domingo, 16 de dezembro de 2012

A Crítica Bíblica em Hobbes e a Soberania vista a partir das Escrituras




            Sobre a leitura da Bíblia, antes de qualquer consideração, é necessário observar que Hobbes é um homem de Ciência. Ele afirma que a verdade se deduz da razão, dos sentidos e da experiência e considera a razão natural um sinônimo da “palavra indubitável de Deus”, afirmando que “não convém renunciar aos sentidos e à experiência, nem àquilo que é a palavra indubitável de Deus, nossa razão natural”.[1]
Para Hobbes a Bíblia tem uma finalidade, qual seja, ela “foi escrita para o restabelecimento do Reino de Deus em Cristo”. [2] Em sua leitura da Bíblia ele afirma que não pretende adiantar opiniões próprias, mas sim, de acordo com suas próprias palavras: “Mostrar quais são as consequências que me parecem dedutíveis dos princípios de uma política cristã (que são as Sagradas Escrituras) em confirmação do poder do soberano civil e do dever de seus súditos”.[3]
            E contra a hermenêutica eclesiástica, feita tendo em vista o que era proveitoso para a Igreja, Hobbes assim expõe sua forma de abordagem do texto bíblico:

Na alegação das Escrituras tentei evitar aqueles textos que são de uma interpretação obscura ou controvertida, e só alegar aqueles cujo sentido é mais simples e agradável à harmonia e finalidade de toda a Bíblia, que foi escrita para o restabelecimento do Reino de Deus em Cristo. Pois não são as palavras nuas, mas sim o objetivo do autor que dá a verdadeira luz pela qual qualquer escrito deve ser interpretado, e aqueles que insistem nos textos isolados, sem considerarem o desígnio principal, nada deles podem tirar com clareza, mas antes jogando átomos das Escrituras como poeira nos olhos dos homens, tornam tudo mais obscuro do que é, artifício habitual daqueles que não procuram a verdade, mas sim suas próprias vantagens.[4]

          E assim Hobbes, limpando a poeira dos olhos de seus leitores, encontrará nas Escrituras razões para a submissão de qualquer instituição ao Soberano Civil ou, simplesmente, ao Soberano. Observemos então alguns elementos da leitura hobbesiana da Bíblia em relação à soberania civil, começando por falar de suas contribuições à Crítica Bíblica, isto é, para o estudo da história da formação dos textos, principalmente os do Antigo Testamento, que são de mais difícil explicação.
Em relação à data de redação dos textos bíblicos, Hobbes faz diversas observações, enfatizando, contudo, a afirmação de Gênesis 12:6: “Atravessou Abrão a terra até Siquém, até o carvalho de Moré. Nesse tempo os cananeus habitavam essa terra”.  A tradução da qual ele dispunha, a King James, de 1611, diz: “And Abram passed through the land unto the place of Sichem, unto the plain of Moreh. And the Canaanite was then in the land”.[5] 
            De acordo com Aloysius P. Martinich, Hobbes insiste no fato de que a afirmação de que os cananeus habitavam a terra era uma evidência da redação do texto “longo tempo após os fatos”.[6]
            Sobre o Pentateuco em seu todo, Hobbes, contrariamente aos que dizem que Moisés nada escreveu do Pentateuco, ou que ele o redigiu em sua totalidade, afirma que “ele escreveu tudo o que aí se diz que escreveu”, isto é, aquelas afirmações do texto que dizem claramente que Moisés escreveu são por Hobbes consideradas como fidedignas.[7]
            Por outro lado, no sexto livro do AT, o de Josué, encontra-se uma afirmação que mostra a sua interação e continuidade com o Pentateuco, o que possibilita uma ampliação do conceito de “Livros da Lei”, a partir da afirmação de que "Josué escreveu estas palavras no livro da lei de Deus". [8]
Ainda sobre a data de redação dos textos bíblicos, Hobbes cita passagens dos Livros de Juízes e de Rute que demonstram que os mesmos foram escritos muito tempo depois dos fatos narrados. [9] E sobre o Livro de Juízes ele destaca a seguinte afirmação para confirmar sua tese de que o texto é posterior ao cativeiro babilônico: “Os filhos de Dã levantaram para si aquela imagem de escultura; e Jônatas, filho de Gerson, o filho de Manassés, ele e seus filhos foram sacerdotes da tribo dos danitas, até ao dia do cativeiro do povo”. [10] Esse trecho assim aparece na King James: “And the children of Dan set up the graven image: and Jonathan, the son of Gershom, the son of Manasseh, he and his sons were priests to the tribe of Dan until the day of the captivity of the land”.
No Livro de Juízes, além disso, encontra-se uma afirmação que, ao mesmo tempo em que confirma sua redação posterior, serviria como referência a Hobbes para justificar a necessidade da instituição do soberano civil diante do estado de natureza, no qual, não havendo lei, não havia injustiça, e de fato, cada um poderia fazer o que melhor lhe parecesse, conforme o célebre Cap. XIII do Leviatã. A afirmação bíblica que mostra um autêntico estado de natureza é a seguinte: “Naqueles dias não havia rei em Israel: cada qual fazia o que achava mais reto”. [11]
Quanto ao Livro de Rute, logo em sua abertura é evidente o caráter posterior de sua redação em relação aos fatos narrados, pois o texto diz: “No tempo em que julgavam os juízes”. [12] A rigor, os Livros de Josué, Juízes e Rute integram uma narrativa sobre um período que tem ligações claras. O início de Juízes refere-se à morte de Josué e demonstra que Israel então se encontrava sem uma liderança definida, havendo mesmo a necessidade de se fazer uma consulta ao Senhor para saber quem subiria a lutar contra os cananeus. [13]
            Sobre as fontes utilizadas pelos autores das Escrituras, Hobbes observa que o próprio texto menciona várias delas, tais como: o Livro das Guerras do Senhor, o Livro dos Justos, o Livro das Crônicas de Natan, o Livro das Crônicas de Gade, o Livro da História de Salomão, o Livro da História dos reis de Israel, o Livro da História dos reis de Judá. [14] A rigor, a pluralidade das fontes do texto bíblico evidencia-se desde o próprio Gênesis, onde já se usa o termo “livro” em seu quinto capítulo, que diz: “Este é o livro da genealogia de Adão”.[15]
            Quanto à definição do Cânon do AT, Hobbes afirma que “todas as escrituras do Antigo testamento foram postas na forma que possuem após o regresso dos judeus do cativeiro em Babilônia, e antes do tempo de Ptolomeu Filadelfo”. [16] E reconhecendo, como o recomendava a Igreja Anglicana, que os livros apócrifos são “proveitosos para nossa instrução” e que, se em relação à forma final do Antigo Testamento eles merecem crédito, ele conclui que “as Escrituras foram postas na forma que as conhecemos por Esdras”. [17]
            A questão da formação dos textos bíblicos, do que é canônico para os judeus, católicos e protestantes leva-nos a perguntar pela essência mesma da palavra de Deus. Por isso, Aloisyus P. Martinich, com razão, afirma ser difícil saber o que é autêntico na Bíblia: “I think that it would be difficult, if not impossible, to make all the passages in the Bible consistent.[18]
Hobbes, portanto, ao lado de Erasmus e de Espinosa, foi um dos grandes filósofos a contribuir para a crítica do texto bíblico e para o conhecimento da história de sua formação e edição.
            A interpretação hobbesiana da Bíblia em relação à natureza do poder soberano pode ser vista como uma necessidade de seu contexto cultural, religioso e político, pois depois de tratar do Homem e do Estado com base em princípios racionais da Filosofia Civil, afirma no Leviatã, conforme citamos noutra parte deste trabalho:

