Na
Introdução do Leviatã Hobbes afirma que o homem pode imitar a
natureza e, através da arte, criar um homem artificial, o corpo político. Este,
como o homem, é um organismo: pode ter força e saúde como todo corpo, mas
também pode ficar doente e perecer. Nesse corpo político, “a concórdia é a
saúde; a sedição é a doença; a guerra
civil é a morte”. (Leviatã, Introdução).
Feito à imagem e semelhança de Deus, agora o homem
cria, e diz: “Fiat” e dá origem, através das paixões e da razão, ao Estado, este
homem artificial que foi projetado para a defesa e a proteção dos cidadãos: “salus populi é seu objetivo”.
Na primeira parte da obra, partindo do princípio de
que quem for exercer o governo sobre uma nação “deve ler, em si mesmo, não este
ou aquele indivíduo em particular, mas o gênero humano”, ele examina a matéria
e o criador do homem artificial, isto é, o próprio homem, propondo um novo
“conhece-te a ti mesmo”, rejeitando o conhecimento baseado em livros e no
costume que os homens têm de conhecer os outros sem se conhecerem a si
mesmos.
Devido ao papel da teoria do conhecimento para a
explicação da origem do Estado, afirma que as interpretações das sensações ou
da percepção sensível, tais como aparecem em Aristóteles e nas universidades de
sua própria época, são com frequência um “discurso destituído de significado” (Leviatã,
Os Pensadores, 1974, Cap. I, p. 14).
É um pressuposto de sua teoria do Estado e da ação
política, portanto, a natureza do homem. Para bem governar é necessário bem
conhecer a natureza das coisas em relação ao homem: “... os caracteres do
coração humano, emaranhados e confusos como são, devido à dissimulação, à
mentira, ao fingimento e às doutrinas errôneas, só se tornam legíveis para quem
investiga os corações” (Leviatã, Introdução, p. 10), isto é, o interior
do homem. Para aqueles que, como René Descartes, viram a antropologia de
Hobbes como extremamente negativa, ele afirmará na segunda edição do De Cive (1651), citando o Gênesis, que
“a imaginação do coração do homem é má desde a sua meninice” (Gn 8.21, tradução
literal da King James Version, de 1611, citada pelo filósofo).
Do ponto de vista fisiológico o coração é um órgão
vital, a Ciência Moderna descobriu que ele é o centro da circulação sanguínea,
e por isso é considerado como a base da vida, e ele é associado não só o vigor
físico, mas também o sentido da vida moral. Na linguagem comum as expressões “pessoa
de bom coração” ou “homem sem coração” referem-se à conduta moral virtuosa ou
réproba. No pensamento judaico o coração é visto como a sede da sensibilidade,
da vontade, das paixões, das afeições, dos desejos, dos apetites, da
inteligência, dos propósitos e do caráter, significando o próprio interior do
homem, ou a sua alma. E a metáfora sobre o coração como interior do homem
é conservada também na obra de Erich Fromm, O
Coração do Homem, seu gênio para o bem e para o mal, demonstrando teses
antecipadas na cultura judaica, que ensinava a guardar, acima de todas as
coisas, o coração, porque dele procedem as saídas da vida, e por Hobbes, sobre
a natureza egoística do homem, que vive em sociedade não por instinto, como as
abelhas, mas por convenção, o que se dá por um longo percurso histórico,
quando, por medo do outro, para sua segurança, associa-se com a finalidade da
preservação da vida, da propriedade, da indústria ou do fazer, da ciência, da
filosofia, da literatura, e mesmo do próprio deleite sensual.
O homem hobbesiano, assim, é dialético: por
natureza os homens são iguais, mas essa igualdade não lhe garante a vida em segurança.
Os homens desconfiam de seus semelhantes, que podem competir com ele,
antecipar-se, invadir sua propriedade, matá-los, ou buscar a glória por simples
ninharias, como um elogio ou a aceitação de uma opinião.
