento poderia ser um bom exemplo daquilo que Hobbes viria a chamar, mais tarde, de usurpação do poder civil pela Igreja. Contra essa presunção absurda, Hobbes afirmará no Leviatã (1651): “Seja qual for o poder eclesiástico que assumam..., seu próprio direito, muito embora lhe chamem o direito de Deus, não passa de usurpação”. (Os Pensadores, 2. ed., p. 396).
Em 1534 Henrique VIII rompeu com Roma e o Parlamento o nomeou chefe supremo da Igreja Anglicana. Hobbes afirma aceitar como canônicos os livros reconhecidos pela autoridade da Igreja Anglicana e diz que o que entende “por livros das Sagradas Escrituras aqueles que devem ser o Cânone, quer dizer, as regras da vida cristã” e que “o problema das Escrituras é o problema de saber o que é lei, tanto natural quanto civil, para toda a cristandade”. (Idem, p. 225).
O pensador, assim, nesse aspecto adota uma interpretação da Bíblia reduzindo-a aos problemas da obediência civil, ou seja, ao reino os homens. Como faz na obra Do Cidadão (1642), reduzindo o que é essencial à salvação à afirmação: Só há salvação em Cristo”, buscada no Credo Niceno, no Leviatã ele afirmará:
“As Escrituras foram escritas para mostrar aos homens o reino de Deus, e preparar seus espíritos para se tornarem seus súditos obedientes; deixando o mundo, e a filosofia a ele referente, às disputas dos homens, pelo exercício de sua razão natural”. (Id., p. 49)
Hobbes parte da premissa de que “o conhecimento de toda lei depende do conhecimento do soberano poder”, isto é, de quem reina, mas apesar de suas críticas à Igreja, no Cap. XXX do Leviatã ele afirma “os súditos devem aos soberanos simples obediência em todas as coisas nas quais a sua obediência não é incompatível com as leis de Deus”. (Idem, p. 211). Deve, pois, diz o pensador, o cidadão saber o que são as leis de Deus, para saber se o que a lei civil ordena é contrário a elas ou não, pois, se não tiver esse conhecimento, poderá obedecer excessivamente ao poder civil e ofender a Divina Majestade ou, “com receio de ofender a Deus”, poderá transgredir os “mandamentos do Estado”. (Idem)
Como Hobbes deriva a legitimidade de qualquer religião do poder soberano, na realidade o cidadão deve, primeiro, obediência ao poder civil, que é a Pessoa Soberana, isto é, a instituição que lhe dá as garantias da vida, da liberdade e da paz civil. Logo, afirma o filósofo, nenhuma doutrina contrária a essa paz deverá ser ensinada na República. E como o caráter da associação é primeiramente civil, segue-se que a instituição eclesiástica, como qualquer outra, deverá submeter-se- ao soberano civil.
No cap. XLVI o pensador argumentará contra a Inquisição, dizendo que ela é um erro que não foi aprendido da Filosofia Civil de Aristóteles, do pensamento de Cícero ou de qualquer outro filósofo pagão. A inquisição estendia o poder dos cânones da Igreja aos próprios pensamentos e às consciências dos homens, mesmo que o discurso e a ação desses não se contradissessem, e punia aqueles que afirmavam a verdade de seus pensamentos, ou os constrangia a mentir, por medo do castigo.
A Igreja, por isso, diz Hobbes, laborava na mentira e na desobediência, a qual se dava de forma tripla: à razão, por negar a verdade; a Deus, que é a fonte de toda a verdade e à lei civil, pois se esta permitia a pluralidade de credos. (Idem, p. 394). Ora, se o próprio poder civil adotava a tolerância religiosa, por que a Igreja, que a ela deveria se submeter, controlaria as próprias consciências?
O totalitarismo dos imperadores romanos que perseguiam os cristãos foi imitado pela Igreja, que perseguiu tanto a cristãos discordantes quanto a não cristãos que laborassem na verdade, através da razão natural. Por isso, a Igreja não só usurpava o poder civil através do paulatino controle das consciências e do incentivo à desobediência civil, mas tornou-se ela mesma uma instituição herética, por obrigar quem conhecia a verdade a dizer a mentira. Para Hobbes, porém, quem deveria julgar se alguém era herege ou não seria o Estado, pois o que estava em jogo, agora, era a paz civil, e toda doutrina contrária a esta não deveria ser ensinada.
Hobbes, assim, ao demonstrar isso, poderia ser comparado a um profeta pós-Reforma que defende a obediência civil e a obediência a Deus, a qual permite tanto a desobediência às leis que se opõem à sua Palavra quanto ao clero decadente.
Seu objetivo é submeter a autoridade da Igreja ao poder civil e nesse sentido afirma que os textos das Escrituras, por si mesmos, não podem ser feitos leis a não ser quando esse poder é concedido pela autoridade da República, como verificamos na citação abaixo:
“E não são as Escrituras, em todos os textos que constituem lei, feitas lei pela autoridade do Estado, e consequentemente, uma parte da lei civil?”. (Idem, p. 394).
Da mesma forma, o filósofo afirma que os indivíduos particulares não têm permissão para interpretar a lei civil por seu próprio espírito, incluindo aí, obviamente, os líderes da instituição eclesiástica que pretendiam interpretar a lei civil de acordo com seus interesses, como ele já adiantara no Cap. XII do Leviatã, afirmando que a Igreja tinha leis e tribunais particulares, em favor de seus próprios interesses.
Semelhantemente, isto é, procurando reduzir a soberania ao Estado, Hobbes afirma que a pregação e o ensino do Evangelho e das Escrituras não deveria ser restrita aos que eram ordenados pela Igreja, mas, argumenta, desde que o Estado o permitisse, poderia ser feita por qualquer cidadão, pois do contrário a Igreja estaria negando uma liberdade concedida pelo poder civil, como afirma o filósofo:

“Um erro do mesmo tipo é também quando alguém exceto o soberano restringe em qualquer homem aquele poder que o Estado não restringiu, como fazem aqueles que se apropriam da pregação do Evangelho para uma certa ordem de homens, quando as leis o permitiram. Se o Estado me dá a liberdade para pregar, ou ensinar, isto é, não mo proíbe, nenhum homem mo pode proibir. Se me encontro entre os idólatras da América, deverei pensar que eu, que sou um cristão, muito embora não tenha ordens, cometo um pecado se pregar Jesus Cristo até ter recebido ordens de Roma? Ou que, tendo pregado, não devo responder a suas dúvidas e fazer-lhes uma exposição das Escrituras, isto é, que não devo ensinar?”.
Essa tese de Hobbes, bem como as demais citadas, sobre o excesso de poder do Papado, além de ser coerente com sua filosofia civil, ainda que não cite Lutero ou Calvino, pode ser claramenre deduzida de uma das doutrinas básicas da Reforma: o sacerdócio universal de todos os crentes.
Eis aí um mais um legítimo herdeiro da Reforma. Ele, que reconhecia que sua obra causava na Itália, a sede do Papado, maior impacto do que a obra de Lutero e de Galileu juntas.

sábado, 29 de maio de 2010

A Felicidade desta vida, a Religião e o Estado em Hobbes

Ao meu orientador, Prof. João Quartim de Moraes, por sua agudeza de espírito e por sua paciência

No Cap. XI do Leviatã, intitulado Das diferenças de costumes, Hobbes define os costumes como “aquelas qualidades que dizem respeito a uma vida em comum pacífica e harmoniosa”. Com essa definição demonstra a prioridade, em seu pensamento, da forma de se alcançar a paz civil, isto é, “a felicidade desta vida”, a qual não consiste no “repouso de um espírito satisfeito”, mas sim num “contínuo progresso do desejo”.

Opõe-se, assim, à existência de um fim último e de um bem supremo, afirmada por antigos filósofos morais. Hobbes não cita filósofo algum ao afirmar isso, porém é notório que a idéia de fim último é cara a Santo Agostinho, para quem o homem foi feito para Deus e não encontrará repouso enquanto para Ele não se voltar. Quando à afirmação do bem supremo ou Sumo Bem, é uma idéia imortalizada por Platão, para quem o Bem é a origem do próprio ser e do conhecimento da verdade, e seu pensamento é reinterpretado por Santo Agostinho com o complemento da Revelação, sendo o fim último do homem não a pólis terrena, mas a cidade eterna.

Nesse importante capítulo de sua Antropologia, Hobbes antecipa teses desenvolvidas no célebre Cap. XIII, conhecido por suas definições sobre a miséria humana quando não há um poder comum capaz de colocar a todos em respeito. O progresso do desejo do homem é explicado por Renato Janine Ribeiro de forma comparativa em relação à marcha da própria vida, idéia comum na época da redação do Leviatã e presente na literatura religiosa inglesa no célebre livro O Peregrino (The Pilgrim’s Progress from This World to That Which Is To Come) de John Bunyan, cuja primeira parte foi publicada em 1678 e a segunda em 1684.

A idéia de marcha ou progresso em direção a algum lugar, seja desta vida, ou do provir, era comum na mente dos ingleses do século XVII, e enquanto Bunyan concebe essa marcha rumo à vida eterna, Hobbes a limita aos desejos desta vida. Ele afirma como tese básica de sua Antropologia: “Assinalo assim, em primeiro lugar, como tendência geral de todos os homens, um perpétuo e irrequieto desejo de poder e mais poder, que cessa apenas com a morte”. Hobbes concebe a marcha do desejo do homem como algo infindável, pois o desejo se desloca de um objeto para outro, “não sendo a obtenção do primeiro outra coisa senão o caminho para conseguir o segundo”. Esse desejo de poder e mais poder não cessa senão com a morte, o que é dito de outra forma pelo autor ao afirmar que o homem, quando para de desejar, morre.

Já no Cap. XI o autor também antecipa a idéia pragmática da confiança da segurança da sociedade ao Estado, para que os homens possam levar uma vida quieta e sossegada, na qual possam desfrutar de seus desejos em paz, inclusive do desejo sensual.

No Cap. XIII a igualdade dos seres humanos é concebida como natural: “A natureza fez os homens tão iguais”, afirma o filósofo, a partir de cuja tese refutará argumentos que pudessem se opor, por exemplo: que há homens mais fortes, ou mais sábios. Se há mais fortes, os mais fracos podem unir-se para vencê-lo, ou o mais fraco, através de um secreto ardil, poderá derrotar o mais forte.