... Mas supondo que estes meus princípios não sejam princípios racionais, tenho, contudo, a certeza de que são princípios tirados da autoridade das Escrituras, como mostrarei quando falar do Reino de Deus (administrado por Moisés), sobre os judeus, seu povo dileto por meio de um pacto. [19]

Antes de escrever o Leviatã, porém, o recurso às Escrituras aparece logo no Prefácio da obra Do Cidadão, quando ele, em defesa de sua antropologia, a qual fora criticada por Descartes, que a considerava extremamente negativa, afirma que, admitindo-se a existência do temor e da desconfiança mútuos entre os países e os cidadãos, alguns farão objeção, contra o que ele busca nas Escrituras a corroboração de sua antropologia negativa, afirmando: “... Se este princípio for admitido, necessariamente se seguirá não apenas que todos os homens sejam perversos (o que, embora talvez pareça rigoroso, devemos, porém, reconhecer, já que é proclamado com tanta clareza pela Santa Escritura)”.[20]
Dentre as abundantes citações da Bíblia em sua obra, observamos que a importância desse recurso argumentativo e persuasivo aparece de forma explícita quando ele compara os Dez Mandamentos aos deveres civis e aos direitos do soberano representante, no Cap. XXX do Leviatã, do que passaremos a tratar a seguir. [21]
Em relação aos quatro primeiros mandamentos, que dizem respeito aos deveres para com Deus, a súmula da comparação estabelecida por Hobbes entre o Reino de Deus pelo pacto com os judeus e o poder do soberano civil pelo consentimento dos homens encontra-se na seguinte afirmação:

A primeira tábua dos mandamentos é toda gasta (sic) em enumerar a soma do poder absoluto de Deus, não apenas como Deus, mas como rei por pacto (em especial) dos judeus; e pode, portanto, iluminar aqueles que receberam o soberano poder por consentimento dos homens, a fim de verem que doutrina devem ensinar a seus súditos. [22] 

            De acordo com Hobbes, no dia do sábado o povo era ensinado sobre os deveres para com Deus, que compreendem os quatro primeiros mandamentos, quais sejam: 1) não ter outros deuses diante do Deus único; 2) não fazer para si imagens de escultura, não adorá-las, nem lhes prestar culto; 3) não tomar o nome do Senhor Deus em vão; 4) lembrar-se do dia de sábado, para santificá-lo. Nesse dia os mais velhos seriam lembrados, e as novas gerações seriam ensinadas, a respeito dos deveres diante de Deus, do resgate do povo da escravidão, da necessidade de adorá-lo exclusivamente, de não tomar o seu nome em vão e de santificar o dia de sábado.[23]
Semelhantemente, o povo era instruído sobre os deveres civis, os quais compõem a segunda tábua dos mandamentos. Essa segunda tábua dos mandamentos, portanto, diz respeito aos deveres civis.
A partir do quinto mandamento as tábuas da lei tratam dos deveres para com o próximo e Hobbes coloca em primeiro lugar a vida e os membros do corpo, afirmando que “entre as coisas tidas em propriedade, aquelas que são mais caras ao homem são sua própria vida e membros”.[24] Assim, o caráter absoluto do poder é deduzido da necessidade de preservação da vida, pois “se os direitos essenciais da soberania forem retirados, o Estado fica por isso dissolvido, e todo homem volta à condição e calamidade de uma guerra com os outros homens (que é o maior mal que pode acontecer nesta vida)”.[25]
            Na sequência dos deveres para com o próximo, o quinto mandamento trata da honra ao pai e à mãe, enquanto do sexto ao oitavo trata-se da preservação da propriedade do próximo (não matar, não adulterar, não furtar), cujo respeito é garantido pela autoridade do soberano. O nono diz respeito à calúnia, proibindo o falso testemunho contra o próximo. O décimo trata dos desígnios e intenções de praticar os atos injustos, proibindo a cobiça de qualquer coisa que pertença ao próximo, pois a injustiça “consiste tanto na depravação da vontade como na irregularidade do ato”.[26] Por isso, o só cobiçar já é injusto. E assim a súmula da segunda tábua é assim definida por Hobbes:


Esta é a intenção do décimo mandamento (“Não cobiçarás”), e a súmula da segunda tábua, a qual toda ela se reduz a esse mandamento de caridade mútua, Amarás a teu próximo como a ti mesmo, assim como a súmula da primeira tábua se reduz ao amor a Deus, que então tinham recebido havia pouco tempo como seu rei.[27]

