Aos interessados em Filosofia da Religião e na teoria da Soberania, compartilho o Cap. IV de minha tese de doutorado em Filosofia pela Unicamp, defendida em 2012.
Prof. Dr. Isaar Soares de Carvalho.
Quanto à Religião, Hobbes faz inicialmente uma
breve observação sobre a feitiçaria no Cap. II do Leviatã, afirmando que não admitia que nela houvesse “algum poder
verdadeiro” e essa atividade estava “mais próxima de uma nova religião do que de
uma arte ou ciência”, e também que as feiticeiras eram justamente punidas,
tanto por sua falsa crença quanto por sua prática enganosa. Das falsas crenças
e das práticas enganosas mencionadas podemos inferir que Hobbes estava também
antecipando ao leitor o que dirá mais adiante: que as doutrinas que não
colaborassem para a paz civil deveriam ser proibidas pelo Estado.
Verifica-se aí a importância do
esclarecimento em relação à obediência civil, a qual aparecerá de forma clara
quando ele afirma:
Se desaparecesse esse temor supersticioso dos
espíritos, e com ele os prognósticos tirados dos sonhos, as falsas profecias, e
muitas outras coisas dele decorrentes, graças às quais pessoas ambiciosas e
astutas abusam da credulidade da gente simples, os homens estariam muito mais
bem preparados do que agora para a obediência civil. [1]
Dessa forma, Hobbes apresenta, na
própria definição do Homem, sua tese principal, a da necessidade da obediência
civil para a consecução da paz, o que seria impossível sem o controle do Estado
sobre as doutrinas a serem ensinadas, como ele afirmará mais adiante, no cap.
XXX, onde tratará especificamente daquilo que o soberano permitirá que faça parte do credo religioso, tendo em vista a preservação
da paz civil. Para Hobbes, toda doutrina contrária à paz é falsa.
Sobre as fadas e os fantasmas, no Cap. III do Leviatã Hobbes afirma que a ideia sobre
eles foi concebida “com o objetivo ou expresso ou não refutado, de manter o uso
do exorcismo, das cruzes, da água benta, e outras tantas invenções de homens
religiosos”.[2] Mais adiante o autor
ironiza os padres, afirmando que “as fadas não se casam, mas entre elas há incubi,
que copulam com gente de carne e osso. Os padres também não se casam”.[3]
No capítulo citado verifica-se também o luteranismo de
Thomas Hobbes, já demonstrado em sua obra Liberty,
Necessity, and Change, onde, de acordo com Jürgen Overhoff, no diálogo que
veio a tornar-se uma polêmica com o Arcebispo
Bramhall, ele afirmara: “The Reformed Churches had been first and foremost
instructed by Luther, the first beginner of our deliverance from the servitude
of the Romisch Clergy”.[4]
Hobbes estabelecera, já na obra Do Cidadão, uma luta contra a servidão das consciências
individuais, da sociedade e do poder civil diante da Igreja. E quem conhecia a
Bíblia como ele entenderia facilmente sua metáfora: ele referia-se, ao afirmar
isso, à longa servidão e à posterior saída dos filhos de Israel do Egito sob a
liderança de Moisés, modelo de um novo libertador, Lutero, complementado agora
por ele, Hobbes, em relação à autonomia do poder civil diante da instituição
religiosa. Por isso, sua afirmação final do Leviatã
será: “A verdade que não se opõe aos interesses ou aos prazeres de ninguém
é bem recebida por todos”. [5]
No Cap. VI do Leviatã ele
apresenta as diferenças entre superstição, religião e religião verdadeira, ao
afirmar:
O medo dos poderes
invisíveis, inventados pelo espírito ou imaginados a partir de relatos
publicamente permitidos, chama-se religião; quando esses não são permitidos,
chama-se superstição. Quando o poder imaginado é realmente como o imaginamos,
chama-se verdadeira religião. [6]
Observa-se nessa afirmação
sua tese de que a religião só será reconhecida como tal se for autorizada pelo
poder civil, bem como a dificuldade para se definir a natureza de Deus e o que
ele realmente fala. É devido a tal dificuldade que Hobbes usa o Subjuntivo:
“quando o poder imaginado é realmente como o imaginamos, chama-se verdadeira
religião”. [7]
Objetivando a obediência e
a paz civil, Hobbes pretende reduzir as ordens de Deus às ordens do soberano
civil. Não se deve incentivar a desobediência civil sob o pretexto da
obediência a Deus, como faziam o Papado e a Filosofia das Escolas, através de
seus discursos desprovidos de sentido, que provocavam a desobediência civil e
ameaçavam a paz.