Para aqueles que discordam dessa
descrição do homem, Hobbes volta ao princípio enunciado no início do Leviatã: “Lê-te a ti mesmo”, convidando
o leitor a examinar se ele próprio confia nos homens quando tranca seus cofres
ao sair de casa e ao andar armado pelas ruas. – Que juízo faz ele de seus
semelhantes, indaga o filósofo, ao agir dessa forma? O argumento assim aparece
no Cap. XIII do Leviatã, em resposta
ao leitor que busque na experiência uma confirmação da impossibilidade da vida
em sociedade sem um poder comum que mantenha a todos em respeito: “Que seja portanto ele a considerar-se a
si mesmo, que quando empreende uma viagem se arma e procura ir bem acompanhado;
que quando vai dormir fecha suas portas; que mesmo quando está em casa tranca
seus cofres; e isto mesmo sabendo que existem leis e funcionários públicos
armados, prontos a vingar qualquer injúria que lhe possa ser feita. Que opinião
tem ele de seus compatriotas, ao viajar armado; de seus concidadãos, ao fechar
suas portas; e de seus filhos e servidores, quando tranca seus cofres? Não
significa isso acusar tanto a humanidade com seus atos como eu o faço com
minhas palavras?”
O homem procura, então, associar-se, criando um
homem artificial, feito à imagem e semelhança do homem natural, porém maior e
mais forte do que ele, chegando a ser temível por todos os que o criaram, pois
sem o medo desse poder que é comum, isto é, sobre todos e voltado para a sua
proteção, os homens não tirariam prazer algum.
Sendo o Estado concebido por Hobbes comparável a um
grande homem, no qual se espelham a natureza e a razão de um pequeno homem, a
explicação de sua gênese deve, pois, começar por uma antropologia, e enquanto
na Filosofia Clássica o método devia ser adequado ao objeto, na Filosofia
Moderna o método de preceder o objeto. “Aquilo que vale como objeto é
constituído pelo método” (Cf. Wolfgang Kerstin, “Thomas Hobbes – Filosofia
Científica da paz e Fundação Contratual do Estado”, in: Filósofos do
Séc. XVII. Uma Introdução. Lothar Kreimendahl, Org.).
Hobbes refuta duas autoridades tradicionais, a de
Aristóteles e a da Igreja, que definiam o homem e a ação em termos metafísicos
e teleológicos. A vida cívica não é tão natural como assegurava a tradição
aristotélica, o que é afirmado por Hobbes tanto no De Cive quanto no Leviatã.
Assim,
Hobbes reconhece, no Leviatã (XVII),
que “é
certo que há algumas criaturas vivas, como as abelhas e as formigas, que vivem
sociavelmente umas com as outras (e por isso são contadas por Aristóteles entre
as criaturas políticas), sem outra direção senão seus juízos e apetites
particulares, nem linguagem através da qual possam indicar umas às outras o que
consideram adequado para o beneficio comum. Assim, talvez haja alguém
interessado em saber por que a humanidade não pode fazer o mesmo. Ao que tenho
a responder o seguinte. Primeiro, que os homens estão constantemente envolvidos
numa competição pela honra e pela dignidade, o que não ocorre no caso dessas
criaturas. E é devido a isso que surgem entre os homens a inveja e o ódio, e
finalmente a guerra, ao passo que entre aquelas criaturas tal não acontece...”.
Com uma argumentação bem mais extensa (a
qual pode ser lida em aula), enfim, ele demonstra no início do Cap. XVII do Leviatã, ao contrário de Aristóteles que, conforme o diz Pierre Manent, “a natureza separa
os homens mais que os une” (Châtelt, Dicionário
das Obras Políticas: “Leviatã”, p. 494).