Quanto à existência de homens mais sábios, Hobbes diz que há poucos verdadeiramente sábios, mas que a prudência, que é aprendida através da experiência, é comum a todos os homens, o que demonstra a sua igualdade. Ironicamente o autor também que os homens são iguais em relação à presunção de serem mais sábios uns do que os outros, a vaidade, assim, é comum a todos.

A igualdade natural dos homens não garante a vida em segurança, pois quando dois deles desejam a mesma coisa, sendo impossível sua fruição por ambos, instaura-se a competição, e nesse estado de natureza as virtudes principais passam a ser a fraude e a antecipação ao outro, chegando os homens a uma situação em que nada pode ser injusto, pois Hobbes, aparentemente parafraseando o apóstolo Paulo, que afirmou que “eu não conheceria o pecado se a lei não dissesse: não matarás”, ou ainda: “onde não há lei, não existe pecado” (Carta aos Romanos), disse que “onde não há lei, não há injustiça”.

Assim, não há lugar para a indústria, o comércio, a arte, a filosofia, os homens têm um constante medo da morte violenta, a sua vida torna “miserável, embrutecida e curta”, e a razão sugerirá normas de paz que garantirão o convívio em respeito e conseqüentemente, em prazer entre os homens, os quais, por natureza, são lobos uns dos outros.

A "continua marcha do desejo", pois, leva os homens a usarem a razão para garantir-lhes a vida e seu gozo, a razão serve ao desejo fundamental, que é o da vida em paz. Dessa forma, os capítulos XI e XIII se complementam.

Porém, o filósofo coloca entre ambos uma reflexão dedicada à Religião, com o fito de demonstrar, ao final do capítulo XII, o qual é essencial na estrutura da obra, pois aí ele fala da religião como característica natural do homem, das religiões dos gentios, baseadas no medo, e de seu uso na política de forma oportunista, como se a vontade das autoridades civis fosse a vontade de Deus, bem como da religião daqueles que buscam as causas das coisas, chegando à concepção de uma causa não causada, à qual “os homens dão o nome de Deus”, o que foi reconhecido mesmo entre os pagãos, afirma o filósofo, mas nestes não havia necessariamente a adoração do Deus único, a qual, apesar de presente antes de Abraão, como em Abel e Noé, foi revelada a Abraão e aos seus descendentes, e selada através de um pacto, sob Moisés, que tanto era um líder político quanto sacerdotal, a respeito do que o filósofo tratará mais pormenorizadamente no Leviatã (Parte III), mostrando como, com a instauração da monarquia em Israel, o povo rejeitou o pacto com Deus e fez um pacto de obediência ao poder civil, comandado por Saul, que tinha um poder absoluto, dato pelo próprio Deus, donde o filósofo corroborará sua tese da obediência em primeiro lugar ao poder civil, o que já trabalhara antes em sua obra Do Cidadão.

Sobre a peculiaridade da religião ao homem, Hobbes afirma no cap. XII: “Verificando que só no homem encontramos sinais, ou frutos da religião, não há motivo para duvidar que a semente da religião se encontra também apenas no homem, e consiste em alguma qualidade peculiar, ou pelo menos em algum grau eminente dessa qualidade, que não se encontra nas outras criaturas vivas”.
Ele relaciona o desejo do conhecimento das causas com o reconhecimento de um único Deus eterno, como podemos verificar nas afirmações seguintes: “O reconhecimento de um único Deus eterno, infinito e onipotente pode ser derivado do desejo que os homens sentem de conhecer as causas dos corpos naturais, e suas diversas virtudes e operações, mais facilmente que do medo do que possa vir a acontecer-lhes nos tempos vindouros”. Aquele que de qualquer efeito que vê ocorrer... mergulhe profundamente na investigação das causas, deverá concluir que necessariamente existe um primeiro motor. Isto é, uma primeira e eterna causa de todas as coisas, que é o que os homens significam com o nome Deus.

Quanto ao medo como origem das religiões dos gentios, afirma o filósofo: “Alguns dos antigos poetas disseram que os deuses foram criados pelo medo dos homens, o que quando aplicado aos deuses (quer dizer, aos muitos deuses dos gentios), é muito verdadeiro”.

E sobre o uso que as autoridades civis fizeram do medo e da piedade dos povos, afirma o profeta, ou melhor, o filósofo: "Tão fácil é os homens serem levados a acreditar em a qualquer coisa por aqueles que gozam de crédito junto deles, que podem com cuidado e destreza tirar partido de seu medo e ignorância. Portanto os primeiros fundadores e legisladores de Estados entre os gentios, cujo objetivo era apenas manter o povo em obediência e paz, em todos os lugares tiveram os seguintes cuidados. Primeiro, o de incutir em suas mentes a crença de que os preceitos que ditavam a respeito da religião não deviam ser considerados como provenientes de sua própria invenção, mas como os ditames de algum deus, ou outro espírito, ou então de que eles próprios eram de natureza superior à dos simples mortais, a fim de que suas leis fossem mais facilmente aceites".