No Cap. VII do Leviatã
o filósofo trata dos significados da fé. Ele começa por tratar da fé nas
pessoas para depois chegar ao seu objetivo, que é o de diferenciar a fé em Deus
da fé na autoridade da Igreja, concluindo que “seja o que for que acreditarmos,
tendo como única razão para tal a que deriva apenas da autoridade dos homens e
de seus escritos, quer eles tenham ou não sido enviados por Deus, nossa fé será
apenas nos homens”. [8]
Com isso, Hobbes alerta seu leitor para o fato de que
mesmo as Escrituras, ao testemunharem sobre Deus, são obras dos homens, mas seu
principal objetivo é demonstrar ao leitor que se deve ter cautela em relação ao
magistério eclesiástico, que define tanto o que é canônico quanto as regras de
interpretação do texto, o que é heresia, o que é verdade e o que é um poder
civil legítimo, interferindo, em nome da religião revelada, em todas as esferas
da vida civil.
Hobbes afirma, portanto, desde essa primeira parte do Leviatã, paulatinamente, que o homem,
qualquer confissão de fé que adote, deve prestar obediência ao soberano civil,
visando a paz, o que demonstraremos com mais detalhes no decorrer do trabalho.
Quanto à
religião e à natureza humana, Hobbes afirma no Cap. XII do Leviatã:
Verificando que só no homem
encontramos sinais, ou frutos da religião, não há motivo para duvidar que a semente
da religião se encontra também apenas no homem, e consiste em alguma qualidade
peculiar, ou pelo menos em algum grau eminente dessa qualidade, que não se
encontra nas outras criaturas vivas. [9]
Os frutos da religião diferenciam-se entre as religiões dos gentios e a
religião daqueles que buscam as causas das coisas. Sendo assim, as sementes da religião, além de serem cultivadas
por homens que “as alimentaram e ordenaram segundo sua própria invenção”, como
os gentios, também foram cultivadas por aqueles “que o fizeram sob o mando e
direção de Deus”.[10]
Porém, Hobbes afirma que o objetivo, em ambas as espécies de religião,
era levar os que confiavam em seus autores a “tender mais para a obediência, as
leis, a paz, a caridade e a sociedade civil”. [11]
A primeira espécie de
religião, afirma Hobbes, faz parte da política humana, enquanto a segunda “é a
política divina, que encerra preceitos para aqueles que se erigiram como
súditos do Reino de Deus” e desta fazem parte, afirma Hobbes, “Abraão, Moisés e
nosso abençoado Salvador, dos quais chegaram até nós as leis do Reino de Deus”.
