quarta-feira, 12 de setembro de 2012

Prenúncios do pensamento de Hobbes em relação à Igreja e ao Estado


O exame das relações entre a Igreja e o Estado já estava presente no pensamento de William de Ockham e Marsílio de Pádua. Bertrand Russel afirma que “alguns séculos antes que irrompesse a tempestade da Reforma, uma mudança gradual no clima intelectual abalara as antigas ideias relativas à supremacia da Igreja”. (B. Russell, História do Pensamento Ocidental, p. 256-257).

Observa o pensador que essa “revolta contra uma autoridade substituta entre Deus e o homem” avançou não só por si mesma, mas também devido aos abusos da Igreja que atraíram “a atenção dos homens para a disparidade entre o que pregava e o que praticava”. O fato do clero ser um grande proprietário, afirma Russell, “talvez não fosse censurável, a não ser porque seria difícil conciliar os ensinamentos de Jesus com o comportamento mundano de seus ministros”. (Idem, p. 257)

Quanto às relações entre a soberania civil e do Papado, Ockham afirmou a independência do primeiro em relação à Sé Romana. Em primeiro lugar, “Ockham já sustentara que o cristianismo podia funcionar sem a supremacia desenfreada do Bispo de Roma”. (Idem).

Em segundo lugar, a eleição imperial, para ele, não requeria a confirmação pontifícia. De acordo com Frederick Copleston, “Ockham defendeu firmemente a independência do Estado em relação à Igreja, e atacou fortemente o ‘absolutismo’ papal dentro da própria Igreja”. (Historia de la Filosofia, Vol. III: de Ockham a Suarez, p. 120)

Mantendo a distinção entre o poder espiritual e o temporal, Ockham afirma que “o Papa não é a fonte do poder e da autoridade imperial, e também que a confirmação pontifícia não é necessária para dar validade a uma eleição imperial”, e também que “se o Papa se atribui poder a si mesmo, ou trata de assumir poder na esfera temporal, está invadindo um território sobre o qual não tem jurisdição alguma”, pois “a autoridade do imperador não deriva do Papa, senão de sua eleição, na qual os eleitores ocupam o lugar do povo”. (Idem).

Por fim, um outro conceito de Ockham que pode ter influenciado o pensamento de Hobbes diz respeito ao conhecimento de Deus, pois de acordo com ele:

"Não é possível conhecer a Deus através da experiência sensorial e nada pode ser estabelecido a seu respeito por meio do nosso aparato racional. Acreditar em Deus e nos seus vários atributos depende da fé, e o mesmo ocorre com todo o sistema de dogmas acerca da Trindade, imortalidade da alma, criação e coisas semelhantes. Neste sentido, Ockham pode ser descrito como um cético, mas seria errôneo considerá-lo como um descrente. Ao limitar o alcance da razão e libertar a lógica dos obstáculos metafísicos e teológicos, ele fez muito para promover renovados esforços de investigação científica". (Idem, p. 228-229)

Não localizamos, quer na obra Do Cidadão, quer no Leviatã, qualquer referência direta, isto é, textual, de Hobbes a Ockham, mas de acordo com o Prof. Anthony Kenny, da Universidade de Oxford, o pensamento de William de Ockham, além de ter exercido influência histórica no estudo filosófico da Linguagem, e de ser um distintivo na crítica da Metafísica, é também significativo em relação à Política, tendo suas ideias exercido influência tanto sobre Martinho Lutero quanto sobre Hobbes.
Quanto ao pensamento de Marsílio de Pádua, Russel afirma:

"Marsílio de Pádua (1270-1342), amigo e companheiro de exílio de Ockham, opunha-se igualmente ao Papa e formulou ideias bastante modernas sobre a organização e a competência dos poderes seculares e espirituais. A soberania definitiva reside na maioria do povo em ambos os casos. Os Concílios Gerais devem ser constituídos por eleição popular. Só um Concílio assim teria o direito de excomungar, e ainda assim não sem a sanção secular. Os concílios deveriam se limitar a estabelecer as normas da ortodoxia, mas a Igreja não deve se imiscuir nos assuntos do Estado". (Op. cit., p. 226-227).