            Assim, o número de deveres para com o próximo ocupa 60% dos dez mandamentos, isto é, a vida civil ocupa a sua maior parte. Talvez Hobbes não tenha argumentado sobre isso, mas seu pensamento permite aduzir que, de fato, os deveres para com Deus são mais resumidos, o que aparece de forma ainda mais breve no Eclesiastes: “De tudo o que se tem ouvido, a suma é: teme a Deus, e guarda os seus mandamentos; porque isto é o dever de todo homem”. [28] Outra suma é feita por Cristo, ao dizer: “Dai, pois, a César o que é de Cesar, e a Deus o que é de Deus”. [29] E nessa afirmação, César pode ser interpretado como a soberania, não um governador, rei ou imperador específico, mas a instituição do Estado enquanto tal.
De tal modo que, tanto no Antigo quanto no Novo Testamento encontram-se sínteses do que é devido a Deus, ficando o poder religioso, de fato, em crise, com seu conjunto de formas de controle social, diante da síntese que Hobbes propôs sobre a salvação, isto é, que “Jesus é o Cristo”, com base na confissão de Pedro e no Credo Niceno.
            E Hobbes começa a falar da soberania absoluta logo na ilustração da capa de sua obra mais conhecida, colocando como primeira mensagem a afirmação do Livro de Jó, a qual aparece em forma de inscrição, para que todos leiam: Non est potestas super Terram quæ conparetur ei – Job 41.24. [30]
Assim, ele estampa ao leitor sua mensagem essencial, usando as Escrituras de uma forma diferente da costumeira, interpretando-as, agora, contra a instituição que até então a usara como uma fortificação avançada para impugnar o poder civil. Eis o homem que usa a arma dos inimigos e a volta contra eles, usando uma metáfora das Escrituras de forma livre, para ilustrar ao homem de seu tempo que o poder civil é soberano.
            A seguir, pois, expomos a interpretação que Hobbes faz de alguns textos bíblicos, como parte da sustentação de sua argumentação sobre a soberania absoluta, tendo como ponto de partida a obra Do Cidadão. [31]
Em relação à instituição da monarquia em Israel, verificamos que nessa obra Hobbes faz uma releitura da História desse povo, mostrando a evolução de suas instituições políticas e religiosas. De acordo com essa leitura, após um período em que Moisés deteve o poder civil e o religioso, os sacerdotes passaram, após a sua morte, a exercer o segundo, vindo enfim a Monarquia em Israel, a partir de Saul.
A afirmação de Êxodo 19: 6: “Vós me sereis reino de sacerdotes e nação santa”, é utilizada por Hobbes como base para a afirmação da tese de que Israel foi um reino sacerdotal, desde Moisés até o rei Saul, quando então, de acordo com a narrativa do I Livro de Samuel, o povo de Israel rejeitou o Reino de Deus. Nesse aspecto, observa-se a importante observação de Hobbes, com abundantes citações bíblicas na obra Do Cidadão, de que o Reino de Deus ainda não veio, o que se dará quando Cristo entregar o reino a seu Pai.[32] E tanto na obra Do Cidadão quanto no Leviatã, Hobbes assim interpreta o Reino de Deus.
            Outro texto que serve de base a Hobbes para fundamentar suas ideias sobre o reino sacerdotal em Israel é também do Êxodo, que afirma:

Todo o povo presenciou os trovões e os relâmpagos e o monte fumegante: e o povo, observando, se estremeceu e ficou de longe. Disseram a Moisés: Fala-nos tu, e te ouviremos; porém não fale Deus conosco, para que não morramos. O povo estava de longe em pé; Moisés, porém, se chegou onde Deus estava. [33]

            Essas afirmações são utilizadas por Hobbes para fundamentar sua tese de que o poder de Moisés estava sob o poder de Deus, bem como que Moisés era seu lugar-tenente e, como tal, portador da revelação, pois Deus não falava diretamente ao povo. Ciente disso, Hobbes fundamenta sua negação da revelação direta de Deus aos homens, ou seja, sem um mediador, até chegar, em sua argumentação, a afirmar que é o soberano civil quem reconhece a religião, define o que é canônico, autoriza os cultos públicos, enfim, é do soberano que procede a legitimidade da religião. Assim, pois, Hobbes nega a autoridade do Papa como sumo pontífice em relação à religião, afirmando a mesma em relação ao soberano.
            Outro texto relevante para a argumentação de Hobbes é o do Livro de Juízes, que apresenta uma parábola sobre o governo, na qual se usa uma símile sobre árvores que estão em busca de um soberano. De acordo com o texto, após a renúncia da oliveira, da figueira e da videira ao reinado, cada uma alegando um motivo, “todas as árvores disseram ao espinheiro: vem tu e reina sobre nós”. [34]  Ao que o espinheiro aceitou, dizendo: “Se deveras me ungis rei sobre vós, vinde e refugiai-vos debaixo de minha sombra; mas, se não, saia fogo do espinheiro que consuma os cedros do Líbano”. [35]        O texto de Juízes 9, na perspectiva hobbesiana, por um lado apresenta a origem do poder na comunidade, e por outro, o que é o principal para o filósofo, adverte sobre os perigos da desobediência ao poder soberano e de sua principal e mais temível consequência, a guerra civil, a qual Hobbes compara ao espinheiro mencionado na parábola, afirmando que, ou se aceita a soberania absoluta, ou “estaremos preferindo ser consumidos pelo fogo da guerra civil”.[36]
O Livro de Juízes é claramente posterior aos fatos narrados, e descreve a fragilidade de um povo sem um lugar-tenente estável. A cada crise com os inimigos, de acordo com a narrativa bíblica, Deus levantava um juiz, que era também um guerreiro, um libertador, que em alguns casos organizava um exército provisório, agia com poucos homens, utilizando instrumentos de combate rudimentares, ou atuava sozinho, como o fizeram Eúde e Sansão.
Politicamente, portanto, era uma situação precária, e a sociedade, assim, ficava naquela situação de crise política e moral, assim descrita pelo autor do Livro de Juízes: “Naqueles dias não havia rei em Israel, cada qual fazia o que achava mais reto”. [37]
Isso deixava os homens numa situação semelhante ao estado de natureza e, em tais condições, a instituição da monarquia se deu por necessidade da própria sociedade, pois até então não havia uma autoridade soberana definida que garantisse a paz, mas a liderança era carismática. Esse Livro, tão interessante do ponto de vista da autoridade civil, usa a expressão “não havia rei em Israel” por quatro vezes, sendo que no último versículo do Livro o autor do texto faz uma clara alusão à necessidade da monarquia em Israel, acrescentando ao fato de não haver rei a afirmação de que “cada um fazia o que achava mais reto”. [38]
Torna-se evidente a necessidade de uma autoridade civil em Israel, de acordo com o autor do texto, na narrativa sobre a mulher de um levita que foi vítima de abuso sexual e de homicídio em Belém de Judá. O autor inicia essa narrativa afirmando que “não havia rei em Israel”, e a conclui acrescentando que “cada um fazia o que achava mais reto”. É uma longa narrativa, que se estende do Cap. 19 ao final do Livro, e trata-se de “uma das mais violentas passagens da Bíblia Hebraica”, e o fato narrado chamou a atenção de Rousseau, que em 1781 publicou um texto intitulado Le Lévite d'Ephrạim.[39] 
Comparando essa ausência de autoridade narrada em Juízes ao Cap. XIII do Leviatã, não seria difícil admitir que o autor do texto era a favor de uma comunidade que tivesse um soberano, isto é, um poder comum que mantivesse a todos em respeito, sem o que, de acordo com Hobbes, é impossível que os homens tirem do convívio algum prazer.
            Hobbes procurará definir de forma cabal a autoridade do soberano citando o I Livro de Samuel, no qual se narram os direitos do rei que haveria de ser constituído sobre Israel, a pedido do povo. O povo declarou a Samuel:

Teremos um rei sobre nós. Para que sejamos também como todas as nações; o nosso rei poderá governar-nos, sair adiante de nós, e fazer as nossas guerras. Então o Senhor disse a Samuel: Atende à sua voz, e estabelece-lhes um rei. [40]

Hobbes afirma que os direitos do rei de Israel são próprios de uma soberania absoluta, pois diz o texto de I Samuel:
Estes serão os direitos do rei que houver de reinar sobre vós: ele tomará os vossos filhos, e os empregará no serviço dos seus carros, e como seus cavaleiros... outros para lavrarem os seus campos... e outros para fabricarem as suas armas de guerra... tomará as vossas filhas... tomará o melhor das vossas lavouras e os dará aos seus servidores... também tomará os vossos servos... e os vossos melhores jovens... dizimará o vosso rebanho e vós lhe sereis por servos. [41]

            Com base em tais afirmações, Hobbes afirma que “onde a autoridade do rei melhor está definida é nas palavras de Deus mesmo... E um tal poder não é absoluto? E no entanto foi Deus mesmo quem o chamou de o direito do rei”.[42]
Ele observa que o primeiro rei de Israel, Saul, detinha os poderes de julgar e de comandar o povo na guerra, o que significava que seu poder era absoluto. Por outro lado, como o poder de julgar é subordinado ao soberano, Hobbes observa que a interpretação de um juiz “não é autêntica por ser sua sentença pessoal, mas por ser dada pela autoridade do soberano”.[43] Da mesma forma, em relação à guerra, assevera o filósofo, o soberano tem o poder de decidir quando ela é necessária para manter a paz e a segurança e, mesmo que não seja o comandante das tropas na guerra, “seja quem for o escolhido para general de um exército, aquele que possui o poder soberano é sempre o generalíssimo”.[44] Esse poder, pois, se concentrava em Saul, e independente de ser ele, temporariamente,  rei,  tal poder faz parte da essência da soberania, como vimos ao tratar da Soberania no Cap. III.
            Hobbes, além de afirmar que a origem da soberania estava no povo, ressalva, com base nas palavras de Samuel, que o povo e o rei não seriam bem sucedidos caso se desviassem dos caminhos de Deus. O texto de Samuel que lhe serve de referência diz: “Se temerdes ao Senhor, assim vós como o vosso rei que governa sobre vós, bem será. Se, porém, perseverardes em fazer o mal, perecereis, assim vós com o vosso rei”. [45]
            Porém, na realidade, essas palavras atribuídas a Samuel são lidas por Hobbes, em relação ao caráter absoluto do poder, apenas como conselhos para o rei. O mesmo ele fará em relação a outros profetas, aos apóstolos e ao próprio Papa. Tais pessoas podem servir como conselheiros e mestres, e como intercessores diante de Deus face a algum problema social ou político. No caso de Israel, após a deposição de Samuel da função de juiz, o exercício conjunto da judicatura e do cargo de comandante-em-chefe passou a residir no rei Saul e, posteriormente, em seus sucessores. Quanto ao profeta, vocação que Samuel também tinha, ele passará em Israel a sujeitar-se aos reis, sendo frequentemente perseguido por denunciar injustiças e chamar os reis ao arrependimento e ao retorno à aliança primordial com Deus.
Ainda em relação à obediência ao poder constituído, Hobbes refere-se a dois textos que narram oportunidades que Davi teve de matar o rei Saul, que o perseguia, observando que Davi não o matou por respeitá-lo como ungido do Senhor e, portanto, como soberano absoluto. Mais tarde, Davi manteve esse princípio ao ordenar a execução do soldado que veio a executar o rei Saul, mesmo tendo-o feito em obediência a uma ordem do próprio Saul que, ferido numa batalha, não admitiu ser morto por um adversário.
Hobbes argumenta em torno dessas narrativas em defesa do poder absoluto do soberano e da obediência dos súditos. Davi afirmara, na primeira ocasião, que Saul não lhe poderia resistir, pois estava indefeso, dormindo numa caverna, dizendo, numa visão teocrática da soberania: “O Senhor me guarde de que eu faça tal cousa ao meu senhor, isto é, que eu estenda a mão contra ele, pois é o ungido do Senhor”. [46] E também, noutra ocasião em que Saul esteve sob suas mãos, ele disse: “Quem haverá que estenda a mão contra o ungido do Senhor, e fique inocente?”.[47] Para Hobbes, essas narrativas reforçam o caráter absoluto da soberania e a necessidade da obediência e do respeito dos súditos à instituição da autoridade civil.
            Quanto a Salomão, seu poder se estendeu claramente à religião. O sucessor de Davi, tão laureado por sua sabedoria, do ponto de vista político é um dos mais realistas personagens da Bíblia. Assim que assumiu o trono ele expulsou a Abiatar, “para que não mais fosse sacerdote do Senhor”, e o substituiu por Zadoque. [48]
Dessa narrativa Hobbes enfatiza o poder de demissão e de nomeação do soberano civil sobre a religião, encontrando na Bíblia, novamente, argumentos para corroborar sua tese da submissão da religião ao poder civil.
O realismo de Salomão e sua interferência na religião vai mais além, pois ele ordenou também a morte de Joabe, ex-comandante do exército de Davi, junto ao altar, o que era proibido pela Lei de Moisés, que dizia que se alguém adentrasse o tabernáculo e segurasse nas pontas (ou chifres) do altar, não poderia ser morto.[49] Porém, quando Joabe, sabendo que seria morto por Salomão por ter apoiado a Adonias, filho mais velho de Davi, na sucessão deste do trono, refugiou-se no tabernáculo do Senhor e segurou nas pontas do altar. Mesmo assim Salomão ordenou a sua morte, dizendo inicialmente a Benaia, comandante da guarda real: “Vai, arremete contra ele”. E depois lhe deu uma ordem ainda mais realista, quando Joabe se recusou a sair do lugar santo: “Arremete contra ele e sepulta-o”. E tendo feito como Salomão lhe ordenara, Benaia foi elevado a comandante de seu exército. [50]
- Estariam sendo dados os passos em direção a uma submissão da Religião ao Estado em Israel, de forma realista? Parece que sim, pois Hobbes afirma no Cap. XL do Leviatã:

Salomão destituiu Abiathar de ser sacerdote perante o Senhor. Tinha portanto autoridade sobre o Sumo Sacerdote como sobre qualquer súdito, o que é uma grande marca de supremacia em religião. Dedicou o templo, abençoou o povo, e fez aquela excelente oração, usada na consagração de todas as igrejas e casas de oração, o que é uma outra grande marca de supremacia em religião. Quando havia questão a respeito do livro da lei encontrado no templo, a mesma não era decidida pelo Sumo Sacerdote, mas Josias enviou-o e a outros para inquirirem a tal respeito junto de Hulda, a profetiza, o que constituiu uma outra marca da supremacia em religião. Davi tornou Hashabiah e seus irmãos oficiais de Israel, em todos os negócios do Senhor e no serviço do rei.... Não é isto o pleno poder, tanto temporal como espiritual, como lhe chamam aqueles que o dividem? [51]

Na realidade, diz Hobbes, esse poder é único. Assim, na conclusão do argumento citado acima ela afirma, sobre a pretensa divisão do poder entre temporal e espiritual:

Desde a primeira instituição do reino de Deus até ao cativeiro, a supremacia da religião estava nas mesmas mãos que a da soberania civil, e o oficio de sacerdote depois da eleição de Saul não era magisterial, mas ministerial. [52]

                Hobbes encontra, portanto, bases bíblicas suficientes para a submissão da Igreja ao Estado, o que era necessário devido tanto à natureza do assunto do qual ele tratava quanto à mentalidade de sua época, e muito mais, porque tanto o livro sagrado quanto a sua interpretação eram tidos como patrimônio da Igreja.
            Concluindo esta abordagem, observemos que Hobbes cita a narrativa bíblica sobre o General sírio Naaman como exemplo de obediência civil e de fé em Deus ao mesmo tempo, o que pode ser visto como um reconhecimento da  necessidade da obediência civil pelo profeta Eliseu, e também em relação à tolerância religiosa.
O texto diz que, depois de ter sido curado de lepra sob a ordem do profeta Eliseu de banhar-se sete vezes no Rio Jordão, o General lhe disse que não mais ofereceria holocausto nem sacrifício a outros deuses, mas apenas ao Deus de Israel. Contudo, fez uma ressalva em relação à religião de seu soberano, nos seguintes termos:

Nisto perdoe o Senhor a teu servo; quando o meu senhor entra na casa de Rimom para ali adorar, e ele se encosta na minha mão, e eu também me tenha de encurvar na casa de Rimom, quando assim me prostrar na casa de Rimom, nisto perdoe o Senhor a teu servo. Eliseu lhe disse: Vai em paz. [53]

 Hobbes cita essa passagem no Cap. XLII do Leviatã em relação à obediência ao poder civil, do qual vem a legitimidade sobre a religião, afirmando, em primeiro lugar:

A fé é uma dádiva de Deus, que o homem é incapaz de dar ou tirar por promessas de recompensa ou ameaças de tortura. Mas se além disso se perguntar: E se nos for ordenado por nosso príncipe legítimo que digamos com nossa boca que não acreditamos, devemos obedecer a essa ordem? A afirmação com a boca é apenas uma coisa externa, não mais do que qualquer outro gesto mediante o qual manifestamos nossa obediência; o que qualquer cristão, mantendo-se em seu coração firmemente fiel à fé de Cristo, tem a mesma liberdade de fazer o que o profeta Eliseu concedeu a Naaman, o sírio.[54]

Em segundo lugar, Hobbes afirma:

Tudo aquilo que um súdito, como era o caso de Naaman, é obrigado a fazer em obediência a seu soberano, desde que o não faça segundo seu próprio espírito, mas segundo as leis de seu país, não é uma ação propriamente sua, e sim de seu soberano; e neste caso não é ele quem nega Cristo perante os homens, mas seu governante e as leis de seu país.[55]
           
            Assim, resta legitimada a obediência civil, e a fé continua sendo algo do interior do homem, como no belo exemplo de Naaman, do qual, se fizermos uma leitura mais atenta do Evangelho, veremos que é perfeitamente justificável, pois o próprio Cristo disse: “O Reino de Deus está dentro de vós”.[56]





