sábado, 4 de agosto de 2018

Relações entre Hermenêutica, Filosofia, Existência, Arte e Política


Relações entre Hermenêutica, Filosofia, Existência, Arte e Política
(Este texto é parte do Capítulo 3 de meu trabalho de pós-doutorado)
Quando publicou a obra intitulada Hermenêutica, em 1968, Richard Palmer afirmou que o termo Hermenêutica era “desconhecido da maior parte das pessoas cultas e ao mesmo tempo potencialmente significativo para uma série de disciplinas relacionadas com a interpretação, especialmente com a interpretação de textos”. [1]
A Hermenêutica, ao mesmo tempo, afirma Palmer, diz respeito a outras áreas da significação, bem como à existência humana, especialmente na abordagem fenomenológica do homem. Nesse sentido, na obra Aus einem Gespräch von der Sprache, “Martin Heidegger discute o caráter persistentemente hermenêutico do seu próprio pensamento, no que respeita tanto ao primeiro quanto ao último Heidegger. A própria Filosofia, afirma Heidegger, é (ou deveria ser) hermenêutica”. [2]
A exigência de que a Filosofia tenha um caráter hermenêutico demonstra a autoconsciência do sujeito do ato de filosofar, bem como a crítica de seu fazer. No senso comum, porém, ainda se caminha na ignorância em relação ao fato de que a realidade não nos é dada em sua totalidade, mas predomina a visão dogmática da realidade, e não se questiona a interpretação dada pelo sujeito do conhecimento a ela. Superando essa ilusão, a Filosofia, tanto no que diz respeito ao conhecimento da natureza quanto ao conhecimento do homem, tem consciência de que o mundo nos é dado dentro de determinadas circunstâncias temporais, culturais, políticas, existenciais, tecnológicas etc.
Sendo assim, a Hermenêutica se torna uma disciplina necessária para a formação de uma verdadeira consciência crítica da realidade, e tem um caráter eminentemente fenomenológico, propondo sempre o passo de volta à consciência de si e à realidade que se interpreta, a qual não pode mais ser dita simplesmente como realidade externa, pois com ela interagimos. No entanto, poucos são os que têm plena consciência desse processo de interação contínuo com a realidade e de sua interpretação quando emitem um juízo, tomando a sua visão como se ela fosse o real em si e por si.
Do ponto de vista de uma leitura ou interpretação, não só de um texto, mas também de uma obra de arte, de uma situação de vida, “para entender como alguém lê é necessário saber como são seus olhos e qual é a sua visão de mundo”.[3]
Se tal visão de mundo, no entanto, não for questionada pelo sujeito, então ele ainda estará no dogmatismo. É necessário, portanto, que ao fazermos uma leitura, tenhamos consciência de nós mesmos, façamos uma hermenêutica de nosso próprio sujeito e tenhamos uma relação crítica com nossa visão de mundo e com o texto ou com qualquer objeto de conhecimento e de interpretação.
A interpretação está presente em nosso modo de ser, o qual é o resultado de uma interação com a realidade externa. Por isso é difícil, se não impossível, chegar a um conceito o qual poderia ser chamado de a realidade ou o ser em si, visto que somos seres de interação. De tal forma que chegar à compreensão completa de tudo o que quis dizer um autor ou uma autora ao escrever é um ideal difícil de ser atingido. Por isso também, dificilmente poderíamos utilizar o termo conclusão em um trabalho acadêmico, pois tudo flui, nosso modo de ser e de estar no mundo, de significar, de interpretar, de definir. Nossa própria constituição ontológica, marcada pelo vir-a-ser, pelo fazer-se, demonstra que somos, por natureza, seres de interpretação, de releituras e ressignificações, de construção e desconstrução, de tal modo que tanto no que diz respeito à natureza quanto à ciência e à vida prática aplicam-se as palavras de Heráclito: “Tudo flui”. E a interpretação se renova, dialeticamente, de acordo com o movimento do real, onde, como afirmou Antonio Machado, “caminhante, não há caminho” (isto é, dogmático), mas “faz-se caminho ao andar”.
E tal como definiu Carlos Drummond de Andrade, somos seres de interpretação, e continuamos a procurar por nós mesmos, como preceituou Heráclito e disso fez sua missão Sócrates, continuamente se reinterpretando. E se na confissão de fé judaica Deus é palavra criadora, e de acordo com o Quarto Evangelho “o verbo se fez carne e habitou entre nós”, o que significa que o verbo “assumiu a ordem fenomenal do ser’, como afirma C. H. Dodd, também nós outros somos palavra, e por isso se nos impõe a questão hermenêutica.[4]
