Isaar Soares de Carvalho
Enfrentando o inimigo com as
suas próprias armas: a presença e a importância das Escrituras na argumentação
de Thomas Hobbes
Tese de Doutorado em Filosofia - IFCH - UNICAMP - 2012
PREFÁCIO
O que talvez possa ser tomado como grande ofensa são certos textos das
Sagradas Escrituras, por mim usados com uma finalidade diferente da que
geralmente por outros é visada. Mas fi-lo com a devida submissão. E também,
dado ao meu assunto, porque tal era necessário. Pois eles são as fortificações
avançadas do inimigo, de onde este impugna o poder civil.[1]
A ideia central dessa afirmação aparecerá ao longo do texto do Leviatã,
e a obra se encerrará com a afirmação, dirigida tanto à Igreja quanto ao poder
civil, de que “a verdade que não se opõe aos interesses ou aos prazeres de
ninguém é bem recebida por todos”. [2] Afirmação com a qual ele
confirmava seu interesse em preservar a paz e a liberdade civil numa época
marcada pelos conflitos políticos e religiosos e pelo risco da guerra civil.
Em seu pensamento político o maior inimigo a vencer era a
Igreja, devido às suas pretensões políticas e à sua interferência na consecução
da paz civil. Para enfrentar esse inimigo, Hobbes tanto argumentou na área da filosofia
política quanto estabeleceu inferências a partir de textos bíblicos, ignorados
ou lidos de forma tendenciosa pela Igreja que, considerando-se a guardiã dos
mistérios de Deus e da interpretação das Escrituras, usurpou aos fiéis o
livre-exame e pretendeu usurpar o próprio poder civil.
Partindo das críticas de Hobbes ao uso que a Igreja fazia das
Escrituras para, aparentemente, justificar-se enquanto instituição que tinha um
poder universal, acima da própria soberania civil, pretendemos demonstrar que é
relevante do ponto de vista teórico uma leitura de Hobbes em relação à sua
hermenêutica dos textos bíblicos. Ele pode ser relido sob a hipótese de que seu
antipapismo tinha em mira a paz civil e o gozo da vida. Libertar-se das
diversas formas de domínio do Papado, que controlava as consciências, deixando
o cidadão em dúvida sobre a obediência ao poder civil ou à autoridade
eclesiástica, que interferia na própria sucessão política, era fundamental para
isso.[3] Sua obra, portanto, é
libertadora das consciências.
O Papa, alegando representar o Cristo, ser seu “vigário”,
isto é, seu substituto, pretendia sobrepor-se ao poder civil. O poder da
Igreja, exercido sobre todos os fiéis, se estenderia sobre os próprios
soberanos civis, os quais, de acordo com a hierarquia eclesiástica, deveriam
portar-se não como soberanos, mas como membros do rebanho sujeitos aos dogmas.
Dessa forma, tanto um soberano civil quanto uma nação toda estavam sujeitos à
excomunhão. A soberania, porém, não seria possível sem a obediência ao poder
civil. E como o Papa emulava os cristãos à desobediência, e ao mesmo tempo os
ameaçava com as penas eternas, as pessoas chegavam a um ponto em que não sabiam
mais a quem obedecer, e como a autoridade civil poderia ameaçar apenas sua
integridade física, e a Igreja alegava que tinha as chaves da vida eterna e as
“chaves da morte e do inferno” nas mãos, era possível que os cidadãos
colocassem em primeiro lugar sua pertença à Cidade de Deus, não à Cidade do
Homem, desobedecendo assim ao poder civil. [4]
Hobbes se dirigia a um
público que conhecia as Escrituras, quer fosse pelo hábito de ouvir as
doutrinas dos púlpitos, quer fosse pela leitura devocional, pela leitura
oficial da Igreja ou pela leitura erudita. Ele se dirigia também a quem tinha
uma mentalidade nova, devido às novas concepções do homem e do mundo, às
mudanças científicas, políticas, religiosas e ideológicas, bem como às
conhecidas lutas intestinas na Inglaterra pela hegemonia.
Hobbes
escreve a um público amplo, de um lado formado por pessoas conhecedoras da Ciência
e da Filosofia, e de outro por leitores das Escrituras, da tradição escolástica
do poder inquisitorial da Igreja. Não é sem razão, portanto, que ele se dedica
a esclarecer suas teses na obra Do
Cidadão e no Leviatã tanto em relação à Filosofia Política quanto à
Religião. Richard Tuck dá tamanha importância ao trato da Religião em suas
obras que afirma que, “segundo Hobbes, a área mais importante de potencial
intervenção do soberano é a religião”.[5] E Renato Janine Ribeiro
afirma que a paz civil, na interpretação hobbesiana, só seria possível com a
concentração, nas mãos do soberano, do poder civil e do religioso, o que pode
ser verificado na própria ilustração da capa da obra Leviatã: o soberano, um deus mortal, um grande homem concebido à
imagem dos pequenos homens, tem em sua mão direita uma espada e em sua mão
esquerda um báculo. E de acordo com sua
leitura, o maior alvo da argumentação política de Hobbes em prol da paz civil,
da liberdade e da soberania é a Igreja. [6]
Assim, examinaremos como na obra
de Hobbes pode-se encontrar uma nova chave hermenêutica para a leitura das
Escrituras: a da perscrutação de seus raciocínios de caráter político. Como
exímio estrategista, ele fez frente ao poder eclesiástico utilizando, de forma
demonstrativa, a arma que subordinava o poder civil à Igreja, objetivando que
esta reconhecesse seu devido lugar, o de subordinada dele, que é absoluto, pois
se tivesse qualquer poder acima de si, não seria soberano.
Nosso
propósito, portanto, é o de, na linha da proposta de Hobbes para que se faça um
cotejo de suas teses, seja com a experiência, seja através da própria
introspecção, para que as comprovemos ou neguemos, observar que ele estabelece
um diálogo constante, também, com o leitor de seu tempo que conhecia as
Escrituras, e, principalmente, um enfrentamento da Igreja, e mais que isso, um
enfrentamento original, com argumentos retirados das próprias Escrituras, das
quais a Igreja pretendia ser a guardiã e única intérprete.
(Texto completo disponível no site da Biblioteca do IFCH-UNICAMP)
[1]
Leviatã, 2. ed., 1979, p. 3. (Os Pensadores).
[2]
Idem, Revisão e Conclusão, p.
410.
[4] A expressão “chaves da
morte e do inferno”, atribuída a Cristo, aparece em Ap 1.18: “Eu sou o primeiro
e o último... Eis que estou vivo pelos séculos dos séculos, e tenho nas mãos as chaves da morte e do
inferno”. Esse poder, no entanto, era atribuído pela Igreja ao Papa, o
vigário ou substituto de Cristo, que pretendia ter um domínio universal.
[5]
Richard Tuck, Introdução ao Leviatã, S. Paulo: 2002, p. XLV-XLVI.
[6]
Renato Janine Ribeiro, “Thomas Hobbes o la paz contra el clero”, in: Atílio A.
Boron (Comp.) La
Filosofía Política Moderna. Buenos Aires: 2003.