E acrescenta: "Os romanos, que tinham conquistado a maior parte do mundo então conhecido, não tinham escrúpulos em tolerar qualquer religião que fosse, mesmo na própria cidade de Roma, a não ser que nela houvesse alguma coisa incompatível com o governo civil. E não há notícia de que lá alguma religião fosse proibida, a não ser a dos judeus, os quais (por serem o próprio reino de Deus) consideravam ilegítimo reconhecer sujeição a qualquer rei mortal ou a qualquer Estado. E assim se vê como a religião dos gentios fazia parte de sua política".

E quanto à presença indevida da Igreja em assuntos civis, e à obviedade disso, indaga: “ - Haverá alguém que não seja capaz de ver para benefício de quem contribuía acreditar-se que um rei só recebe de Cristo sua autoridade no caso de ser coroado por um bispo? Que um rei, se for sacerdote, não pode casar-se? Que se um príncipe nasceu de um casamento legítimo ou não é assunto que deve ser decidido pela autoridade de Roma? Que os súditos podem ser libertos de seu dever de sujeição, se a corte de Roma tiver condenado o rei como herege?".

E assim conclui o Cap. XII, que é central em seu pensamento sobre a soberania absoluta do poder civil: “... De modo que posso atribuir todas as mudanças de religião no mundo a uma e à mesma causa, isto é, sacerdotes desprezíveis, e isto não apenas entre os católicos, mas até naquela Igreja que mais presumiu de Reforma”.

Metaforicamente poderíamos afirmar que, enquanto na pregação do apóstolo Paulo "o último inimigo a vencer é a morte", para Hobbes o último inimigo a vencer é a Igreja decadente, que não só entrou em decadência em relação à obediência à Palavra de Deus, mas imiscuiu-se em assuntos civis com a presunção de um poder terreno absoluto, em nome daquele que disse diante de Pilatos:

"O meu reino não é deste mundo".

domingo, 2 de maio de 2010

O Livro de Ester, a Honra e a Soberania Absoluta em Hobbes

Aos meus queridos pais, Epaminondas e Rosa, cuja vida está com Cristo em Deus.

Na Primeira Parte do Leviatã, no Cap. X, intitulado Do poder, valor, dignidade, honra e merecimento, Hobbes já antecipa sua argumentação sobre a soberania absoluta, isso especificamente em relação às honras civis, afirmando que “a fonte de toda honra civil reside na pessoa do Estado, e depende da vontade do soberano”.[1]

Para corroborar seu argumento com uma fonte bíblica, recorre ao Livro de Ester, no qual se narra a honra concedida por Assuero (Artaxerxes), Rei da Pérsia, ao judeu Mordecai. Hobbes dá ênfase ao texto da narrativa que diz: “Assim será feito àquele que o rei quiser honrar”.[2]

Esse argumento, obviamente, dirige-se contra as pretensões da Igreja de sobrepor-se ao soberano civil em relação a quem se deve honrar na sociedade e Hobbes ainda observa que a honra civil, por ser concedida pelo soberano, é temporária.

Hobbes define a honra dessa forma: “A honra consiste apenas na opinião de poder”, dando a seguir exemplos da variedade de ações que poderiam ser consideradas honrosas ou desonrosas, dependendo da opinião, e mesmo observando que muitos duelistas demonstram coragem, mas também outros lutam “para evitar perder reputação, e isso é opinião”.[3]

Hobbes afirma que o Estado é a fonte da honra e dos títulos de honra, e que estes “significam o valor que é atribuído pelo Estado” a duques, condes marqueses, barões e outros.[4] Faz uma explicação erudita sobre a origem e o significado desses títulos, observando que em muitos casos eles não significavam comando de quem os possuía. Depois disso, estabelece relações entre mérito (merecimento) e promessa, afirmando que só se tem mérito daquilo que se tem direito.

Em relação ao Livro de Ester, citado por Hobbes para justificar a origem da honra, façamos algumas breves observações. Desde o seu início, o livro trata da soberania absoluta do poder civil. Em primeiro lugar, mostra um decreto do rei Assuero sobre a obrigação das mulheres de obedecerem a seus maridos. Tal decreto foi posterior à desobediência da rainha Vasti ao rei, assim narrada no texto bíblico:

“Estando já o coração do rei alegre do vinho, mandou ... que introduzissem à presença do rei a rainha Vasti, com a coroa real, para mostrar aos povos e aos príncipes a formosura dela, pois era em extremo formosa. Porém a rainha Vasti recusou vir por intermédio dos eunucos, segundo a palavra do rei; pelo que o rei muito se enfureceu e se inflamou de ira”.[5]

O episódio se reveste de reflexões sobre a soberania, o que se torna claro na seguinte parte da narrativa:

“A rainha Vasti não somente ofendeu ao rei, mas também a todos os príncipes... A notícia do que fez a rainha chegará a todas as mulheres, de modo que desprezarão a seus maridos... As princesas da Pérsia e da Média, ao ouvirem o que fez a rainha, dirão o mesmo a todos os príncipes do rei... Que se inscreva nas leis dos persas e dos medos, e não se revogue, que Vasti não entre jamais na presença do rei Assuero; e o rei dê o reino dela a outra...” (Ester 1, 16-19)

Também na narrativa sobre a audiência de Ester com o rei se repete a questão da autoridade absoluta. Enquanto Vasti, tendo sido chamada à presença do rei, recusou-se a fazê-lo e foi deposta, Ester, agora feita rainha, não poderia comparecer diante da face do soberano sem ser chamada, pois isso lhe custaria a própria vida.