E ainda de acordo com Drummond, “entre palavras e combinações de palavras circulamos, vivemos, morremos, e palavras somos, finalmente, mas com que significado, que não sabemos ao certo?”.[5] A Hermenêutica assim, constitui o homem ontologicamente.
Dessa forma, necessariamente temos de reconhecer o lugar de uma hermenêutica da existência, confirmando assim a exigência de um caráter hermenêutico não só para a Filosofia, como disse Heidegger, mas antes, para própria vida.
Porém, nem todos os seres humanos têm consciência de que vivem a interpretar o mundo e a si mesmos. Vivem naquele estado de espírito chamado por Kant de dogmatismo ou infância da razão, no qual o sujeito não percebe que a sua interpretação do mundo é marcada por suas relações e por sua interação com ele, das quais, porém, ele não tem consciência.
Isso se aplica à própria leitura da Bíblia, de tal forma que aquilo que entendemos dela é o resultado de uma interação entre nós e o texto, as interpretações que aprendemos sobre ele e a nossa própria relação com ele, existencialmente, quando o lemos. Por isso, quem nunca se deparou com um texto bíblico, nem cresceu numa comunidade judaica ou cristã, lendo-o a partir da hermenêutica e dos dogmas desta, poderá adotar uma interpretação, até certo ponto, mais livre. Por outro lado, quando precisar de instrumental hermenêutico, será difícil não recorrer às fontes clássicas da crítica bíblica, da história das formas e da exegese. De tal forma que chegar ao sentido do autor do texto, isto é, ao que ele realmente quis dizer, é uma tarefa árdua e quase impossível. Nesse aspecto, os especialistas na área de Novo Testamento reconhecem que é difícil mesmo conhecer a ipsissima vox de Jesus, isto é, o que ele realmente disse.
Por outro lado, a admissão prévia do texto bíblico como sagrado pode levar a uma interpretação literal de diversas de suas passagens, as quais, no entanto, considerando-se o contexto histórico, político e cultural de sua redação, as diferenças de visão de mundo entre o redator do texto e o leitor, a forma que lhe deu o tradutor, as interpolações que os copistas podem ter feito no texto, as tradições hermenêuticas sobre o texto, isto é, as interpretações consagradas, torna-se difícil fazer o caminho de volta ao sentido do texto em si.
Porém, isso faz parte da dinâmica da Literatura e da própria existência humana, o que nos leva a admitir o convívio com as diferentes formas de interpretação, em lugar de adotarmos uma postura dogmática em relação ao significado do texto.
A Hermenêutica pode ser entendida como uma ciência geral da interpretação, e nos remete à atitude de perguntar pelo que é, pelo que significa ser e pelo fundamento do próprio ser. É assim que a atitude filosófica, como a do taumaturgo, que se admira diante da realidade externa, diante de si e de sua interação consigo mesmo e com o mundo que o constitui, é uma atitude de espanto diante do mundo e de si mesmo. Dessa forma, a Hermenêutica constitui a própria Filosofia e a Ciência, em todas as suas áreas e disciplinas, ainda que nem todos os pesquisadores tenham consciência dessa interação entre ser, interpretar e conhecer, e nem todos tinham consciência de si mesmos, enquanto ex-sistentes.
Nesse sentido, a obra de Michel Foucault, A Hermenêutica do Sujeito, demonstra a amplitude do conceito de Hermenêutica. O tema foi estudado por Foucault
tanto em suas formulações teóricas quanto em relação a práticas de grande importância na Antiguidade. O principal problema examinado é o da ocupação consigo mesmo, isto é, do cuidado de si mesmo, o qual foi eclipsado, na Filosofia, pelo “conhece-te a ti mesmo”. No entanto, Foucault observa que o conhecimento de si mesmo associa-se regularmente ao cuidado de si na cultura antiga. Isso é óbvio em Sócrates, que demonstra o cuidado da alma no Protágoras, quando através de uma comparação entre os alimentos e o ensino do sofista, previne a um discípulo que queria ouvi-lo, pois assim como alguns alimentos fazem mal ao corpo, determinados ensinamentos podem fazer mal à alma. Ao mesmo tempo, ensinando os homens a cuidar de si mesmos, também os ensinava a cuidar da própria cidade, pois a virtude era exercida no convívio em sociedade, isto é, na Pólis. Por isso, argumentara Sócrates que seus juízes não deveriam proibir que ele ensinasse Filosofia, nem condená-lo por isso, mas sim recompensá-lo por ensinar os homens a cuidar de si mesmos e, por consequência da saúde da Pólis.
