quarta-feira, 28 de outubro de 2015

Prefácio de minha Tese de Doutorado



  Isaar Soares de Carvalho
Enfrentando o inimigo com as suas próprias armas: a presença e a importância das Escrituras na argumentação de Thomas Hobbes
Tese de Doutorado em Filosofia - IFCH - UNICAMP - 2012

PREFÁCIO

             Na Dedicatória do Leviatã encontra-se uma afirmação que nos servirá de base para a verificação de como, em sua Filosofia Política, Hobbes corrobora seus argumentos sobre a soberania civil e suas relações com a religião adotando uma nova hermenêutica das Escrituras, visando a demonstração de que todas as esferas da vida social, inclusive a religião, devem subordinar-se à autoridade civil. A afirmação à qual nos referimos é a seguinte:

O que talvez possa ser tomado como grande ofensa são certos textos das Sagradas Escrituras, por mim usados com uma finalidade diferente da que geralmente por outros é visada. Mas fi-lo com a devida submissão. E também, dado ao meu assunto, porque tal era necessário. Pois eles são as fortificações avançadas do inimigo, de onde este impugna o poder civil.[1]


A ideia central dessa afirmação aparecerá ao longo do texto do Leviatã, e a obra se encerrará com a afirmação, dirigida tanto à Igreja quanto ao poder civil, de que “a verdade que não se opõe aos interesses ou aos prazeres de ninguém é bem recebida por todos”. [2] Afirmação com a qual ele confirmava seu interesse em preservar a paz e a liberdade civil numa época marcada pelos conflitos políticos e religiosos e pelo risco da guerra civil.
Em seu pensamento político o maior inimigo a vencer era a Igreja, devido às suas pretensões políticas e à sua interferência na consecução da paz civil. Para enfrentar esse inimigo, Hobbes tanto argumentou na área da filosofia política quanto estabeleceu inferências a partir de textos bíblicos, ignorados ou lidos de forma tendenciosa pela Igreja que, considerando-se a guardiã dos mistérios de Deus e da interpretação das Escrituras, usurpou aos fiéis o livre-exame e pretendeu usurpar o próprio poder civil.
Partindo das críticas de Hobbes ao uso que a Igreja fazia das Escrituras para, aparentemente, justificar-se enquanto instituição que tinha um poder universal, acima da própria soberania civil, pretendemos demonstrar que é relevante do ponto de vista teórico uma leitura de Hobbes em relação à sua hermenêutica dos textos bíblicos. Ele pode ser relido sob a hipótese de que seu antipapismo tinha em mira a paz civil e o gozo da vida. Libertar-se das diversas formas de domínio do Papado, que controlava as consciências, deixando o cidadão em dúvida sobre a obediência ao poder civil ou à autoridade eclesiástica, que interferia na própria sucessão política, era fundamental para isso.[3] Sua obra, portanto, é libertadora das consciências.
O Papa, alegando representar o Cristo, ser seu “vigário”, isto é, seu substituto, pretendia sobrepor-se ao poder civil. O poder da Igreja, exercido sobre todos os fiéis, se estenderia sobre os próprios soberanos civis, os quais, de acordo com a hierarquia eclesiástica, deveriam portar-se não como soberanos, mas como membros do rebanho sujeitos aos dogmas. Dessa forma, tanto um soberano civil quanto uma nação toda estavam sujeitos à excomunhão. A soberania, porém, não seria possível sem a obediência ao poder civil. E como o Papa emulava os cristãos à desobediência, e ao mesmo tempo os ameaçava com as penas eternas, as pessoas chegavam a um ponto em que não sabiam mais a quem obedecer, e como a autoridade civil poderia ameaçar apenas sua integridade física, e a Igreja alegava que tinha as chaves da vida eterna e as “chaves da morte e do inferno” nas mãos, era possível que os cidadãos colocassem em primeiro lugar sua pertença à Cidade de Deus, não à Cidade do Homem, desobedecendo assim ao poder civil. [4]
Hobbes se dirigia a um público que conhecia as Escrituras, quer fosse pelo hábito de ouvir as doutrinas dos púlpitos, quer fosse pela leitura devocional, pela leitura oficial da Igreja ou pela leitura erudita. Ele se dirigia também a quem tinha uma mentalidade nova, devido às novas concepções do homem e do mundo, às mudanças científicas, políticas, religiosas e ideológicas, bem como às conhecidas lutas intestinas na Inglaterra pela hegemonia.
            Hobbes escreve a um público amplo, de um lado formado por pessoas conhecedoras da Ciência e da Filosofia, e de outro por leitores das Escrituras, da tradição escolástica do poder inquisitorial da Igreja. Não é sem razão, portanto, que ele se dedica a esclarecer suas teses na obra Do Cidadão e no Leviatã tanto em relação à Filosofia Política quanto à Religião. Richard Tuck dá tamanha importância ao trato da Religião em suas obras que afirma que, “segundo Hobbes, a área mais importante de potencial intervenção do soberano é a religião”.[5] E Renato Janine Ribeiro afirma que a paz civil, na interpretação hobbesiana, só seria possível com a concentração, nas mãos do soberano, do poder civil e do religioso, o que pode ser verificado na própria ilustração da capa da obra Leviatã: o soberano, um deus mortal, um grande homem concebido à imagem dos pequenos homens, tem em sua mão direita uma espada e em sua mão esquerda um báculo.  E de acordo com sua leitura, o maior alvo da argumentação política de Hobbes em prol da paz civil, da liberdade e da soberania é a Igreja. [6] 
Assim, examinaremos como na obra de Hobbes pode-se encontrar uma nova chave hermenêutica para a leitura das Escrituras: a da perscrutação de seus raciocínios de caráter político. Como exímio estrategista, ele fez frente ao poder eclesiástico utilizando, de forma demonstrativa, a arma que subordinava o poder civil à Igreja, objetivando que esta reconhecesse seu devido lugar, o de subordinada dele, que é absoluto, pois se tivesse qualquer poder acima de si, não seria soberano.
            Nosso propósito, portanto, é o de, na linha da proposta de Hobbes para que se faça um cotejo de suas teses, seja com a experiência, seja através da própria introspecção, para que as comprovemos ou neguemos, observar que ele estabelece um diálogo constante, também, com o leitor de seu tempo que conhecia as Escrituras, e, principalmente, um enfrentamento da Igreja, e mais que isso, um enfrentamento original, com argumentos retirados das próprias Escrituras, das quais a Igreja pretendia ser a guardiã e única intérprete.



(Texto completo disponível no site da Biblioteca do IFCH-UNICAMP)

[1] Leviatã, 2. ed., 1979, p. 3. (Os Pensadores).
[2] Idem, Revisão e Conclusão, p. 410.
[3] Cf. Behemoth, traduit et présenté par Pierre Naville. Paris: 1989, p. 59.  
[4] A expressão “chaves da morte e do inferno”, atribuída a Cristo, aparece em Ap 1.18: “Eu sou o primeiro e o último... Eis que estou vivo pelos séculos dos séculos, e tenho nas mãos as chaves da morte e do inferno”. Esse poder, no entanto, era atribuído pela Igreja ao Papa, o vigário ou substituto de Cristo, que pretendia ter um domínio universal.
[5] Richard Tuck, Introdução ao Leviatã, S. Paulo: 2002, p. XLV-XLVI.
[6] Renato Janine Ribeiro, “Thomas Hobbes o la paz contra el clero”, in: Atílio A. Boron (Comp.) La Filosofía Política Moderna. Buenos Aires: 2003.