E logo
após expor a oitava lei de natureza (que diz: “E dado que todos os sinais de
ódio ou desprezo tendem a provocar a luta, a ponto de a maior parte dos homens
preferirem arriscar a vida a ficar sem vingança, podemos formular em oitavo
lugar, como lei de natureza, o seguinte preceito: Que ninguém por atos,
palavras, atitude ou gesto declare ódio ou desprezo pelo outro), Hobbes critica o naturalismo
ideológico de Aristóteles sobre a questão de decidir quem é o melhor homem,
nestes termos: “Aristóteles afirma que por natureza alguns homens têm mais
capacidade para mandar, querendo com isso referir-se aos mais sábios (entre os
quais se incluía a si próprio, devido à sua filosofia), e outros têm mais
capacidade para servir (referindo-se com isto aos que tinham corpos fortes, mas
não eram filósofos como ele); como se senhor e servo não tivessem sido criados
pelo consentimento dos homens, mas pela inteligência, o que não só é contrário
à razão, mas é também contrário à experiência” (Leviatã, Cap. XV, p.
95).
A cooperação entre os membros da sociedade deve-se às
paixões e ao medo da insegurança e da morte violenta, e os homens se associam
em busca de segurança, do deleite, da preservação da propriedade e da paz
civil, não sendo isso visto necessariamente como egoísmo, mas como um cálculo
racional ou prudencial para sair daquele estado em que “a vida do homem
é solitária, pobre, sórdida, embrutecida e curta” (Leviatã,
Cap. XIII).
Por outro lado, apesar do poder soberano ter sua origem
através de uma convenção, os homens se associam visando não só o bem do grupo,
mas acima de tudo, de acordo com Macpherson, as suas próprias vantagens,
gozadas individualmente. A sociedade, nessa visão, é formada por pessoas
condicionadas por motivos egoísticos e só se chegou a ela devido ao próprio
interesse de cada um, sendo o consentimento e a existência de um poder soberano
que coloque a todos em respeito vistos de forma pragmática, como simples meios
para a preservação do interesse individualista de cada um.
Hobbes
reconhece a necessidade da criação do Estado, tanto para limitar esse egoísmo
quanto para permitir a liberdade dos homens e a paz social. No entanto, Hobbes
afirma que, apesar de todas
as leis de natureza tenderem para a preservação da natureza (Cap. XIV), “aquele que fosse modesto e
tratável, e cumprisse todas as suas promessas numa época e num lugar onde mais
ninguém assim fizesse, tornar-se-ia presa fácil para os outros, e
inevitavelmente provocaria sua própria ruína, contrariamente ao fundamento de
todas as leis de natureza, que tendem para a preservação da natureza”. Com isso
Hobbes confirma a necessidade do cuidado do homem diante do outro, que é um
lobo para o homem, mas isso é recíproco: eu sou lobo para o outro, mas posso
ser sua presa ao mesmo tempo.
Porém, ao falar da desconfiança mútua entre os
homens, Hobbes observa
que “nenhum de nós acusa com isso a natureza humana” e que “os desejos e outras
paixões do homem não são em si mesmos um pecado. Nem tampouco o são as ações
que derivam dessas paixões, até ao momento em que se tome conhecimento de uma
lei que as proíba; o que será impossível até ao momento em que sejam feitas as
leis; e nenhuma lei pode ser feita antes de se ter determinado qual a pessoa
que deverá fazê-la”. (Idem).
Assim,
já em sua Antropologia é evidente a necessidade da criação desse homem
artificial “chamado Estado, em Latim Civitas.
É esta a geração daquele grande Leviatã, ou antes (para falar em termos mais reverentes)
daquele Deus Mortal, ao qual devemos, abaixo do Deus Imortal, nossa paz e
defesa” (Leviatã, XVII).
Hobbes fala não só do ponto de vista teórico em
geral, mas em suas obras políticas ele faz constantes referências à sua época,
e especialmente ao seu país, o que não invalida o caráter teórico geral de suas
definições sobre a soberania. Em relação ao seu contexto, Quentin Skinner
observa que em sua Autobiografia
Hobbes afirma que, após a execução de Carlos I, ocorrida em 1649, ele se
decidiu a adiar a publicação do De
Corpore, que viria a sair apenas em 1655. Então, Hobbes se dedica a compor
o Leviatã, publicado em 1651, e na
velhice assim ele se refere ao livro: “Uma obra que combate agora por todos os
reis e todos os que, sob não importa qual nome, detêm direitos régios” (Q.