Ela era, na realidade, uma serva do rei. É o que diz o texto:
“Todos os servos do rei e o povo das províncias do rei sabem que para qualquer homem ou mulher que, sem ser chamado, entrar no pátio interior para avistar-se com o rei, não há senão uma sentença, a de morte, salvo se o rei estender para ele o cetro de ouro, para que viva”. [6]

É relevante destacar que o filósofo, após falar brevemente de 16 formas de honra no cap. X do Leviatã, afirma que “todas estas maneiras de honrar são naturais, tanto nos Estados como fora deles”.[7] Porém, ele observa que “nos Estados, onde aquele ou aqueles que detêm a suprema autoridade podem instituir os sinais de honra que lhes aprouver, existem outras honras”, isto é, além das mencionadas por ele anteriormente.[8]

Assim, Hobbes reconhece como única fonte da honra civil o soberano: “Um soberano pode honrar um súdito com qualquer título, ou cargo, ou emprego, ou ação, que ele próprio haja estabelecido como sinal de sua vontade de honrá-lo”.[9]

Observa-se nessa citação da narrativa bíblica do Livro de Ester a hermenêutica hobbesiana de forma clara: a honra provém do poder civil. Certamente Hobbes estava, como exímio intérprete do conteúdo político das Escrituras, opondo-se à presunção eclesiástica de sobrepor-se ao soberano civil e de fazer tamanha inversão na ordem das coisas da política a ponto de pretender coroar o soberano civil, que na realidade é quem legitima toda honra, e que mesmo define e autoriza as diversas formas de culto público, de forma a preservar a paz civil, que é o grande objetivo da luta de Hobbes.

Tanto pela leitura das Escrituras quanto pelas leis derivadas da razão, como expõe no Cap. XIV do Leviatã, Hobbes tem na paz seu grande objetivo, pois de um lado as Escrituras dizem: “Procura a paz e empenha-te por alcançá-la” e também: “É em paz que se semeia o fruto da justiça, para os que promovem a paz”.[10] E por outro lado a primeira parte da primeira lei de natureza, deduzida da simples razão, diz:

“Que todo homem deve esforçar-se pela paz, na medida em que tenha esperança de consegui-la”. [11]

Hobbes escreve sua obra política com argumentos tirados da razão e das Escrituras, visando convencer tanto a incrédulos quanto a crentes que seus argumentos sobre a necessidade da obediência ao poder civil, visando a paz, são verdadeiros, de onde quer que eles sejam deduzidos, da simples razão ou da revelação, cujo maior testemunho para Hobbes é a Escritura.

Notas:
[1] Leviatã, op. cit. Cap. X, p. 55.
[2] Ester 6:11.
[3] Leviatã, idem, p. 57.
[4] Idem, p. 58.
[5] Ester 1:10-12
[6] Ester 4:11
[7] Leviatã, op. cit., Cap. X, p. 55
[8] Idem, ibidem.
[9] Idem, ibidem.
[10] Salmos 34: 14 e Epístola de Tiago 3:18, respectivamente.
[11] Leviatã, op. cit., Cap. XIV, p. 78.

sábado, 20 de março de 2010

Hobbes e a Fé em Deus

Ao meu aluno Pedro Filho, grande incentivador deste blog. Que Deus o abençoe na bela Recife.

Hobbes afirma que o Reino de Deus não é civil e que “Deus na verdade reina lá onde suas leis são obedecidas não por medo aos homens, mas por medo a ele”. (De Cive, Parte III, Cap. XVI, 15, p. 304).

Mesmo que admitamos ser Hobbes, do ponto de vista da Ciência e da Filosofia Civil, um pensador cético, ele afirma que “há apenas um Deus” (De Cive, Cap. XVI, 18, p. 309).

Ele refuta o Panteísmo, reconhecendo Deus como causa do mundo, como se verifica nessa afirmação: “Dizer que o mundo é Deus é dizer que não há causa dele, isto é, que não existe Deus”. (Leviathan, Cap. XXXI, p. 215)

A respeito de suas próprias convicções é relevante a afirmação, feita na Encyclopaedia Britannica, de que ele nada afirmou que fosse contrário às confissões do Credo Niceno:

“...He maintened that since the abolition of the high court of commission there was no court of heresy to which he was amenable and that in any case nothing was be declared heresy but what was at variance with the Nicene creed, as the doctrine of Leviathan was not”.[1]

Mesma obra apresenta uma relevante síntese sobre o De Cive, enfatizando as teses de Hobbes sobre a interpretação da Escritura e as disputas religiosas e as formas do culto público:

“A Christian Church and a Christian State were one and the same body; of that body the sovereign is the head; the sovereign had therefore the right to interpret Scripture, to decide religious dispute and to determine the forma of public worship”. [2]

E prossegue, contextualizando a solução de Hobbes para o problema da paz civil, que era não só da Inglaterra, mas de outros Estados:

“Such, in brief, was Hobbes´s remedy for the sectarian controversies then disrupting the peace of so many European States”.[3]

Hobbes, portanto, escreveu não só em relação à política inglesa, sobre a qual, de acordo com Janine, ele faz “referências constantes, embora quase sempre implícitas”. [4] Como o principal, para o filósofo, é a preservação da vida e da paz, ele enuncia o princípio a seguir, o qual, apesar de suas divergências em relação a Aristóteles, está presente no gênio grego, ao afirmar que “... a ciência política deve ser, de todas, a primeira: porque ela diz respeito tão de perto aos príncipes, e a outros que têm por emprego o governar a humanidade...”.[5]

Ao final da Epistola Dedicatória do De Cive, ele escreve: “Que o Deus do céu coroe Vossa Senhoria com longa vida nesta estação mortal, e, na Jerusalém celestial, com uma coroa de glória” (p. 9-10). – Seria isso apenas uma formalidade, ou ele acreditava no que escrevia?

Ainda no De Cive, a obediência a Deus está em primeiro lugar, conforme o texto de Atos 5, 29 citado parcialmente por ele: “Então Pedro e os demais apóstolos afirmaram: Antes importa obedecer a Deus do que aos homens”. O que já fora dito antes, conforme Atos 4,19: “Mas Pedro e João lhes responderam: Julgai se é justo diante de Deus ouvir-vos antes a vós outros do que a Deus”. E esses textos certamente servem de base a Hobbes para afirmar que o cidadão não deveria obedecer a ordens contrárias à salvação.

Na mesma obra, dirigindo-se contra as querelas dos teólogos e dos concílios, quer católicos, quer presbiterianos, luteranos ou outros, Hobbes afirma que “o propósito dos evangelistas prova que para a salvação é necessário apenas crer num só artigo – que Jesus é o Cristo” (p. 367). É possível que o texto de I Pd 1,9, que afirma: “... Obtendo o fim da vossa fé, a salvação das vossas almas”, sirva de base a Hobbes para sua afirmação de que o artigo que basta para a salvação é o citado acima.

E considerando-se esse artigo essencial para a salvação eterna, a Igreja incorria em sérios erros em relação ao próprio Credo ao pretender dominar as consciências e o poder civil através do medo da danação e das diversas formas de controle. E como observa Renato Janine Ribeiro, muitas discussões e divisões, e mesmo guerras, eram feitas em torno de disputas teológicas que não dizem respeito ao essencial: a salvação.

E em relação ao conflito entre a obediência ao poder civil a obediência ao que é necessário para a salvação eterna, Hobbes afirma que o cidadão tanto recai em desobediência injusta ao príncipe, quanto pode desobedecer-lhe visando preservar a vida eterna, caso sua ordem seja contrária à salvação, confirmando, assim, a citação antes feita de atos, sobre importar mais obedecer a Deus que aos homens, afirmando: “Seria loucura de nossa parte não preferir morrer de morte natural, em vez de obedecer e morrer eternamente”. (p. 360).

Esse Hobbes nos parece mais um defensor do reino de Deus na consciência dos cidadãos que um defensor do deus mortal, o Leviatã, acima de quem está o Deus imortal.

[1] Encyclopaedia Britannica, Chicago: 1964, Vol. 11, p. 566. Autor do verbete: A. G. Wm (sic).
[2] Idem.
[3] Idem.
[4] Do Cidadão, p. XXIV da Apresentação de Renato Janine Ribeiro
[5] Idem, p. 12 do Prefácio do Autor ao Leitor

terça-feira, 16 de fevereiro de 2010

Críticas à Filosofia Escolástica no Leviatã

Dedico este breve texto ao meu pequeno filho Thomas, que leva o nome do filósofo em sua homenagem, agradecendo a Deus por preservá-lo conosco neste difícil início de 2010. Para a Glória D´Ele!

Neste breve texto procuramos demonstrar como Hobbes antecipa na Parte I do Leviatã sua crítica ao predomínio da Filosofia das Escolas e de qualquer autoridade que pretendesse colocar-se acima dos raciocínios baseados na Ciência, preparando o leitor para a demonstração de sua Filosofia Civil ao longo do Leviatã.

No Cap. I da obra, intitulado Da Sensação, Hobbes afirma que aquilo que era ensinado nas "escolas de Filosofia, em todas as Universidades da Cristandade, baseadas em certos textos de Aristóteles" era contrário não só à verdade, mas poderia ter um papel em relação à obediência civil, pois afirma:

"Não digo isto para criticar o uso das Universidades, mas porque, devendo mais adiante falar em seu papel no Estado, tenho de mostrar, em todas as ocasiões em que isso vier a propósito, que coisas devem nelas ser corrigidas, entre as quais temos de incluir a freqüência do discurso destituído de significado".[1]

Quanto à origem da religião dos gentios, Hobbes afirma que da “ignorância quanto à distinção entre os sonhos, e outras ilusões fortes, e a visão e a sensação, surgiu, no passado, a maior parte da religião dos gentios, os quais adoravam sátiros, faunos, ninfas, e outros semelhantes, e nos nossos dias a opinião que a gente grosseira tem das fadas, fantasmas e gnomos, e do poder das feiticeiras”.[2]

Quanto à feitiçaria, não admitia que nela houvesse “algum poder verdadeiro”, que tal atividade estava “mais próxima de uma nova religião do que de uma arte ou ciência”, e também que as feiticeiras eram justamente punidas, tanto devido à sua falsa crença quanto à sua prática, feita quando podiam.

