terça-feira, 5 de outubro de 2010

Obediência e Resistência ao Poder Civil nos Primórdios do Evangelho

Dedico este texto ao meu querido sobrinho Lauro, que, antes de tudo, é meu verdadeiro irmão!

Mesmo que se concorde com os argumentos de Hobbes em relação ao papel dos profetas e apóstolos, isto é, com o fato do filósofo considerá-los apenas como conselheiros dos reis e doutras autoridades, é necessário admitir que os primeiros líderes da Igreja, mesmo indiretamente, faziam frente ao poder estabelecido ao afirmarem a soberania de Deus. Há textos no Novo testamento, seja nos Evangelhos, em Atos dos Apóstolos, nas Epístolas ou no Apocalipse que orientam as comunidades cristãs sobre a obediência civil, bem como colocam acima de tudo a soberania de Deus, e mesmo apresentam claras críticas e denúncias ao poder civil.

Os cristãos foram ensinados a obedecer à autoridade civil, primeiramente, pelo próprio Cristo, que disse: “Dai, pois a César o que é de César e a Deus o que é de Deus” (Mt 22:21), e ainda por Paulo, que escreveu: “Pagai a todos o que lhes é devido: a quem tributo, tributo; a quem imposto, imposto; a quem respeito, respeito; a quem honra, honra” (Rm 13:7), e mais ainda, pelo príncipe dos apóstolos, Pedro, que escreveu: “Tratai todos com honra, amai os irmãos, temei a Deus, honrai o rei” (I Pd 2:17).

Porém, quando se tratava de uma ordem civil contrária aos princípios de sua fé, os cristãos obedeciam em primeiro lugar a estes, pois como disse Pedro: "Antes importa obedecer a Deus do que aos homens" (At 5:19).

Já no início do Evangelho de Mateus encontra-se a afirmação do nacimento de um novo rei:“É nascido o rei dos judeus”, o que levou Herodes, usando a falsamente chamada razão de Estado, a se alarmar e a ordenar a morte de muitos meninos recém-nascidos. Mas o autor do texto não desiste, e encerra sua narrativa com a célebre afirmação de Cristo: “É-me dada toda a autoridade no céu e na terra”.

Essa afirmação, inegavelmente, tem um conteúdo que era entendido pelos cristãos espiritualmente, por exemplo, quando o autor da Epístola aos Efésios diz: “A nossa luta não é contra o sangue e a carne, e sim contra os principados e potestades, contra os dominadores deste mundo tenebroso, contra as forças espirituais do mal, nas regiões celestes” (Ef 6:12).

Porém, a mesma afirmação servia de motivação para a expansão do Reino de Deus, expressão que, ainda que fale de um reino espiritual, toma de empréstimo à linguagem da política um termo fundamental: "Reino”. E no caso de contradição entre os princípios desse Reino e as ordens das autoridades civis, prevalecia aquilo que era relativo ao Reino de Deus. E assim, muitos cristãos desobedeceram às autoridades religiosas de Israel e civis do Império Romano.

E também é claro que Lucas, apesar de enfatizar o arrependimento noem seu Evangelho, fazia também uma dura crítica à violência do Império Romano, ao escrever: “Naquela mesma ocasião, chegando alguns, falavam a Jesus a respeito dos galileus, cujo sangue Pilatos misturava com os sacrifícios que os mesmos realizavam” (Lc 13:1). - Quem não seria capaz de ver nisso uma denúncia dos abusos do poder civil?

E as mensagens de esperança dadas aos cristãos por Paulo, sem dúvida, se referiam às perseguição judaicas e romanas, pois ele escreveu: “Quem nos separará do amor de Cristo? Será tribulação, ou angústia, ou perseguição, ou fome, ou nudez, ou perigo, ou espada?... Nem a morte, nem a vida, nem os anjos, nem os principados, nem os poderes... poderá separar-nos do amor de Deus, que está em Cristo Jesus, nosso Senhor”. (Rm 8: 35-39)E quando foi prisioneiro em Roma, quanto a si mesmo, chegou o momento em que tinha consciência de sua condenação por Nero, tendo afirmado: “Estou sendo já oferecido por libação, e o tempo da minha partida é chegado” (II Tm 4: 6). Porém, observe-se: o Senhor não é o Estado, não é o Império, não é Nero, mas sim Cristo.

Os cristãos, chamando a Cristo de Senhor, colocavam sua autoridade acima de qualquer principado ou potestade, espiritual ou temporal, e faziam uma resistência pacífica aos seus perseguidores. Os romanos admiravam-se e até mesmo criticavam o fato dos cristãos não resistirem quando eram torturados e levados à morte. Alguns até os consideravam sem virtude. Porém, os cristãos acreditavam, como Paulo os ensinou, na Carta aos Filipenses que “o viver é Cristo, e o morrer é lucro” (Fp 1: 21), e para confortá-los, também escreveu o apóstolo: “Porque vos foi concedida a graça de padecerdes por Cristo e não somente de crerdes nele” (Fp 1: 29). Na História da Igreja, porém, também houve daqueles que exageraram, querendo tornar-se mártires, no que foram censurados pelas autoridades eclesiásticas.

Para os cristãos, Deus é soberano e Cristo é o Rei dos reis e o Senhor dos senhores. Tomás de Aquino registrava sua fé na soberania de Deus na dedicatória da obra Do Governo dos Príncipes ao Rei de Cipro, afirmando que a escreveu “confiando o princípio, progresso e consumação da obra ao auxílio daquele que é Rei dos reis e Senhor dos senhores, pelo qual reinam os reis: Deus, grande Senhor, e rei magno sobre todos os deuses”.

Apesar disso, Pedro os ensinou a obedecerem à autoridade civil, pelo bem do Evangelho e pelo bom testemunho, quando disse: “Sujeitai-vos a toda instituição humana por causa do Senhor; quer seja ao rei, como soberano, quer às autoridades como enviadas por ele, tanto para castigo dos malfeitores, como para louvor dos que praticam o bem... Tratai a todos com honra, amai aos irmãos, temei a Deus, honrai ao rei”.(I Pd 2:13-14 e 17). Portanto, Pedro ensina, abaixo da obediência a Deus, a obediência ao poder civil.

O mesmo se encontra em Paulo que, sabiamente, não ofereceu resistência ao poder civil, como a maioria dos cristãos, cumprindo o princípio de Cristo de que “se o grão de trigo caindo, não morrer, fica ele só, mas se morrer, dá muito fruto”.

E assim esses homens, e suas ovelhas, sem uma ideologia política, sem um partido ou facção, mas apenas tendo a Cristo como Senhor, ainda que tenham sido desprezados até à morte, foram o fermento que levedou toda a massa. Eles lançaram com seus próprios corpos, templos do Espírito, as sementes do Reino de Deus.

Sigamos as suas pisadas.