[1] Leviatã, op. cit., Cap. XXXII, p. 221.
[2] Idem, Cap. XLIII, p. 350
[3] Idem
[4] Idem
[5] The Authorized King James Version (KJV) of 1611: http://www.jesus-is-lord.com/thebible.htm
[6] A. P. Martinich. A Hobbes Dictionary. “Bible”. Oxford: Backwell, 1996. Disponível em: http://www.blackwellreference.com. A expressão “Criticismo Literário” é usada por Martinich em relação à leitura hobbesiana da Bíblia (p. 50ss). Ver também Leviatã, Caps. XXXII, XXXIII e outras observações de Hobbes, na mesma obra, sobre a história da redação dos textos bíblicos e de sua forma atual no Cânon, principalmente em relação ao AT, das quais tratamos aqui brevemente..
[7] Eis os textos em que essas expressões aparecem: Êx 17:14; Êx 24:3s; Êx 34:28; Nm 33:2; Dt 31:9, que diz: “Esta lei escreveu-a Moisés e a deu aos sacerdotes”, o que corrobora a tese de Hobbes sobre o reino sacerdotal em Israel; Dt 31:22; Dt 31:24. Observe-se que em Dt 10: 4 afirma-se que “escreveu o Senhor nas tábuas, segundo a primeira escritura, os dez mandamentos”. Hobbes diria, porém, pela razão natural, que foi Moisés quem escreveu, pois o texto tem um claro caráter confessional e de doação de sentido à realidade ao povo que estava no cativeiro babilônico quando da redação do Deuteronômio.
[8] Js 24:26
[9] Em relação ao Livro de Juízes, destacam-se os seguintes trechos que confirmam isso: 1:21; 1: 26; 6:24; 10:4; 15:19, nos quais aparece, após a narrativa, a afirmação: “até ao dia de hoje”.
[10]Jz 18:30
[11] Jz 17:6
[12] Rt 1:1
[13] Jz 1:1
[14] Ver, respectivamente, sobre os livros citados: Nm 21:14; Js 10:13 e II Sm 1:18; I Cr 29:29; I Rs 11:41; I Rs 14:19 e I Rs 14: 29. Há também outras referências sobre o Livro da História dos Reis de Israel: I Rs 15: 31, 16:5, 14 e 20; 22:39; II Rs 1:18; 10:34; 13:8 e 12; 14:15 e 28; 15:11 e 15 etc., bem como sobre o Livro da História dos Reis de Judá: 15: 7 e 23; I Rs 22: 46; II Rs 8:23; 12:19; 14:18; 15:6 etc. Os escritores também se serviam de cartas, como as mencionadas em II Sm 11, em Rs 21:11 e também de muitas outras, mencionadas tanto nos livros históricos quanto nos proféticos, bem como de documentos reais e da tradição oral.
[15] Gn 5,1
[16] Leviatã, op. cit., Cap. XXXIII, p. 228-229. Hobbes já pudera ter conhecimento de que “Ezequiel, Daniel, Ageu e Zacarias profetizaram no cativeiro”. Quanto ao Livro de Daniel, posteriormente a crítica bíblica demonstrou que parte de seu conteúdo é de caráter apocalíptico, mas de fato o livro descreve o sítio de Jerusalém por Nabucodonosor e fatos ocorridos na Babilônia durante o cativeiro que se seguiu.
[17] Idem, p. 229. Nesse ponto ele cita II Ed 14: 21 e 22. Não só aí ele se refere a textos considerados apócrifos para o Protestantismo, mas também na obra Do Cidadão.
[18] Afirmação é do Prof. Aloisyus P. Martinich, da Universidade do Texas, em gentil mensagem a nós enviada por email em 14/11/ 2007.
[19] Leviatã, op. cit., Cap. XXXI, p. 201
[20] Do Cidadão, op. cit., p. 17.
[21] Dez Mandamentos é a tradução do Hebraico: “Assêret Hadibrot”, termo também traduzido como Dez Falas ou Dez Ditos: “São dez princípios que incluem toda a Torá e seus 613 preceitos, inclusive estes dez”. (Fonte: www.chabad.org.br).
[22] Leviatã, Cap. XXX, p. 203
[23]Em relação ao nome de Deus, Santo Tomás afirma que “se existisse algum nome imposto para significar Deus, não em sua natureza, mas como sujeito, enquanto ele é tal ser, esse nome seria, de qualquer modo, incomunicável, como se dá, talvez com o tetragrama entre os hebreus”. (Suma Teológica, Q. XIII, Art. IX. Trad. de Alexandre Correia. Os Pensadores,  Vol. VIII. S. Paulo: Abril, 1973, p. 123)
[24] Leviatã, XXX, p. 203s
[25] Idem, p. 200. Hobbes tratara desses “direitos essenciais da soberania” no Cap. XVIII do mesmo.
[26] Idem, p. 204.
[27] Idem.
[28] Ec 12,13
[29] Mt 22:21
[30] Jó 41.24 na Vulgata Latina e 41.33 na Versão de Almeida.
[31] Do Cidadão, op. cit., p. 195 a 201, especialmente.
[32] Cf. Leviatã, Cap. XXXV.
[33] Ex 20:18-19 e 21
[34] Jz 9: 12
[35] Jz 9: 16
[36] Do Cidadão, loc. cit.
[37] Jz 17: 6
[38] Na sequência, pois, a expressão aparece em Jz 17.6; 18.1; 19.1 e 21.25.
[39] Para mais detalhes, ver Micahel S. Kochin: Living with the Bible: Jean-Jacques Rousseau Reads Judges 19-21: http://www.hpstudies.org (consulta em 11-05-2012).
[40] I Sm 8,19-20 e 22
[41] I Sm 8, 11-18
[42] Do Cidadão, p. 201.
[43] Leviatã, op. cit., Cap. XXVI, p. 167.
[44] Idem, Cap. XVII, p. 110. Hobbes afirma que também o Parlamento está sujeito ao soberano, pois a assembléia não “adquiriu o poder Legislativo”, e o soberano pode dissolvê-lo (Idem, Cap. XXVI, p. 163).
[45] I Sm 12: 14 e 25
[46] I Sm 24:6
[47] I Sm 26:9
[48] De forma abreviada, em I Rs 2:26-27 e 35 lê-se: “Disse o rei: Vai para Anatote, para teus campos, porque és homem digno de morte. Expulsou, pois, Salomão a Abiatar, para que não mais fosse sacerdote do Senhor. E em lugar de Abiatar constituiu a Zadoque por sacerdote”.
[49] Os chifres ou cornos eram vistos em Israel como símbolo de poder e de salvação. Por isso, a tradução de Almeida de Lucas 1.68 dizia originalmente: “E nos levantou o corno da salvação na casa de Davi seu servo”, o que na Edição Revista e Atualizada, para evitar algum mal entendido em relação à nossa cultura, foi alterado para: “E nos suscitou plena e poderosa salvação na casa de Davi, seu servo”.
[50] I Rs 2.28-31.
[51] Leviatã, op. cit. Cap. XL, p. 283.
[52] Idem
[53] II Rs 5.18-19.
[54] Leviatã, op. cit., Cap. XLII, p. 295
[55] Idem.
[56] Lc 17.21

quarta-feira, 12 de setembro de 2012

Prenúncios do pensamento de Hobbes em relação à Igreja e ao Estado


O exame das relações entre a Igreja e o Estado já estava presente no pensamento de William de Ockham e Marsílio de Pádua. Bertrand Russel afirma que “alguns séculos antes que irrompesse a tempestade da Reforma, uma mudança gradual no clima intelectual abalara as antigas ideias relativas à supremacia da Igreja”. (B. Russell, História do Pensamento Ocidental, p. 256-257).

Observa o pensador que essa “revolta contra uma autoridade substituta entre Deus e o homem” avançou não só por si mesma, mas também devido aos abusos da Igreja que atraíram “a atenção dos homens para a disparidade entre o que pregava e o que praticava”. O fato do clero ser um grande proprietário, afirma Russell, “talvez não fosse censurável, a não ser porque seria difícil conciliar os ensinamentos de Jesus com o comportamento mundano de seus ministros”. (Idem, p. 257)

Quanto às relações entre a soberania civil e do Papado, Ockham afirmou a independência do primeiro em relação à Sé Romana. Em primeiro lugar, “Ockham já sustentara que o cristianismo podia funcionar sem a supremacia desenfreada do Bispo de Roma”. (Idem).

Em segundo lugar, a eleição imperial, para ele, não requeria a confirmação pontifícia. De acordo com Frederick Copleston, “Ockham defendeu firmemente a independência do Estado em relação à Igreja, e atacou fortemente o ‘absolutismo’ papal dentro da própria Igreja”. (Historia de la Filosofia, Vol. III: de Ockham a Suarez, p. 120)

Mantendo a distinção entre o poder espiritual e o temporal, Ockham afirma que “o Papa não é a fonte do poder e da autoridade imperial, e também que a confirmação pontifícia não é necessária para dar validade a uma eleição imperial”, e também que “se o Papa se atribui poder a si mesmo, ou trata de assumir poder na esfera temporal, está invadindo um território sobre o qual não tem jurisdição alguma”, pois “a autoridade do imperador não deriva do Papa, senão de sua eleição, na qual os eleitores ocupam o lugar do povo”. (Idem).

