sábado, 19 de dezembro de 2009

Thomas Hobbes: a soberania absoluta como causa da liberdade civil

Escrevi este breve texto em 2005, quando tive a bênção de ser aluno especial dos Profs. Drs. Maria Tereza Sadek e Gildo Marçal Brandão, no Departamento de Ciência Política da USP, pelos quais tenho imensa gratidão.

Hobbes parte da análise da natureza humana para deduzir a necessidade não só da organização civil de seu contexto político, mas suas teses têm um caráter universal, dizem respeito ao fenômeno político em si, à segurança da sociedade em geral. Em toda a Segunda Parte do Leviatã pode-se observar a importância que ele dá a uma tese, a de que o Estado é dado para assegurar a paz civil, à qual retorna no decorrer de sua exposição, tanto para refutar objeções quanto para, independente delas, solidificar sua construção. Podem-se destacar algumas de suas teses em que o caráter absoluto da soberania é corroborado. Partindo da idéia de personificação, isto é, do acordo e da transferência do poder a uma pessoa soberana, Hobbes deduz o caráter absoluto desse poder. De acordo com Anne-Lise Dehier:

“... A partir de cette définition de la personnalité du souverain, et selon le principe de contradiction, Hobbes peut soutenir rationnellement et dans le détail sa théorie du pouvoir absolu ; le comportement du citoyen, ses actes, ses paroles et ses intentions sont appréhendés et évalués, avant toute autre considération, en fonction de cette définition et de ce principe, quel que soit le domaine de la vie sociale”.[1]