E François Châtelet afirma, em relação à contribuição de Marsílio de Pádua para a teoria moderna da soberania:

"O extraordinário mérito de Marsílio de Pádua consiste em definir o que irá ser o Estado laico no sentido do cristianismo. Ele considera a sociedade como um todo que, enquanto tal, é anterior e transcendente em relação a suas partes: ela poder ser apenas a universitas civium – a universalidade dos cidadãos (ou sua melhor parte) – que tem como função legislar, editar as leis necessárias à manutenção do todo; ela designa em seu seio um pars principans – um Príncipe (individual ou coletivo) – que tem a seu encargo a coerção e a gestão. Lançou-se assim o dispositivo teórico que permitirá o advento do conceito político de soberania, ou seja, o conceito moderno do Estado". (História das Ideias Políticas, p. 34-35).

Quanto à autoridade papal e às relações entre a Igreja e o poder civil no pensamento de Marsílio, complementa Châtelet:

"Paralelamente a essa defesa da autonomia e da unidade radical da sociedade política, Marsílio recusa a autoridade papal: a Igreja não é mais do que um nome para designar o conjunto de crentes; não poderia ter um chefe; e os padres, encarregados de preparar os cidadãos para a salvação, dependem do Príncipe, tanto quanto os demais cidadãos; e isso nos quadros da lei". (Idem, p. 35)

No pensamento medieval se desenvolveram outras teses libertadoras que exerceram influência no pensamento político moderno, além das já mencionadas. Os limites do poder papal estão presentes também em outros pensadores da Idade Média, dos quais faremos também breves menções, devido à sua importância para um diálogo com o antipapismo de Hobbes.
O próprio Tomás de Aquino afirmou que “nas matérias que se referem ao bem da cidade (bonum civile), cumpre obedecer antes ao poder secular do que ao poder espiritual, segundo esta palavra de São Mateus (22.21): Dai a César o que é de César”. (E. Gilson, A Filosofia na Idade Média, p. 713).

Porém, um pensador radical em relação ao poder papal foi João de Paris (Jean Quidort), que na obra De potestate regia et papali afirmou que “o Concílio tem o direito de depor o Papa em caso de heresia ou escândalo, porque a ‘vontade do povo’, que se expressa então pelo concílio ou pelos cardeais, é mais forte do que a do Papa”. (Idem, p. 716).
Outro pensador de peso na análise dessa questão é Dante, que afirmava que o homem tem duas beatitudes: uma, a “felicidade acessível pela vida ativa no âmbito político da cidade”, outra, a “beatitude contemplativa da vida eterna”, as quais são alcançadas por meios distintos. Alcança-se a primeira através da Filosofia, e a segunda pelos “ensinamentos espirituais que transcendem a razão humana”, desde que se regulem as ações morais pelas virtudes teológicas da fé, da esperança e da caridade. (Idem, p. 719).

Há, então, dois soberanos: o Pontífice e o Imperador, e “esses dois poderes são últimos e supremos”, cada um em sua ordem. Não se encima um ao outro, mas Deus está acima de ambos, e ele “é o único a escolher o Imperador, o único a confirmá-lo e o único que pode julgá-lo”, e “é de Deus, não do Papa, que o Imperador recebe diretamente sua autoridade”. (Idem, p. 720).

Isso significa, conclui Gilson, que A Monarquia de Dante “anunciava o acordo, sob a autoridade suprema de Deus, de dois universalismos justapostos”, um no universo temporal, o outro no espiritual. Essa forma de raciocinar, portanto, conclui Gilson, demonstra que Dante quis libertar o monarca universal da Igreja, à qual, porém, muitos pensadores, antes e depois dele, quiseram mantê-lo submisso. (Idem).