Por fim, um outro conceito de Ockham que pode ter influenciado o pensamento de Hobbes diz respeito ao conhecimento de Deus, pois de acordo com ele:

"Não é possível conhecer a Deus através da experiência sensorial e nada pode ser estabelecido a seu respeito por meio do nosso aparato racional. Acreditar em Deus e nos seus vários atributos depende da fé, e o mesmo ocorre com todo o sistema de dogmas acerca da Trindade, imortalidade da alma, criação e coisas semelhantes. Neste sentido, Ockham pode ser descrito como um cético, mas seria errôneo considerá-lo como um descrente. Ao limitar o alcance da razão e libertar a lógica dos obstáculos metafísicos e teológicos, ele fez muito para promover renovados esforços de investigação científica". (Idem, p. 228-229)

Não localizamos, quer na obra Do Cidadão, quer no Leviatã, qualquer referência direta, isto é, textual, de Hobbes a Ockham, mas de acordo com o Prof. Anthony Kenny, da Universidade de Oxford, o pensamento de William de Ockham, além de ter exercido influência histórica no estudo filosófico da Linguagem, e de ser um distintivo na crítica da Metafísica, é também significativo em relação à Política, tendo suas ideias exercido influência tanto sobre Martinho Lutero quanto sobre Hobbes.
Quanto ao pensamento de Marsílio de Pádua, Russel afirma:

"Marsílio de Pádua (1270-1342), amigo e companheiro de exílio de Ockham, opunha-se igualmente ao Papa e formulou ideias bastante modernas sobre a organização e a competência dos poderes seculares e espirituais. A soberania definitiva reside na maioria do povo em ambos os casos. Os Concílios Gerais devem ser constituídos por eleição popular. Só um Concílio assim teria o direito de excomungar, e ainda assim não sem a sanção secular. Os concílios deveriam se limitar a estabelecer as normas da ortodoxia, mas a Igreja não deve se imiscuir nos assuntos do Estado". (Op. cit., p. 226-227).

E François Châtelet afirma, em relação à contribuição de Marsílio de Pádua para a teoria moderna da soberania:

"O extraordinário mérito de Marsílio de Pádua consiste em definir o que irá ser o Estado laico no sentido do cristianismo. Ele considera a sociedade como um todo que, enquanto tal, é anterior e transcendente em relação a suas partes: ela poder ser apenas a universitas civium – a universalidade dos cidadãos (ou sua melhor parte) – que tem como função legislar, editar as leis necessárias à manutenção do todo; ela designa em seu seio um pars principans – um Príncipe (individual ou coletivo) – que tem a seu encargo a coerção e a gestão. Lançou-se assim o dispositivo teórico que permitirá o advento do conceito político de soberania, ou seja, o conceito moderno do Estado". (História das Ideias Políticas, p. 34-35).

Quanto à autoridade papal e às relações entre a Igreja e o poder civil no pensamento de Marsílio, complementa Châtelet:

"Paralelamente a essa defesa da autonomia e da unidade radical da sociedade política, Marsílio recusa a autoridade papal: a Igreja não é mais do que um nome para designar o conjunto de crentes; não poderia ter um chefe; e os padres, encarregados de preparar os cidadãos para a salvação, dependem do Príncipe, tanto quanto os demais cidadãos; e isso nos quadros da lei". (Idem, p. 35)

No pensamento medieval se desenvolveram outras teses libertadoras que exerceram influência no pensamento político moderno, além das já mencionadas. Os limites do poder papal estão presentes também em outros pensadores da Idade Média, dos quais faremos também breves menções, devido à sua importância para um diálogo com o antipapismo de Hobbes.
O próprio Tomás de Aquino afirmou que “nas matérias que se referem ao bem da cidade (bonum civile), cumpre obedecer antes ao poder secular do que ao poder espiritual, segundo esta palavra de São Mateus (22.21): Dai a César o que é de César”. (E. Gilson, A Filosofia na Idade Média, p. 713).

Porém, um pensador radical em relação ao poder papal foi João de Paris (Jean Quidort), que na obra De potestate regia et papali afirmou que “o Concílio tem o direito de depor o Papa em caso de heresia ou escândalo, porque a ‘vontade do povo’, que se expressa então pelo concílio ou pelos cardeais, é mais forte do que a do Papa”. (Idem, p. 716).
Outro pensador de peso na análise dessa questão é Dante, que afirmava que o homem tem duas beatitudes: uma, a “felicidade acessível pela vida ativa no âmbito político da cidade”, outra, a “beatitude contemplativa da vida eterna”, as quais são alcançadas por meios distintos. Alcança-se a primeira através da Filosofia, e a segunda pelos “ensinamentos espirituais que transcendem a razão humana”, desde que se regulem as ações morais pelas virtudes teológicas da fé, da esperança e da caridade. (Idem, p. 719).

Há, então, dois soberanos: o Pontífice e o Imperador, e “esses dois poderes são últimos e supremos”, cada um em sua ordem. Não se encima um ao outro, mas Deus está acima de ambos, e ele “é o único a escolher o Imperador, o único a confirmá-lo e o único que pode julgá-lo”, e “é de Deus, não do Papa, que o Imperador recebe diretamente sua autoridade”. (Idem, p. 720).

Isso significa, conclui Gilson, que A Monarquia de Dante “anunciava o acordo, sob a autoridade suprema de Deus, de dois universalismos justapostos”, um no universo temporal, o outro no espiritual. Essa forma de raciocinar, portanto, conclui Gilson, demonstra que Dante quis libertar o monarca universal da Igreja, à qual, porém, muitos pensadores, antes e depois dele, quiseram mantê-lo submisso. (Idem).

Os limites do poder eclesiástico são afirmados também, com clareza, num documento histórico da Reforma, a Confissão de Augsburgo, escrita em 1530 por Melanchton, da qual Lutero disse: “Eu nada sei como melhorá-la ou modificá-la”. (Martin Dreher: Introdução à sua tradução da citada Confissão, in: http://www.portalsaofrancisco.com.br)

O Artigo 28 dessa Confissão afirma a diferença entre o poder eclesiástico e o poder político, denunciando o fato de que os pontífices, além de terem onerado as consciências e promovido violentas excomunhões, “também se lançaram à empresa de transferir reinos do mundo e tirar o poder dos imperadores”. Porém, afirma a Confissão, “por causa do mandamento de Deus, ambos (o poder eclesiástico e o poder político) devem ser escrupulosamente venerados e honrados como os maiores benefícios de Deus na terra”. (Confissão de Augsburgo, idem).