De acordo com José Américo Motta Pessanha, “em algumas afirmativas que lhe são atribuídas, Sócrates compara-se aos médicos: como estes, ele submetia, quando necessário, o interlocutor-paciente à purgação da ironia, condição preliminar para a recuperação da saúde da alma, que seria o conhecimento de si mesmo. E, na verdade, o sentido da filosofia — que ele identificava com sua sagrada missão — era o de conduzir o indivíduo a pensar como quem se cura: pensando palavras como quem pensa feridas.... Mas, para aquela democracia, que recusava o direito de cidadania às mulheres, aos estrangeiros e aos escravos — portanto, à maioria da população de Atenas —, o Sócrates pedagogo e médico de almas constituía uma denúncia de suas limitações e, consequentemente, um perigo”.[6]
            A questão do cuidado de si aparece de forma clara nessa advertência de Sócrates, feita, de forma geral, aos atenienses: “Meu caro, tu, um ateniense, da cidade mais importante e mais reputada por sua cultura e poderio, não te pejas de cuidares de adquirir o máximo de riquezas, fama e honrarias, e de não te importares nem cogitares da razão, da verdade e de melhorar quanto mais a tua alma?”.[7]
Sobre um cidadão assim, diz Foucault que ele exercia uma “função útil para a cidade, pois ensinando aos cidadãos a ocuparem-se consigo mesmos... ensina-se-lhes também a ocuparem-se com a própria cidade”. Sendo assim, conclui o gênio francês, “no lugar de condená-lo, seus juízes fariam melhor se recompensassem Sócrates por ter ensinado aos outros a cuidarem de si mesmos”.[8]
                        E por estarmos tratando da Hermenêutica bíblica, de forma especial, neste trabalho, é relevante observar que Foucault dedica-se a um breve texto bíblico contido numa série tripla de relatos sobre a recuperação do que se perdeu: o cap. 15 do Evangelho de Lucas, que contém as parábolas da ovelha, da dracma e do filho perdido.
Depois de falar do ensino socrático, Foucault refere-se a Gregório de Nissa, para quem a parábola da dracma perdida é um modelo do cuidado de si mesmo. O teólogo argumenta, de acordo com Foucault, que “por uma dracma perdida é preciso acender a lâmpada, revirar toda a casa, explorar todos os seus recantos, até que se veja brilhar na sombra, o metal da moeda; da mesma maneira, para encontrar a efígie que Deus imprimiu em nossa alma, e que o corpo recobriu de mácula, é preciso ter cuidados consigo mesmo, acender a luz da razão e explorar todos os recantos da alma”.[9]
Dessa forma, conclui Foucault, “o ascetismo cristão, como a filosofia antiga, coloca-se sob o signo do cuidado de si e faz da obrigação de ter de conhecer-se um dos elementos desta preocupação essencial”.[10]
Sem nos determos mais na extensa exposição de Foucault sobre a hermenêutica do sujeito, por uma necessidade metodológica, nosso objetivo ao fazer referência a essa temática é o de demonstrar como a Hermenêutica, enquanto ciência da interpretação, é ampla em suas aplicações.
A Hermenêutica pode ser estudada também em relação à Arte, especialmente em relação à interpretação musical. Verificamos em locais como a Sala São Paulo que os músicos se reúnem no Café, após os ensaios, e ficam a discutir sobre como se deveria interpretar uma partitura. E em relação à interpretação pianísitca ficou afamado o depoimento do Maestro Leonard Bernstein sobre a forma de Glenn Gould interpretar o Piano Concerto No.1 de Brahms. De acordo com o maestro Emmanuele Baldini, Bernstein aceitou a forma de interpretação de Gould por respeito ao grande pianista.Transcrevemos abaixo, apesar de ser uma citação longa, o discurso feito pelo maestro Bernstein, que também era pianista e compositor, feito em 1962, antes da execução do citado concerto. Observemos, como se trata de um trabalho sobre Retórica e Hermenêutica, que o maestro utiliza os termos acordo epersuasão, próprios da Retórica, em determinado tópico de seu discurso:
“Não tenham medo! O Sr. Gould está aqui. Como vocês sabem, eu não tenho o hábito de falar nos concertos, mas uma curiosa situação fez com que umas duas ou três palavras sejam necessárias. Vocês ouvirão em breve uma interpretação, digamos, não ortodoxa do Concerto N. 1 de Brahms. Uma interpretação absolutamente diferente de qualquer outra que eu tenha já ouvido, ou até sonhado, com seus andamentos amplos e as frequentes contradições com as indicações dinâmicas de Brahms.