Os limites do poder eclesiástico são afirmados também, com clareza, num documento histórico da Reforma, a Confissão de Augsburgo, escrita em 1530 por Melanchton, da qual Lutero disse: “Eu nada sei como melhorá-la ou modificá-la”. (Martin Dreher: Introdução à sua tradução da citada Confissão, in: http://www.portalsaofrancisco.com.br)

O Artigo 28 dessa Confissão afirma a diferença entre o poder eclesiástico e o poder político, denunciando o fato de que os pontífices, além de terem onerado as consciências e promovido violentas excomunhões, “também se lançaram à empresa de transferir reinos do mundo e tirar o poder dos imperadores”. Porém, afirma a Confissão, “por causa do mandamento de Deus, ambos (o poder eclesiástico e o poder político) devem ser escrupulosamente venerados e honrados como os maiores benefícios de Deus na terra”. (Confissão de Augsburgo, idem).

A afirmação da separação entre ambos na visão de mundo luterana se torna mais evidente na citação da Confissão que fazemos abaixo, cujos conceitos, apesar das diferentes formas de expressá-los através dos tempos, já estavam presentes no Novo Testamento, foram repetidos na Idade Média por vários autores e no século XVI tanto por Lutero quanto por João Calvino, e por Hobbes:

"O magistrado defende não as mentes, porém os corpos e as coisas corpóreas contra manifestas injustiças, e reprime os homens com a espada e penas temporais... Não se devem confundir, por isso, o poder eclesiástico e o civil. O poder eclesiástico tem sua própria incumbência: ensinar o evangelho e administrar os sacramentos. Não deve invadir ofício alheio, transferir reinos do mundo, ab-rogar as leis dos magistrados, abolir a obediência legítima, impedir julgamentos a respeito de quaisquer ordenações ou contratos civis, prescrever leis aos magistrados sobre a forma de constituir a coisa pública". (Idem).

Concluindo, por ora, esta abordagem sobre o pensamento de Hobbes, e longe de pretender esgotar o tema, observemos novamente uma afirmação de Bertrand Russell sobre o pensador de Malmesbury: “Hobbes era um ferrenho adepto de Erasto e, portanto, sustentava que a Igreja deve ser uma instituição nacional, sujeita às autoridades civis”. (B. Russell, op. cit., p. 276).

Thomas Lieber, que ficou mais conhecido como Thomas Erastus, nasceu em Baden, estudou Filosofia, Teologia e Medicina e foi professor de Medicina em Heidelberg. Em sua época Heidelberg era um importante centro de discussão teológica e uma cidade de refúgio para religiosos de diversas confissões de fé. Porém, cada novo governante impunha sua visão religiosa sobre os cidadãos.

De acordo com Erastus, a Igreja não poderia desempenhar funções que pertenciam ao poder civil, como punir alguém em razão de sua discordância de um princípio de fé, ou atentar contra sua integridade física, privá-lo da propriedade, da liberdade ou matá-lo, pois isso cabe, por direito. Para ele a Igreja também não tinha o direito de negar a comunhão (Eucarista) aos discordantes de seus dogmas e de suas decisões conciliares.

De acordo com o historiador Kenneth Scott Latourette, no século XVI, “onde os governantes eram professadamente cristãos, fossem protestantes, católicos romanos ou ortodoxos, eles eram dominantes”. Nos países luteranos e na Inglaterra, isso foi apoiado por muitos dirigentes da Igreja que se baseavam no princípio chamado “erastianismo”, que afirmava a supremacia do Estado em matéria eclesiástica. E em lugar de concordar com as punições aplicadas pelas igrejas aos seus membros, Erastus (1524-1583) sustentava que “os pecados dos cristãos deveriam ser castigados pelas autoridades civis e não pelas religiosas”. Latourette afirma ainda que, de acordo com essa doutrina, a Igreja tem, de fato, uma esfera de ação distinta em relação ao Estado, mas “deve ser controlada por ele”. (Historia del Cristianismo,1983, p. 354).