[12]
Quanto à origem da religião dos gentios, no Cap. II do Leviatã Hobbes afirma que da “ignorância
quanto à distinção entre os sonhos, e outras ilusões fortes, e a visão e a
sensação, surgiu, no passado, a maior parte da religião dos gentios, os quais
adoravam sátiros, faunos, ninfas, e outros semelhantes, e nos nossos dias a
opinião que a gente grosseira tem das fadas, fantasmas e gnomos, e do poder das
feiticeiras”. [13]
Tais religiões, afirma Hobbes, são baseadas no medo. Nesse sentido, ele
afirma que “alguns dos antigos poetas disseram que os deuses foram criados pelo
medo dos homens, o que quando aplicado aos deuses (quer dizer, aos muitos
deuses dos gentios) é muito verdadeiro”.[14] Esses deuses, inventados
devido à ignorância que a maioria dos homens têm das causas, eram tantos que
Hobbes observa “que havia entre os pagãos quase tão grande variedade de deuses
como de atividades”.[15]
Hobbes ainda observa que e
as autoridades e os legisladores dentre os gentios valiam-se disso para manter
o domínio sobre a população e evitar revoltas, inventando deuses e associando
determinados problemas a algum erro na adoração das divindades, como citamos a
seguir:
Os primeiros
fundadores e legisladores de Estados entre os gentios, cujo objetivo era apenas
manter o povo em obediência e paz, em todos os lugares tiveram os seguintes
cuidados. Primeiro, o de incutir em suas mentes a crença de que os preceitos
que ditavam a respeito da religião não deviam ser considerados como
provenientes de sua própria invenção, mas como os ditames de algum deus, ou
outro espírito, ou então de que eles próprios eram de natureza superior à dos
simples mortais, a fim de que suas leis fossem mais facilmente aceites... Em
segundo lugar, tiveram o cuidado de fazer acreditar que aos deuses desagradavam
as mesmas coisas que eram proibidas pelas leis. Em terceiro lugar, o de
prescrever cerimônias, suplicações, sacrifícios e festivais, os quais se devia
acreditar capazes de aplacar a ira dos deuses; assim como, que da ira dos
deuses resultava o insucesso na guerra, grandes doenças contagiosas,
terremotos, e a desgraça de cada indivíduo; e que essa ira provinha da falta de
cuidado com sua veneração, e do esquecimento ou do equívoco em qualquer aspecto
das cerimônias exigidas.[16]
Além disso, em relação ao
caráter de manipulação e de dominação da religião entre os gentios, Hobbes
afirma:
Às formas de veneração
que os homens naturalmente consideravam próprias para oferecer a seus deuses, tais
como sacrifícios, orações e ações de graças..., os mesmos legisladores dos
gentios acrescentaram suas imagens, tanto em pintura como em escultura. A fim
de que os mais ignorantes (quer isto dizer, a maior parte, ou a generalidade do
povo), pensando que os deuses em cuja representação tais imagens eram feitas
nelas realmente estavam incluídos, como se nelas estivessem alojados, pudessem
sentir perante elas ainda mais medo.[17]
Quanto à segunda forma da religião identificada por Hobbes, ela é advinda
do interesse dos homens pelo conhecimento das causas, os quais, indo dos
efeitos para as causas, chegam à concepção de uma causa não causada, à qual
“dão o nome de Deus”, o que, afirma o filósofo, foi reconhecido mesmo entre os
pagãos, mas entre eles não havia necessariamente a adoração do Deus único.
Ele relaciona o desejo do
conhecimento das causas com o reconhecimento de um único Deus eterno, como
podemos verificar nas afirmações seguintes:
O reconhecimento de um único
Deus eterno, infinito e onipotente pode ser derivado do desejo que os homens
sentem de conhecer as causas dos corpos naturais, e suas diversas virtudes e
operações, mais facilmente que do
medo do que possa vir a acontecer-lhes nos tempos vindouros. Aquele que de qualquer efeito que vê ocorrer...
mergulhe profundamente na investigação das causas, deverá concluir que
necessariamente existe um primeiro motor. Isto é, uma primeira e eterna causa
de todas as coisas, que é o que os homens significam com o nome Deus. [18]
Para Hobbes, porém, a rigor, Deus, devido à sua natureza, não é um objeto
de estudo da Filosofia. Ele definira isso bem antes, n´Os Elementos da Lei Natural e Política (1640), ao afirmar:
Assim como Deus Todo-Poderoso é
incompreensível, segue-se que nós não podemos ter uma concepção ou imagem da
Divnidade, e consequentemente todos os seus atributos significam a nossa
inabilidade e impotência para conceber qualquer coisa concernente à sua
natureza, e não alguma concepção sua, excetuando-se apenas esta, que existe
Deus. Afinal, os efeitos que naturalmente reconhecemos envolvem uma potência
que os produziu antes que eles tivessem sido produzidos; e essa potência pressupõe
alguma coisa existente que a tenha enquanto potênca. E a coisa que assim existe
como potência para produzir, se não fosse eterna, deveria ter sido produzida
por alguma outra anterior a ela, e esta novamente por outra anterior a ela, até
que chegássemos a uma eterna, ou seja, à potência primeira de todas as
potências, e causa primeira de todas as causas. E esta é aquela que todos os
homens concebem pelo nome de Deus, envolvendo eternidade, incompreensibilidade
e onipotência. E então todos que o considerarem poderão saber que Deus existe,
mas não o que ele é. Mesmo num homem que tenha nascido cego, embora não seja
capaz de ter qualquer imaginação acerca de que tipo de coisa é o fogo, ainda
assim ele não pode deixar de saber que existe alguma coisa a que os homens dão
o nome de fogo, porque ela o esquenta. [19]
E no Leviatã
ele afirmará, 11 anos depois:
A curiosidade, ou amor pelo conhecimento das causas,
afasta o homem da contemplação do efeito para a busca da causa, e depois também
da causa dessa causa, até que forçosamente deve chegar a esta ideia: que há uma
causa da qual não há causa anterior, porque é eterna; que é aquilo a que os
homens chamam Deus. De modo que é impossível proceder a qualquer investigação
profunda das causas naturais, sem com isso nos inclinarmos para acreditar que
existe um Deus eterno, embora não possamos ter em nosso espírito uma ideia dele
que corresponda à sua natureza. Porque tal como um homem que tenha nascido
cego, que ouça outros falarem de irem aquecer-se junto ao fogo, e seja levado a
aquecer-se junto ao mesmo, pode facilmente conceber, e convencer-se, de que há
ali alguma coisa a que os homens chamam fogo, e é a causa do calor que sente,
mas é incapaz de imaginar como ele seja, ou de ter em seu espírito uma ideia
igual à daqueles que veem o fogo; assim também, através das coisas visíveis
deste mundo, e de sua ordem admirável, se pode conceber que há uma causa dessas
coisas, a que os homens chamam Deus, mas sem ter uma ideia ou imagem dele no
espírito.[20]
Na obra Sobre o Corpo Hobbes afirma que Deus é “eterno, não-gerado,
incompreensível”.[21]
E na obra Do Cidadão explica que
“eterno” significa fora do tempo. Ora, isso só pode ser entendido como uma
forma de demonstrar a veneração de Deus, pois se tudo o que existe está no
tempo, logo não existiria Deus. Porém ao chamá-lo de eterno, certamente o homem
está querendo dizer que Ele, apesar de estar no tempo, não tem uma existência
temporalmente limitada. Porém, explicar a sua natureza não é possível.
No Leviatã
ele reafirmará que a linguagem usada em relação à natureza de Deus é uma forma
de veneração, conforme se segue:
Seja o que for que
imaginemos é finito. Portanto não existe qualquer ideia ou concepção, de algo
que denominamos infinito. Nenhum homem pode ter em seu espírito uma imagem de
magnitude infinita, nem conceber uma velocidade infinita, um tempo infinito, ou
uma força infinita, ou um poder infinito. Quando dizemos que alguma coisa é
infinita, queremos apenas dizer que não somos capazes de conceber os limites e
fronteiras da coisa designada, não tendo concepção da coisa, mas de nossa
própria incapacidade. Portanto o nome de Deus é usado, não para nos fazer
concebê-lo (pois ele é incompreensível e sua grandeza e poder são
inconcebíveis), mas para que o possamos venerar. [22]
A rigor, porém, a natureza de Deus não era conhecida
pelos próprios grandes profetas, como afirma o texto do Segundo Isaías:
“Verdadeiramente, tu és Deus misterioso, ó Deus de Israel, ó Salvador”.[23] Como profundo conhecedor
da Bíblia, Hobbes certamente conhecia esse texto de Isaías, que na Vulgata Latina é assim traduzido: “Vere tu es Deus absconditus Deus Israël
salvator”.