Eu não posso dizer que estou inteiramente de acordo com a concepção do Sr. Gould e isso põe a interessante pergunta: por que eu estou regendo este concerto?Estou regendo porque o Sr. Gould é um artista tão válido e sério que eu preciso considerar seriamente qualquer coisa que ele proponha em boa fé, e sua interpretação é suficientemente interessante para que eu tenha a sensação de que vocês deveriam ouvi-la também.

Mas a velha questão permanece: em um concerto, quem é o chefe, o solista ou o regente?A resposta é, naturalmente: algumas vezes, o primeiro, outras, o segundo, dependendo das pessoas envolvidas, mas quase sempre os dois chegam a um acordo, ou por meio da persuasão, ou por meio do carisma, ou até com sutis ameaças.

Eu tinha experimentado só uma vez, em minha vida, a submissão total a um solista que tinha um conceito novo e totalmente incompatível com o meu, e foi a última vez que eu acompanhei o Sr. Gould. Mas desta vez as discrepâncias foram tão grandes que eu pensei que este pequeno discurso fosse necessário.

Então, por que eu vou dirigir? Por que não fazer um pequeno escândalo, chamar outro solista ou pedir ao meu assistente que acompanhe o Sr. Gould?

Porque eu estou fascinado com a ideia de ter a possibilidade de observar uma obra tão tocadade um novo ponto de vista e porque existem momentos durante a execução em que a interpretação de Gould emerge com força e convicção. Em terceiro lugar, porque eu estou feliz por poder aprender de um artista tão genial como Glenn Gould. E finalmente, como o grande DimitriMitropoulos dizia, existe na música o fator esportivo, aquela mistura de curiosidade, aventura e vontade de experimentar. Eu garanto a vocês que esta semana, em companhia do Sr. Gould, foi de fato uma aventura, e é neste espírito de aventura que apresentaremos nossa performance desta noite”.[11]