Disso podemos inferir que Hobbes estava também antecipando ao leitor o que dirá mais adiante: que as doutrinas que não colaborassem para a paz civil deveriam ser proibidas pelo Estado.

Verifica-se aí a importância do esclarecimento em relação à obediência civil, a qual aparecerá de forma clara ao final do parágrafo citado, quando ele afirma: “Se desaparecesse esse temor supersticioso dos espíritos, e com ele os prognósticos tirados dos sonhos, as falsas profecias, e muitas outras coisas dele decorrentes, graças às quais pessoas ambiciosas e astutas abusam da credulidade da gente simples, os homens estariam muito mais bem preparados do que agora para a obediência civil”.[3]

Dessa forma, Hobbes apresenta na própria definição do Homem sua tese principal, a da necessidade da obediência civil para a consecução da paz, o que seria impossível sem o controle do Estado sobre as doutrinas a serem ensinadas, como ele afirmará mais adiante, no cap. XXX, onde tratará das doutrinas que devem ser ensinadas para a preservação da paz civil.

No Cap. II, ao tratar da Imaginação, partindo da afirmação de que "o homem não pode ter um pensamento representando alguma coisa que não esteja sujeita à sensação" e que "nenhum homem, portanto, pode conceber uma coisa qualquer, mas tem de a conceber em algum lugar, e dotada de uma determinada magnitude, e suscetível de ser dividida em partes", Hobbes dirige-se contra os teólogos de seu tempo, criticando o uso que a Religião fazia das visões e da ignorância do povo, considerando o conhecimento escolástico como sonho ou ilusão. [4]

Sobre as fadas e os fantasmas, afirma que a idéia deles foi concebida “com o objetivo ou expresso ou não refutado, de manter o uso do exorcismo, das cruzes, da água benta, e outras tantas invenções de homens religiosos”.[5] Mais adiante o autor ironizaria os padres, afirmando: “As fadas não se casam, mas entre elas há incubi, que copulam com gente de carne e osso. Os padres também não se casam”.[6]

No capítulo citado, a rigor, verifica-se o luteranismo de Thomas Hobbes, já demonstrado em sua obra Liberty, Necessity, and Change, onde, de acordo com Jürgen Overhoff, no diálogo que veio a tornar-se uma polêmica com o Arcebispo Bramhall, ele afirmara:

“The Reformed Churches had been first and foremost instructed by Luther, the first beginner of our deliverance from the servitude of the Romisch Clergy”.[7]

Hobbes estabelecera desde o início de sua reflexão política, já no Do Cidadão, portanto, uma luta contra a servidão das consciências individuais, da sociedade e do poder civil diante da Igreja. E quem conhecia a Bíblia como ele entenderia facilmente sua metáfora: ele referia-se, ao afirmar isso ao Arcebispo Bramhall, à longa servidão e à posterior saída dos filhos de Israel do Egito sob a liderança de Moisés, modelo de um novo libertador, Lutero, complementado por ele, Hobbes, em relação à autonomia do poder civil diante de qualquer instituição.

Por isso, ao final do Leviatã ele poderá dizer, ainda diante das ameaças do poder eclesiástico:
“A verdade que não se opõe aos interesses ou aos prazeres de ninguém é bem recebida por todos”.[8]

Hobbes tratará da Linguagem no Cap. IV do Leviatã. O filósofo, após referir-se à narrativa sobre Babel, de acordo com a qual houve uma confusão de Línguas e uma impossibilidade de comunicação e de consecução da obra proposta pelos homens passa a considerar a Linguagem, antes um dom de Deus, agora como uma criação humana.

A seguir, então, argumenta contra a Linguagem das Escolas, na qual estão presentes conceitos insignificantes, tais como: “entidade, intencionalidade, qüididade” e outros.[9] Hobbes observa que os nomes ditos universais designam, na realidade, coisas particulares: “... homem, cavalo, árvore, cada um dos quais, apesar de ser um só nome, é, contudo o nome de várias coisas particulares, em relação às quais em conjunto se denominam um universal, nada havendo no mundo universal além de nomes, pois as coisas nomeadas são, cada uma delas, individuais e singulares”.[10] E conclui a distinção conceitual afirmando que “enquanto o nome próprio traz ao espírito uma coisa apenas, os universais recordam qualquer dessas muitas coisas”.[11]

Em sua crítica dos conceitos universais é relevante o recurso à Geometria. Ele afirma que “... a conseqüência descoberta num caso particular passa a ser registrada e recordada, como uma regra universal... e faz que aquilo que se descobriu ser verdade aqui e agora seja verdade em todos os tempos e lugares”.[12]

A Geometria, portanto, é a ciência dos universais e o discurso que se utiliza das conseqüências de forma correta, pois nela começa-se pelas definições, colocadas no início dos cálculos. Aquilo que é descoberto geometricamente, aqui e agora, é verdade em todos os tempos. É nesse contexto conceitual que Hobbes afirma da Geometria “que é a única ciência que prouve a Deus conceder à humanidade”.[13]