Essa
afirmação é citada por Pascal na conclusão do Pensamento 242, quando trata da
natureza de Deus, e logo adiante, no Pensamento 248, ele afirmará: “La
foi est différente de la preuve; l'une est humaine, l'autre est le don de
Dieu”. [24]
Quanto ao fato de Hobbes admitir apenas que o homem pode afirmar que Deus
existe, sendo incapaz de poder conhecê-lo, isso não se constituiria,
necessariamente, em ateísmo, pois o próprio Tomás de Aquino admite que não
podemos conhecer a Deus, mas falamos dele apenas por analogia, afirmando que
“não podemos, nesta vida, conhecer a essência de Deus, tal como ela é em si
mesma; mas a conhecemos enquanto representada nas perfeições das criaturas, e
assim é que os nomes que impomos significa”.[25] E ainda, mais adiante,
Tomás afirma que “nem o católico nem o pagão conhecem a natureza de Deus como
ela é em si mesma... quando o gentio usa o nome de Deus dizendo um ídolo é Deus,
pode tomá-lo na mesma significação em que o toma o católico quando diz um ídolo
não é Deus”.[26]
Por outro lado, os limites para o conhecimento de Deus são reconhecidos
também na Filosofia Árabe, pois segundo Alfarabi, Deus “reside em sua solidão
inacessível”. [27]
Se Deus é inacessível em sua substância, como obedecê-lo com segurança em
relação aos seus oráculos? Hobbes responderá a isso colocando em dúvida não a
obediência a Deus, mas sim quando
e o que Ele disse, lembrando que na própria Bíblia há prevenções
contra os falsos profetas.
Ele reduz a revelação à razão, e submete a interpretação das Escrituras e
o ensino das doutrinas verdadeiras ao que promove a paz civil. Logo, sua
primeira fé é a fé cívica, e o reino deste mundo, assim, está em primeiro
lugar, e é resolvido pela razão, não pela revelação, ficando os pregadores, em
relação aos assuntos civis, apenas como conselheiros, se o soberano civil o
quiser, mas não como autoridades, do contrário não haveria soberania, a qual é
uma coisa terrena, em nada dependendo da instituição religiosa.
Para Hobbes, na realidade,
o presumido discurso revelado sobre Deus pode ter pretensões de domínio sobre aqueles
que ignoram a razão e a ciência e que podem ter suas consciências controladas
pela superstição, pelos dogmas e pelo medo da perda da vida eterna, contra o
que Hobbes buscará argumentos tanto na razão natural quanto nas Escrituras,
estes para corroborar aqueles, para os que se não convencerem pelos primeiros.
No Cap. XII do Leviatã,
conforme dissemos, Hobbes fala sobre o uso que as autoridades dos gentios
fizeram do medo e da piedade dos povos, visando mantê-los sob seu domínio e
conter possíveis insurreições. Isso era comum também em Roma, onde o imperador se declarava divino e bastava ele
ordenar e um novo culto poderia ser instituído. Venerar os imperadores como
deuses era o mesmo que considerar o Estado divino e, portanto, parecia não
haver necessidade de uma ordem ou uma decisão imperial ser baseada num cálculo
racional ou numa noção correta de justiça, mas declarando-se divinos eles eram
pragmáticos, usando o sentimento religioso como forma de preservação e aumento
do próprio domínio.
Nas palavras de Hobbes citadas abaixo observamos que em
Roma todas as formas de culto eram aceitas, desde que não ameaçassem o poder
civil:
Os romanos, que tinham
conquistado a maior parte do mundo então conhecido, não tinham escrúpulos em
tolerar qualquer religião que fosse, mesmo na própria cidade de Roma, a não ser
que nela houvesse alguma coisa incompatível com o governo civil. [28]
Por isso, prossegue Hobbes, o monoteísmo judaico não era
benquisto em Roma:
Não há notícia de que lá alguma religião
fosse proibida, a não ser a dos judeus, os quais (por serem o próprio Reino de
Deus) consideravam ilegítimo reconhecer sujeição a qualquer rei mortal ou a
qualquer Estado. E assim se vê como a religião dos gentios fazia parte de sua
política.[29]
Os judeus também resistiram à ordem
de Calígula de que no Templo de Jerusalém houvesse um busto seu para ser
adorado e foram às armas, bem como se sentiram ultrajados com o fato de
Domiciano ter se intitulado “Senhor e Deus”, título com o qual assinava os
documentos oficiais, e de ter exigido que o cultuassem. Também os cristãos se recusaram a obedecer a
essa ordem e sofreram dura perseguição.