A interpretação de determinadas composições, não no sentido de sua execução, mas de sua crítica posterior pelos seus próprios autores, pode nos causar estranheza. Nesse sentido, é conhecida a narrativa segundo a qual Beethoven perguntou a uma aluna, enquanto ela tocava as Variações Diabelli, de sua autoria: “Quem fez isso, quem fez isso?”. Ao que ela respondeu: “O Senhor, Herr Beethoven”. E sobre sua obra A Vitória de Welligton, afirmou o mestre de Bonn: “É uma estupidez”. No entanto, “o público saudou o triunfalismo da obra”.[12]
Também na área de Filosofia Política essa mudança de interpretação sobre a própria obra ocorre. O Prof. Dr. Michel Maurice Debrun, no Curso de Mestrado em Filosofia Política, na UNICAMP, em 1985, quando consultado por um aluno que gostaria de utilizar sua obra O Fato Político em uma pesquisa sobre a ideologia, o mito e o conceito de nação, não a recomendou, afirmando que não a escreveria mais.[13]
Tudo o que diz respeito à vida, ao conhecimento, às crenças e às visões de mundo, às ideologias e à ação política, às tecnologias e às diversas práticas humanas, ao consciente e ao inconsciente, ao mundo onírico, às várias formas da linguagem e da expressão humana, ao dito e ao supostamente não dito, é objeto da Hermenêutica, e trata-se de interpretar tais formas de significação e de vida, mas partindo de quais pressupostos?
Os pressupostos adotados, a rigor, já se constituem numa pré-interpretação do que se pretende pesquisar, conhecer, enfim, interpretar, o que implica a necessidade de se adotar uma visão dialética do objeto de interpretação, para que não se incorra no dogmatismo e em todas as suas consequências epistemológicas, linguísticas, ideológicas, éticas e políticas.
Outro autor que deixou uma contribuição fundamental para o estudo da Hermenêutica foi Paul Ricoeur. Na obra O Conflito das Interpretações o filósofo afirma que houve um “enxerto do problema hermenêutico no método fenomenológico”, o que significa que o problema hermenêutico tem uma anterioridade em relação à Filosofia contemporânea.[14]
O problema hermenêutico se colocou, antes de tudo, “nos limites da exegese, isto é, no quadro de uma disciplina que se propõe a compreender um texto a partir de sua intenção, sobre o fundamento daquilo que ele quer dizer” (p. 5)
A exegese suscitou, portanto, um problema hermenêutico, devido ao fato de que “toda leitura faz-se sempre no interior de uma comunidade, de uma tradição, ou de uma corrente de pensamento vivo, que revelam pressupostos e exigências”. (p. 6 ). Por isso, “a leitura dos mitos na escola estoica, na base de uma física e de uma ética filosóficas, implica uma hermenêutica muito diferente da interpretação rabínica da Torah na Halacha ou Haggada”. Por outro lado, continua Ricoeur, “a interpretação do Antigo Testamento à luz do acontecimento crístico, pela geração dos apóstolos, dá uma leitura dos acontecimentos, das instituições, das personagens da Bíblia, completamente diferente da dos rabinos”.[15]
            Paul Ricoeur então pergunta: Em que tais questões exegéticas dizem respeito à Filosofia? Ao que responderá, em primeiro lugar, referindo-se à implicação advinda da exegese, isto é, tal ciência “implica uma teoria do signo e da significação, como se vê, por exemplo, na De Doctrina Christiana, de Santo Agostinho”.[16]
A citada obra de Agostinho, para Heidegger, é uma referência na Hermenêutica, pois dela afirma o filósofo alemão:
“Agostinho produz a primeira ‘hermenêutica’ em estilo grandioso”. Para o pensador cristão, a interpretação das passagens da Escritura que não tenham a suficiente clareza exige que o intérprete seja temente a Deus tenha “o cuidado único de buscar na Escritura a vontade de Deus”, que seja piedoso, o que o afastará do “prazer nas disputas verbais”, bem como deve ter conhecimento linguístico suficiente, “para que não fique em suspenso diante de palavras ou locuções desconhecidas”, e ser capaz de valer-se da ilustração, a qual, porém, deve ser “apoiada no conteúdo da verdade”.[17]

Como um texto pode ter mais de um sentido, por exemplo, um sentido histórico e um espiritual, é necessário recorrer a uma noção de significação que vá além daquela que trata dos chamados “ditos unívocos”, requeridos por uma lógica da argumentação. Nesse sentido, Ricoeur mostra o caráter dialético da Hermenêutica, confirmando sua natureza filosófica.
Essa dialética referida por Ricoeur em relação à Hermenêutica está presente na própria natureza da Filosofia, tão bem definida por Hegel, que mostra a temporalidadee a negação dos conceitos e das escolas ao longo da História, deixando assim ao próprio sujeito do ato de filosofar a interpretação da realidade e a busca da verdade.
É assim que Hegel afirma o constante negar-se e vir-a-ser da Filosofia em sua Introdução à História da Filosofia: o filósofo primeiro fala do apelo de Cristo ao jovem que, antes de segui-lo, lhe pediu que pudesse ir antes sepultar seus pais, ao que Cristo respondeu: “deixa aos mortos o sepultar os seus próprios mortos – Tu, porém, vem e segue-me”, o que Hegel interpreta em relação com a superioridade de Cristo a toda filosofia.
Depois, porém, como toda escola filosófica se esvai, Hegel faz uma leitura da narrativa da morte de Ananias e Safira na perspectiva da temporalidade e da superação do conhecimento, interpretando a afirmação: “Eis aí os pés dos que levaram a teu marido, e eles te levarão também a ti”, presente no Livro de Atos dos Apóstolos, em relação à superação de toda escola filosófica no decorrer da História. É assim, que, enfim, ele deixa a cada um a possibilidade de filosofar, afirmando: “Segue-te a ti mesmo”.[18]
Retornando a Ricoeur, esse caráter do conhecimento filosófico, que está presente não só em Sócrates, com a prática do oráculo de Delfos, mas também antes, em Heráclito, mais conhecido em relação à dialética da natureza, mas que antecedeu ao filósofo ateniense ao afirmar: “Procurei por mim mesmo”.
Por isso, continua Ricoeur, “o trabalho da intepretação revela um desígnio profundo de si mesmo”. O ser-aí adquire suma importância, dessa forma, na Hermenêutica ricoeuriana e heideggeriana, quando “o próprio trabalho de interpretação revela um desígnio profundo, o de vencer uma distância, um afastamento cultural, de tornar o leitor igual a um texto tornado estranho, e, assim, de incorporar o seu sentido à compreensão presente que um homem pode ter de si mesmo”. [19]
O sujeito da interpretação tem sua consciência determinada culturalmente. Sua visão de mundo e de si mesmo, da política, da religião, dos costumes, sua forma de significação de si mesmo e do mundo, enfim, é relativa. A Hermenêutica, assim, leva-nos a perguntar não só pelo significado do texto, da obra de arte, mas também pelo seu contexto social, econômico, político e ideológico, bem como pelo sentido do próprio ser homem nesse contexto.
A existência humana consiste, mesmo, num constante interpretar, de acordo com o jurista Raimundo Bezerra Falcão, que afirma:
“A decifração das marcas que o homem imprime aos fenômenos é a interpretação. Noutros termos, podemos dizer que ela é o processo para essa decifração, que, de resto, é a decifração da vida. O homem é mudança, mudança, inclusive e por extensão, de significações, de modo que a vida é um constante interpretar”.[20]