A afirmação da separação entre ambos na visão de mundo luterana se torna mais evidente na citação da Confissão que fazemos abaixo, cujos conceitos, apesar das diferentes formas de expressá-los através dos tempos, já estavam presentes no Novo Testamento, foram repetidos na Idade Média por vários autores e no século XVI tanto por Lutero quanto por João Calvino, e por Hobbes:

"O magistrado defende não as mentes, porém os corpos e as coisas corpóreas contra manifestas injustiças, e reprime os homens com a espada e penas temporais... Não se devem confundir, por isso, o poder eclesiástico e o civil. O poder eclesiástico tem sua própria incumbência: ensinar o evangelho e administrar os sacramentos. Não deve invadir ofício alheio, transferir reinos do mundo, ab-rogar as leis dos magistrados, abolir a obediência legítima, impedir julgamentos a respeito de quaisquer ordenações ou contratos civis, prescrever leis aos magistrados sobre a forma de constituir a coisa pública". (Idem).

Concluindo, por ora, esta abordagem sobre o pensamento de Hobbes, e longe de pretender esgotar o tema, observemos novamente uma afirmação de Bertrand Russell sobre o pensador de Malmesbury: “Hobbes era um ferrenho adepto de Erasto e, portanto, sustentava que a Igreja deve ser uma instituição nacional, sujeita às autoridades civis”. (B. Russell, op. cit., p. 276).

Thomas Lieber, que ficou mais conhecido como Thomas Erastus, nasceu em Baden, estudou Filosofia, Teologia e Medicina e foi professor de Medicina em Heidelberg. Em sua época Heidelberg era um importante centro de discussão teológica e uma cidade de refúgio para religiosos de diversas confissões de fé. Porém, cada novo governante impunha sua visão religiosa sobre os cidadãos.

De acordo com Erastus, a Igreja não poderia desempenhar funções que pertenciam ao poder civil, como punir alguém em razão de sua discordância de um princípio de fé, ou atentar contra sua integridade física, privá-lo da propriedade, da liberdade ou matá-lo, pois isso cabe, por direito. Para ele a Igreja também não tinha o direito de negar a comunhão (Eucarista) aos discordantes de seus dogmas e de suas decisões conciliares.

De acordo com o historiador Kenneth Scott Latourette, no século XVI, “onde os governantes eram professadamente cristãos, fossem protestantes, católicos romanos ou ortodoxos, eles eram dominantes”. Nos países luteranos e na Inglaterra, isso foi apoiado por muitos dirigentes da Igreja que se baseavam no princípio chamado “erastianismo”, que afirmava a supremacia do Estado em matéria eclesiástica. E em lugar de concordar com as punições aplicadas pelas igrejas aos seus membros, Erastus (1524-1583) sustentava que “os pecados dos cristãos deveriam ser castigados pelas autoridades civis e não pelas religiosas”. Latourette afirma ainda que, de acordo com essa doutrina, a Igreja tem, de fato, uma esfera de ação distinta em relação ao Estado, mas “deve ser controlada por ele”. (Historia del Cristianismo,1983, p. 354).

Em Heildelberg Erastus se opôs ao inglês George Wither, “porta-voz dos calvinistas, que queriam impor seu Credo no Palatinado, independente da autoridade civil”. Suas doutrinas teológicas e civis foram expostas na obra Explicatio gravissimmae quaestionis, publicada postumamente em Londres, em 1589. A obra “se situa na perspectiva de um Estado confessional e reservava ao poder civil o direito e o dever de intervir em todos os domínios religiosos, e compreende dentro de suas sanções a excomunhão”. Segundo seu pensamento, “reconhece-se aos representantes do Estado, qualquer que seja a religião que eles professem individualmente, o direito de legiferar em matéria religiosa sobre a Igreja estabelecida”. (Encyclopaedia Universalis. Peter F. Baumberger (Ed.). Paris, 1989-1990, p. 1180).

Com base nesse princípio, na Inglaterra do Séc. XVI, inicialmente sem uma definição litúrgica após a estatização da Igreja por Henrique VIII, foi publicado o Livro de Oração Comum sob Eduardo VI em 1549, normatizando a liturgia, pois o culto devia ser submisso ao Estado, como defendia Hobbes nas obras Do Cidadão e Leviatã, pois para o filósofo inglês é esse, afinal, o significado da expressão “culto público”: um culto permitido pelo soberano civil. As ideias de Erastus se expandiram na Inglaterra e posteriormente influenciaram o pensamento de Hobbes.

Teologicamente, Erastus era seguidor de Ulrich Zwingli e nas conferências teológicas de Heildelberg (1560) e Maulbronn (1564) ele opôs à doutrina luterana da Ceia a interpretação de Zwingli, tendo adquirido reconhecimento no trato de questões teológicas. Sua obra citada acima, Explicatio gravissimmae quaestionis, originalmente circulou como manuscrito, contendo 100 teses, as quais depois foram reduzidas a 75. (The Encyclopedia Americana: the international reference work, Vol. X, New York, 1959, p. 468)

Théodore de Bèze, primeiro reitor da academia fundada por Calvino em Genebra em 1559, vindo depois a tornar-se seu sucessor, escreveu uma réplica a Erastus, a qual foi publicada em 1590. Erastus foi excomungado em 1570 por um concílio presbiteriano sob a acusação de anti-trinitariasmo. Porém, foi restaurado em 1576, e a partir de 1580 ele foi para Basel, onde lecionou Medicina e Ética. Erastus se opunha à severa disciplina do Calvinismo, afirmando na Explicatio que nas Escrituras não se garante que a Igreja tenha a autoridade para punir seus ofensores. Antes, ele entende que os atos de disciplina pertencem ao magistrado civil. A partir dessa ideia foi que se desenvolveu o conceito de “erastianismo”, significando a subordinação da Igreja ao Estado, mas essa doutrina, tal como se desenvolveu depois dele, não significa, necessariamente, que ele a tenha sistematizado, ou que seja seu fundador, como ocorre amiúde na História das doutrinas, das ideias e das práticas humanas. (Idem, p. 468-469).

Quantos aos outros autores citados,é impossível afirmar com certeza o que Hobbes conhecia de seu pensamento, ou se ele conhecia a Confissão de Augsburgo, mas encontram-se semelhanças entre seus conceitos.

Quanto a William of Ockham, o Prof. Anthony Kenny, autor da obra A New History of Western Philosophy, publicada inicialmente em Oxford em 2004, e já traduzida no Brasil, nos afirmou: “I am not aware of any evidence that Hobbes read Ockham's political writings, and I think it very unlikely that he did so”. (Por email, em 13-07-2012).

De todo modo, Hobbes afirma no Cap. XLII do Leviatã, citando Mt 6.24: “O próprio Cristo nos disse ser impossível... servir a dois Senhores”. Esta é uma afirmação do Evangelho que dificilmente seria desconhecida dos autores mencionados neste artigo, e com a qual eles certamente concordariam, mesmo se ignorassem a sua presença no texto sagrado.