Quanto a Hobbes, porém, sabemos que a desobediência ao
poder civil é admissível quando as ordens deste se opõem aos princípios da
religião cristã, como ele diz no Leviatã:
Esta dificuldade de
obedecer ao mesmo tempo a Deus e ao soberano civil sobre a terra não tem
gravidade para aqueles que sabem distinguir entre o que é necessário e o que
não é necessário para sua entrada no Reino de Deus. Pois se a ordem do soberano
civil for tal que possa ser obedecida sem a perda da vida eterna, é injusto não
lhe obedecer; e tem lugar o preceito do Apóstolo: Servos, obedecei a vossos
senhores em tudo e Crianças, obedecei a vossos pais em todas as coisas; e o
preceito de nosso Salvador: Os escribas e fariseus sentam-se na cadeira de
Moisés, portanto observem e façam tudo o que eles disserem. Mas se a ordem for
tal que não possa ser obedecida sem que se seja condenado à morte eterna, então
seria loucura obedecer-lhe.[30]
Talvez
essa afirmação indique que, para ele, não só devido ao fato do Estado, como
corpo artificial, poder adoecer e morrer, mas também porque, por natureza, ele
é um deus mortal, acima do qual se eleva o Deus imortal, como ele mesmo diz, ao
concluir a narração de sua gênese e finalidade, a obediência a Deus está em
primeiro lugar:
À multidão assim unida
numa só pessoa se chama Estado, em latim civitas.
É esta a geração daquele grande Leviatã, ou antes (para falar em termos mais
reverentes) daquele Deus Mortal, ao qual devemos, abaixo do Deus Imortal, nossa
paz e defesa.[31]
[2]
Idem.
[3] Idem, Cap. CXLVII, p. 402. O termo incubus é assim definido no dictionary.reference.com: “An imaginary
demon or evil spirit supposed to descend upon sleeping persons, esp. one fabled
to have sexual intercourse with women during their sleep.” Por outro lado, succubus significa: “A demon in female
form, said to have sexual intercourse with men in their sleep”. (Consulta
realizada em 05-01-2010)
[4] Jürgen Overhoff, “The Luteranism of Thomas
Hobbes”, in: History of Political Thought,
XVIII, 4, p. 610. Thorverton, UK, 1997. O artigo nos foi gentilmente
enviado pelo autor, a quem agradecemos.
[5]
Leviatã, op. cit., Revisão e Conclusão, p. 410.
[6]
Idem, Cap. VI, p. 35-36
[7]
Idem, p. 36.
[8]
Idem, Cap. VII, p. 42.
[10]
Idem, p. 67.
[11]
Idem, ibid.
[12] Idem, p. 67-68
[13]
Leviatã, op. cit., Cap II, p. 14.
[14]
Leviatã, op. cit., Cap. XII, p. 66.
[15]
Idem, p. 71
[16]
Idem, p. 70.
[17]
Idem, p. 68 e 69.
[18] Idem, p.66.
[20]
Leviatã, op. cit., Cap. XI, p. 64.
[21] Sobre o Corpo. Parte
I: Computação ou Lógica, p. 17. Trad. e Notas de José Oscar de Almeida
Marques. Clássicos da Filosofia: Cadernos de Tradução, 12. IFCH/UNICAMP, 2005
[22]
Idem, ibidem.
[23]
Is 45:15
[25]
Santo Tomás de Aquino, Suma Teológica,
Q. 13, Art. II, Resposta à Terceira Objeção. Trad. de Alexandre Correia. S.
Paulo: Abril, 1973, p. 112. (Os Pensadores).
[26]
Idem, Art. X, Resposta à Quinta Objeção, p. 125.
[27] Apud E. Gilson, op. cit., p. 430.
[28]
Leviatã, op. cit., Cap. XII, p. 70-71
[29] Idem. Ainda em relação
aos judeus, o imperador Cláudio decretou a retirada de todos eles de Roma,
conforme o Livro de Atos dos Apóstolos: “Depois disto, deixando Paulo Atenas,
partiu para Corinto. Lá, encontrou certo judeu chamado Áquila, natural do
Ponto, recentemente chegado da Itália, com Priscila, sua mulher, em vista de
ter Cláudio decretado que todos os judeus se retirassem de Roma”. (At 18:1-2)
[30] Leviatã, op. cit., Cap. XLIII,
p. 341. O mesmo Hobbes já dissera antes, em Do
Cidadão (op. cit., p. 360), conforme citamos também mais adiante neste
trabalho: “Seria loucura de nossa parte não preferir morrer de morte
natural, em vez de obedecer e morrer eternamente”.
[31]
Idem, Cap. XVII, p. 105-106.