Como se interpretavam, existencialmente, aqueles pesquisavam e escreviam sobre Filosofia, Religião, Física, Medicina e outras ciências na Idade Média, e mesmo no Século XVII, no qual se repetia o adágio de que bem viveu quem bem se escondeu?
Como interpretar um texto de Descartes dedicado à Congregação da Sagrada Faculdade de Teologia de Paris, reconhecendo o seu poder de censura? Muitos filósofos, teólogos e cientistas escreveram sob o signo do medo, tanto que Descartes, estrategicamente, afirma no Discurso sobre o Método que sabe que a Teologia ensina a ganhar o céu, porém, ressalva que os fundamentos de uma nova ciência deviam ser lançados. Foi com medo da condenação de sua obra, e com medo da morte, que ele lançou, ao lado de outros, como Ockham, Bacon e Galileu, os fundamentos da filosofia e da ciência modernas.
Assim, o leitor desses pensadores e homens de ciência, os interpretará melhor se conhecer não só os seus textos, mas também a sua história de vida, seu contexto histórico, político e religioso. Dessa forma, a interpretação deve levar em conta também o sujeito da ciência, da arte, da teologia, da filosofia, enfim, de tudo o que é produzido pelo homem e é objeto de entendimento.
Quanto a Hobbes, ele próprio afirma que nasceu sob o signo do medo, e sua teoria política, como intitula de forma oportuna Renato Janine Ribeiro um de seus textos sobre o filósofo, foi construída numa forma de trajeto “do medo à esperança”.[21]E como o próprio filósofo afirmou: “Minha mãe pariu gêmeos: eu e o  medo”, é possível que sua própria teoria política, cujo temor maior é o da guerra civil, tenha fundamentos não só teóricos, mas também existenciais.
Na obra intitulada Ontologia (Hermenêutica da facticidade) Heidegger apresenta uma extensa e rica fonte de informações exegéticas e históricas sobre os usos e significados do termo hermenêutica ao longo da História. Como estamos tratando especificamente da hermenêutica bíblica, merece destaque a seguinte afirmação do filósofo: “Fílon chama Moisés de hermeneustheou, o hermeneuta de Deus (o intérprete de sua vontade)”.[22]
Nesse sentido, como nosso trabalho trata da Hermenêutica hobbesiana da Bíblia em relação á Igreja e ao Estado, é relevante a observação de que o filósofo inglês registra que quando Moisés foi ao Monte Sinai pela segunda vez, já como pastor dos que viriam a ser o povo de Israel saído do Egito, Israel é também do Êxodo, que afirma:
Todo o povo presenciou os trovões e os relâmpagos e o monte fumegante: e o povo, observando, se estremeceu e ficou de longe. Disseram a Moisés: Fala-nos tu, e te ouviremos; porém não fale Deus conosco, para que não morramos. O povo estava de longe em pé; Moisés, porém, se chegou onde Deus estava. [23]