E a análise das definições, partindo da Geometria, vai para a crítica da leitura daqueles que simplesmente avaliam as palavras “pela autoridade de um Aristóteles, de um Cícero, ou de um Tomás, ou de qualquer outro doutor que nada mais é do que um homem”. [14]

Para Hobbes, os maus raciocínios e a má leitura podem fazer com que as palavras, de “calculadores dos sábios”, se tornem “a moeda dos loucos”, quando aceitas sob o argumento da autoridade. Dessa forma, Hobbes vai minando a Escolástica e qualquer tradição de autoridade, seja filosófica ou religiosa, mas principalmente esta, desde o início de sua obra, preparando o espírito do leitor para que concorde com o argumento principal de sua obra, longamente sedimentado: o da soberania do Estado sobre a Igreja.

Continuando sua crítica às Escolas, classifica os nomes em positivos e negativos. Dos positivos fazem parte quatro grupos gerais, quais sejam: matéria ou corpo; acidente ou qualidade; propriedades dos nossos corpos pelas quais “estabelecemos distinções”; consideração dos próprios nomes e discursos.[15]

Em relação aos nomes negativos, afirma que eles indicam que “uma palavra não é o nome da coisa em questão” e que “todos os outros nomes nada mais são do que sons insignificantes, e estes são de duas espécies”. A primeira espécie consiste nos nomes novos, “cujo sentido ainda não foi explicado por uma definição”, observando que “desta espécie existem muitos, inventados pelos homens das Escolas e pelos filósofos confusos”.[16]

Depois, na mesma linha de raciocínio, acrescenta a segunda espécie: a dos nomes que são compostos por dois nomes, por exemplo: “corpo incorpóreo”, expressão que seria o mesmo que afirmar “quadrângulo redondo”.[17]

Verifica-se nas críticas às duas espécies a Geometria como modelo, devido à sua exigência quanto à precisão das definições. De acordo com Bobbio, “o verdadeiro fundador das ciências morais foi Hobbes”, devido à aplicação de um novo método, com base na Geometria, à análise da vida moral e política.[18]

Ele afirma que para Hobbes a desordem da vida social de sua época era devida a um problema de método e de interpretação, e estava vinculada a doutrinas falsas de escritores antigos e modernos, bem como ao sectarismo dos maus teólogos. Hobbes comparava a concórdia do campo da Matemática “com o reino da discórdia sem trégua em que se agitavam as opiniões dos teólogos, dos juristas e dos escritores políticos”. [19]

Assim, ainda de acordo com Bobbio, para Hobbes os males da humanidade seriam eliminados se fossem conhecidos em suas causas com a mesma certeza das “grandezas das figuras”. As leis de natureza, dessa forma, portanto, “sobre o que se deve fazer ou deixar de fazer”, são deduzidas da razão. [20] Assim, como a discórdia na sociedade civil tinha como uma de suas causas a discórdia dos teólogos, ele pretendia aplicar à moral e à política a mesma precisão da Geometria, tendo nessa ciência um modelo para a ciência política, da qual ele se considera o fundador, e para o alcance do maior bem da vida civil: a concórdia, isto é, a paz.

Notas:
[1] HOBBES. Leviatã ou Matéria, Forma e Poder de um Estado Eclesiástico e Civil. Trad. de João P. Monteiro e Maria B. N. da Silva. 2. ed. S. Paulo: Abril, 1979. Os Pensadores.
[2] Idem, p. 18.
[3] Idem. Para uma descrição detalhada de como essas escolas interpretavam a visão, a audição e o entendimento, e como Hobbes o fazia, ver p. 13 e 14.
[4] Idem, p. 23. Certamente ele está tratando de uma tese própria do empirismo, contrária também ao idealismo de René Descartes.
[5] Idem, p.18.
[6] Leviatã, Cap. CXLVII: Do benefício resultante de tais trevas, e a quem aproveita, p. 406. O termo incubus é assim definido no dictionary.reference.com: “An imaginary demon or evil spirit supposed to descend upon sleeping persons, esp. one fabled to have sexual intercourse with women during their sleep.” ´Por outro lado, succubus significa: “A demon in female form, said to have sexual intercourse with men in their sleep”. (Consulta realizada em 05-01-2010)
[7] Jürgen OVERHOFF, “The Luteranism of Thomas Hobbes”, in: History of Political Thought, XVIII, 4, p. 610. Thorverton, UK, 1997. O texto nos foi enviado pelo autor, gentilmente.
[8] HOBBES, Leviatã, op. cit., Revisão e Conclusão, p. 410.
[9] Leviatã, Cap. IV, p. 24
[10] Idem, p. 25.
[11] Idem, ibidem.
[12] Idem, p. 26.
[13] Idem, p. 27.
[14] Idem, p. 28.
[15] Idem, p. 28.
[16] Idem, p. 29 (todas as citações do parágrafo).
[17] Idem, ibidem.
[18] Norberto Bobbio, Sociedade e Estado na Filosofia Política Moderna, p. 19s.
[19] Idem, p. 20
[20] Idem, ibidem.