No Cap. XVII observa-se que a tese acima citada, a qual será, sob argumentos aduzidos de bases diversas, repetida ao longo da segunda parte, isto é, a defesa do caráter absoluto da soberania em prol da preservação da paz civil. No sistema dedutivo de Hobbes, as leis de natureza são contrárias às paixões naturais e o pacto pelo qual se aliena o poder a uma pessoa soberana implica no caráter absoluto do poder dessa pessoa, seja ela uma monarquia ou uma república. O objetivo dos homens, ao consentirem em viver sob as restrições do governo civil, é a superação do estado de guerra, pois as leis de natureza não são cumpridas se não houver a “espada”, ou seja, a instituição do poder soberano. A simples união dos indivíduos se diluirá se não houver um poder comum, o qual, sem a obediência dos súditos a uma soberania inalienável e indivisível, chegará à morte.[2]
O caráter absoluto da soberania é exposto por Hobbes com diversos argumentos, dos quais destacamos alguns que julgamos suficientes para demonstrar sua essência.[3] Por exemplo, no caso do soberano levar à morte um súdito inocente, como o fez Davi com Urias, Hobbes afirma que mesmo considerando que “o direito de lhe fazer o que lhe aprouvesse lhe foi dado pelo próprio Urias” ([4]), seu súdito, Davi pecou contra a lei de Deus, isto é, contra as leis de natureza ou contra a eqüidade. Seu ato “não foi uma injúria feita a Urias, e sim a Deus”.[5]
Esse argumento pode ser interpretado das seguintes formas: por um lado, Hobbes estaria argumentando em favor da precedência das leis de natureza sobre os direitos do soberano; por outro, é uma lei de natureza que os contratos sejam cumpridos, portanto, o soberano poderia agir de qualquer forma em relação ao súdito e não ser acusado de injustiça ou de injúria; ainda por outro lado, como é o soberano quem dá força, pela espada, às leis de natureza, elas não teriam valor algum se não fosse ele, o que vale dizer que as leis de Deus, isto é, de natureza, são colocadas em segundo plano, pois é o próprio soberano quem decide que tipo de opiniões e crenças religiosas devem ser ensinadas em seus domínios. Isto é, Hobbes procura, por todos os meios, manter a soberania, a qual, em última instância, é o que garante a segurança e a paz dos súditos. Nas palavras de Hobbes: “Se a autoridade é concedida com certos limites, quem a recebe não é rei, mas súdito de quem a outorga”.[6]
Bobbio estabelece uma comparação do conceito de soberania de Hobbes com o de Jean Bodin, demonstrando a insuficiência deste em relação à verdadeira soberania. Para Bodin, o poder está sujeito às leis naturais, às leis divinas e aos direitos privados.[7] Para Hobbes, porém, tais limites não se sustentam, pois as leis naturais e divinas, nas palavras de Bobbio, “não são aplicadas com a força de um poder comum; por isso não são externamente obrigatórias, mas só interiormente – isto é, no nível da consciência”.[8] Quanto aos direitos privados, eles só existem devido à alienação do poder à pessoa soberana, que os garante, pois antes não havia propriedade, mas o conflito permanente. “A esfera privada”, continua Bobbio, “coincide com o estado de natureza e se dissolve inteiramente na esfera pública, isto é, nas relações de domínio que ligam o soberano ao súdito”. [9] O próprio termo “soberano” significa sem limites, sejam estes divinos, naturais ou civis, o que significa que, na prática, ele poderá até matar um inocente, como no caso de Davi e Urias. E, a rigor, se Davi cometeu uma injúria contra Deus, o representante de Deus recebe sua autoridade do próprio soberano, sendo-lhe submisso. Foi o que ocorreu com Salomão, que, seguiu a Astarote, deusa dos sidônios (I Rs 11, 5) e, a rigor, segundo o que se prescreve em Dt 4,19 e 17,3, deveria ter sido apedrejado. Sua posição soberana, porém, impediu punição tão severa. Quem se atreveria a decidir pela morte do soberano? Nos termos de Hobbes, era ele próprio quem reconhecia e legitimava a religião, e esta não poderia se voltar contra quem a legitimara.
A despeito do caráter ilimitado desse poder, Hobbes demonstra, porém, que, em lugar de ser uma ameaça à liberdade, como o faziam crer seus opositores, ele é a garantia da liberdade dos súditos. Os Estados antigos, como Atenas e Roma, asseguravam a liberdade por serem fortes. Nesse sentido, Hobbes censura os livros que, atribuindo à monarquia a pecha de tirania e de regime da escravidão, e que consideravam a democracia o símbolo da liberdade, incentivavam a sedição. Tais livros omitiam que o que existe é soberania, em qualquer forma de governo, e que sem ela os súditos não têm garantias de viver em paz. Num Estado como Roma, em que o poder se dividia entre o Senado e o Povo, César, um grande estrategista e um líder carismático, pode aproveitar a situação e lançar as bases do Império, acabando com a República e, conseqüentemente, com a liberdade dos súditos. Dessa forma, a própria República errou ao dividir o poder, pois a soberania em si é indivisível, como reconhece Rousseau: “A soberania é indivisível pela mesma razão que é inalienável”. E acrescenta que os políticos tomaram “por partes dessa autoridade o que não passa de emanações suas”.[10] E assim erram, de acordo com Hobbes, os que acham que o poder das democracias não é ou não deve ser absoluto, como omitem que, na realidade, seus defensores podem estar interessados mais pelo poder do que pelo simples fim da monarquia. Todo poder, assim, é monárquico, isto é, uno indivisível. Como afirma Hobbes: “Ora, o poder é sempre o mesmo, sob todas as formas, se estas forem suficientemente perfeitas para proteger os súditos”.[11]
Por fim, nessas breves considerações, acrescento que, ao falar dos atributos de Deus, afirmando que não se deve dizer “que há mais do que um Deus, porque isso implica que todos são finitos, pois não pode haver mais do que um infinito” ([12]), ele está metaforicamente afirmando que o Estado, como Deus mortal criado artificialmente, deve ter unidade e soberania como Deus, mas não deve arriscar-se a dividir o poder, pois isso só é possível na economia divina, como ele antecipou ao dizer: “no reino de Deus pode haver três pessoas independentes sem quebra da unidade no Deus que reina, mas quando são os homens que reinam... isso não pode acontecer. Se o rei representa a pessoa do povo e a assembléia geral também representa a pessoa do povo, e uma outra assembléia representa a pessoa de uma parte do povo, não há apenas uma pessoa, nem um soberano, mas três pessoas e três soberanos”.[13]
Nesse sentido, o Deus mortal que ele enuncia no cap. XVII pode ser comparável, por inferência, ao que ele fala sobre a vontade de Deus, quando diz: “… Quando atribuímos uma vontade a Deus, ela não deve ser entendida, como a do homem, como um apetite racional, mas como o poder pelo qual tudo faz”. [14] Aqui residiria um possível sentido para o subtítulo de sua obra, que se inicia de forma aristotélica, ao dizer “matéria, forma”, mas conclui de forma realista, ao acrescentar “e poder de um Estado Eclesiástico e Civil”. Na realidade, um Estado que parte do homem, sua matéria e seu artífice, homem que lhe dá, portanto, forma, nada seria se não tivesse poder, isto é, se não fosse soberano.
E assim como no De Cive, também no Leviatã os atributos de Deus segundo a razão natural são negativos, o que demonstra, na realidade, a submissão da idéia de Deus às convenções dos homens e à idéia de Estado, conforme se pode inferir da afirmação: “Aquele que quiser atribuir a Deus apenas o que é garantido pela razão natural, ou deve servir-se de atributos negativos...” [15]. E dessa forma Hobbes passa, dedutivamente, de um homem artificial a um Deus artificial, deduzido do próprio homem artificial, como ele afirma: “E porque um Estado não tem vontade e não faz outras leis senão aquelas que são feitas pela vontade daquele ou daqueles que têm o poder soberano poder, segue-se que aqueles atributos que o soberano ordena, no culto de Deus, como sinais de honra, devem ser aceites e usados como tais pelos particulares em seu culto público”.[16] Hobbes estava defendendo a soberania, portanto, não só diante dos democratas, mas também do pontifex maximus, que presumia ser o representante de Deus e, por inferência, superior ao Estado.
Hobbes espera que, com “a ciência da justiça natural”, os príncipes possam bem governar e os súditos, pelo seu estudo, aprendam a obedecer. Ele tinha uma utopia, para a qual, no entanto, era indispensável a força do Estado.



[1] Anne-Lise Dehier, Justice, Absolutisme et Individualism chez Hobbes. Partie I: La Souveranité. Mémoire de maitrise réalisé sous la direction de Monsieur Michel Malherbe. Université de Nantes, 1997-1998.
[2] Essas teses são demonstradas nos caps. XVII e XXIX.
[3] Sem pretender que o termo “essência” seja metafísico.
[4] Leviatã, Cap. XXI, p. 135 (Os pensadores)
[5] Idem.
[6] De Cive, VII, 7, apud Bobbio, A Teoria das Formas de Governo, 4a. ed., p. 107. E Bobbio afirma, de forma tautológica, mas necessária: “O poder soberano é absoluto. Se não fosse absoluto, não seria soberano: soberania e caráter absoluto são unum et idem”.
[7] Id. p. 107.
[8] Idem
[9] Idem, p. 108
[10] Do Contrato Social, Livro II, Cap. II, p. 44s (Os Pensadores, 1978).
[11] Cap. XVIII, p. 116, o que também é visto em Rousseau, op. e loc. cit.
[12] Cap. XXXI, p. 219.
[13] Cap. XXXIX, p. 201.
[14] Idem, ibidem
[15] Idem, p. 221.
[16] Idem, ibidem.