            Essas afirmações são utilizadas por Hobbes para fundamentar suas teses de que o poder de Moisés estava sob o poder de Deus, bem como que Moisés era seu lugar-tenente e, como tal, portador da revelação, pois Deus não falava diretamente ao povo.
Ciente disso, Hobbes, opondo-se aos que, em seu contexto histórico e político, afirmavam ter revelações diretas de Deus, e com isso provocavam a desobediência civil, nega a revelação direta de Deus aos homens, a qual é feita sempre através de um mediador ou lugar-tenente. Nesse sentido para evitar a desobediência civil e a perda da paz na vida em sociedade, defende a tese de que cabe ao soberano civil autorizar e reconhecer a religião, autoriza os cultos públicos, definir o que é canônico, enfim, é do soberano que procede a legitimidade da religião. E nesse conjunto argumentativo o filósofo nega a autoridade do Papa como sumo pontífice em relação à religião, pois desde que a mesma é depende do Estado para ser reconhecida, o soberano civil é quem, de fato, é o sumo pontífice, como o eram os césares em Roma.
Assim, em Hobbes se unem a hermenêutica bíblica e a hermenêutica política, com o objetivo máximo de se preservar a paz civil. E nesse sentido, embora por caminhos argumentativos diferentes, Hobbes chega à mesma tese de Santo Tomás de Aquino, que, conforme já assinalamos, perdida a paz civil, “perece a utilidade da vida social”, do que se segue que o regime mais útil será aquele que “conservar a unidade da paz”.[24]




[1] Richard E. Palmer. Hermenêutica. Lisboa: Edições 70, 1989, p. 9.
[2] Idem, p. 15.
[3] Leonardo Boff. A águia e a galinha; uma metáfora da condição humana. Petrópolis: Vozes, 1997, p. 9.
[4] Charles H. Dodd utiliza a expressão citada na obra A Interpretação do Quarto Evangelho. S. Paulo: Paulinas, 1977. 
[5] Carlos Drummond de Andrade. Poesia e prosa. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 1988.
[6] “Sócrates: Vida e Obra”, in: Coleção Os Pensadores: Sócrates. S. Paulo: Nova Cultural, 1987, p. 27.
[7] Platão. Apologia, idem, p. 46-47.
[8] Michel Foucault. Hermenêutica do Sujeito, p. 598.
[9][9]Michel Foucault, idem, ibid.
[10]Michel Foucault, idem.O conhecimento de si mesmo pode ser visto também na parábola do filho perdido que, “caindo em si”, reconheceu que sua situação de fome e desamparo, depois de gastar sua herança dissolutamente, era pior do que a dos empregados de seu pai. Foi então que, caindo em si, isto, fazendo uma leitura de seu interior, voltou para sua casa. O arrependimento, neste sentido, é interpretado por Santo Agostinho como um olhar para dentro de si mesmo, o que na linguagem socrática, equivaleria ao “conhece-te a ti mesmo”. No caso do Evangelho, porém, à luz da palavra de arrependimento pregada por Cristo: “o tempo está cumprido e o reino de Deus está próximo, arrependei-vos, e crede no Evangelho” (Mc 1.15).
[11]  Rádio Cultura FM, SP. Programa Contrastes, apresentado por Emuele Baldini, spalla da Orquestra Sinfônica do Estado de S. Paulo – OSESP, em 01/10/17.

[12] Ribeiro, Milton. “Uma palestra simples sobre a evolução da música de Beethoven”. (miltonribeiro.sul21.com.br, acesso em 27/11/17)

 [13] Michel Maurice Debrun. O Fato Político. Rio de Janeiro: Fundação Getúlio Vargas, 1962.
[14] Paul Ricoeur. O Conflito das Interpretações, Porto: Rés, s/d, p. 5.
[15] Idem, p. 5-6.
[16] Idem, p. 6
[17] M. Heidegger, Ontologia (Hermenêutica da facticidade), 2012, p. 18.
[18] G. W. F. Hegel, Introdução à História da Filosofia. Coleção Os Pensadores.
[19] Paul Ricoeur. O Conflito das Interpretações, p. 6.
[20] Raimundo Bezerra Falcão, Hermenêutica, 2. ed. S. Paulo: Malheiros, 2010, p. 36.
 [21] Artigo publicado na coletânea Os Clássicos da Política, Org. por Francisco Weffort, 1989, p. 51-77.
[22] Martin Heidegger. Ontologia (Hermenêutica da facticidade), 2012, p. 18.
[23]Ex20:18-19 e 21
[24]Sobre o Regime dos Príncipes, op. cit., p. 22.