Em Heildelberg Erastus se opôs ao inglês George Wither, “porta-voz dos calvinistas, que queriam impor seu Credo no Palatinado, independente da autoridade civil”. Suas doutrinas teológicas e civis foram expostas na obra Explicatio gravissimmae quaestionis, publicada postumamente em Londres, em 1589. A obra “se situa na perspectiva de um Estado confessional e reservava ao poder civil o direito e o dever de intervir em todos os domínios religiosos, e compreende dentro de suas sanções a excomunhão”. Segundo seu pensamento, “reconhece-se aos representantes do Estado, qualquer que seja a religião que eles professem individualmente, o direito de legiferar em matéria religiosa sobre a Igreja estabelecida”. (Encyclopaedia Universalis. Peter F. Baumberger (Ed.). Paris, 1989-1990, p. 1180).

Com base nesse princípio, na Inglaterra do Séc. XVI, inicialmente sem uma definição litúrgica após a estatização da Igreja por Henrique VIII, foi publicado o Livro de Oração Comum sob Eduardo VI em 1549, normatizando a liturgia, pois o culto devia ser submisso ao Estado, como defendia Hobbes nas obras Do Cidadão e Leviatã, pois para o filósofo inglês é esse, afinal, o significado da expressão “culto público”: um culto permitido pelo soberano civil. As ideias de Erastus se expandiram na Inglaterra e posteriormente influenciaram o pensamento de Hobbes.

Teologicamente, Erastus era seguidor de Ulrich Zwingli e nas conferências teológicas de Heildelberg (1560) e Maulbronn (1564) ele opôs à doutrina luterana da Ceia a interpretação de Zwingli, tendo adquirido reconhecimento no trato de questões teológicas. Sua obra citada acima, Explicatio gravissimmae quaestionis, originalmente circulou como manuscrito, contendo 100 teses, as quais depois foram reduzidas a 75. (The Encyclopedia Americana: the international reference work, Vol. X, New York, 1959, p. 468)

Théodore de Bèze, primeiro reitor da academia fundada por Calvino em Genebra em 1559, vindo depois a tornar-se seu sucessor, escreveu uma réplica a Erastus, a qual foi publicada em 1590. Erastus foi excomungado em 1570 por um concílio presbiteriano sob a acusação de anti-trinitariasmo. Porém, foi restaurado em 1576, e a partir de 1580 ele foi para Basel, onde lecionou Medicina e Ética. Erastus se opunha à severa disciplina do Calvinismo, afirmando na Explicatio que nas Escrituras não se garante que a Igreja tenha a autoridade para punir seus ofensores. Antes, ele entende que os atos de disciplina pertencem ao magistrado civil. A partir dessa ideia foi que se desenvolveu o conceito de “erastianismo”, significando a subordinação da Igreja ao Estado, mas essa doutrina, tal como se desenvolveu depois dele, não significa, necessariamente, que ele a tenha sistematizado, ou que seja seu fundador, como ocorre amiúde na História das doutrinas, das ideias e das práticas humanas. (Idem, p. 468-469).

Quantos aos outros autores citados,é impossível afirmar com certeza o que Hobbes conhecia de seu pensamento, ou se ele conhecia a Confissão de Augsburgo, mas encontram-se semelhanças entre seus conceitos.

Quanto a William of Ockham, o Prof. Anthony Kenny, autor da obra A New History of Western Philosophy, publicada inicialmente em Oxford em 2004, e já traduzida no Brasil, nos afirmou: “I am not aware of any evidence that Hobbes read Ockham's political writings, and I think it very unlikely that he did so”. (Por email, em 13-07-2012).

De todo modo, Hobbes afirma no Cap. XLII do Leviatã, citando Mt 6.24: “O próprio Cristo nos disse ser impossível... servir a dois Senhores”. Esta é uma afirmação do Evangelho que dificilmente seria desconhecida dos autores mencionados neste artigo, e com a qual eles certamente concordariam, mesmo se ignorassem a sua presença no texto sagrado.