Skinner, Hobbes e a Liberdade Republicana,
S. Paulo: Unesp, 2010, p. 125).
Observe-se
que, para ele, a soberania é um princípio, independentemente da forma de
governo, o que ele diz repetidamente, tanto no De Cive quanto no Leviatã,
e especialmente ao final do Cap. XVIII deste ele afirma: “Ora, o poder é
sempre o mesmo, sob todas as formas, se estas forem suficientemente perfeitas
para proteger os súditos”.
Para ele a falta de
paz civil em seu contexto era consequência de não saberem os homens a quem
obedecer em sã consciência. As desordens da Inglaterra decorriam
primeiramente disso. A obediência é condição e motor da vida social.
Não se trata, porém,
de ler Hobbes como um mero absolutista. Nesse sentido, Renato Janine Ribeiro
argumenta que os cidadãos serão súditos leais porque foram eles quem
instituíram o Leviatã (Ao Leitor sem Medo, p. 22. S.
Paulo: Brasiliense, 1984). E também relembra que
“Hobbes escreve De Cive e não De Principe: interessa-se mais pela
obediência que pelo exercício do poder. Ocupa-se mais do cidadão que do
governante” (idem, p. 23). E Ribeiro ainda observa que o verdadeiro poder
irresistível pertence somente a Deus, ao afirmar que “de um poder
irresistível decorre direito absoluto, ele completa que tal poder é somente de
Deus; homem nenhum é tão forte que outros não o possam vencer, por coligação,
astúcia, ou opondo a seu sono a vigília; só Deus nunca dorme, só Ele tem
direito absoluto. (Que lógica resta, então, aos que chamam Hobbes de ateu e
defensor do direito absoluto dos reis?)”. [Idem, p. 25).
Em relação ao conflito entre o
poder civil e o religioso, a maior preocupação de Hobbes era relativa à
divergência de opiniões que poderia de dividir o corpo político, gerando a guerra
civil. Porém, esse não era o único motivo para se defender a existência da
soberania absoluta, pois em tempos de paz se observam o temor, a desconfiança e
a agressividade e “a vida do homem em sociedade é dominada pelo amor próprio,
pela vanglória, pelo desejo de levar vantagem sobre o vizinho e de fazer
reconhecer sua superioridade” (Pierre Manent, op. cit.,p. 494-495 e cf. Leviatã,
cap. XIII). É como ele diz na conhecida metáfora da chuva e do tempo: “A guerra não
consiste apenas na batalha, ou no ato de lutar, mas naquele lapso de tempo
durante o qual a vontade de travar batalha é suficientemente conhecida.
Portanto a noção de tempo deve ser levada em conta quanto à natureza da guerra,
do mesmo modo que quanto à natureza do clima. Porque tal como a natureza do mau
tempo não consiste em dois ou três chuviscos, mas numa tendência para chover
que dura vários dias seguidos, assim também a natureza da guerra não consiste
na luta real, mas na conhecida disposição para tal, durante todo o tempo em que
não há garantia do contrário. Todo o tempo restante é de paz”. (Leviatã, XIII)
O poder soberano reconhecido deverá
ser capaz de conter a destruição e a guerra de todos contra todos, só com a sua
instituição os homens poderão tirar prazer da companhia uns dos outros, pois é
esse poder comum que coloca a todos em respeito mútuo.
Para Hobbes, “ideais como contrato, representação e
responsabilidade não tinham sentido, a menos que apoiados por um poder
soberano” (George Sabine, História das Idéias Políticas, Vol. II,
p. 518). Isso significa que qualquer pacto sem a espada seria nulo, não
passando de palavras, como diz Hobbes no Cap. XVIII do Leviatã: “...
Os pactos, não passando de palavras e vento, não têm qualquer força para
obrigar, dominar, constranger ou proteger ninguém, a não ser a que deriva da
espada pública. Ou seja, das mãos livres e sem peias daquele homem, ou assembleia
de homens, que detém a soberania, cujas ações são garantidas por todos, e
realizadas pela força de todos os que nele se encontram unidos”.
No Cap. XIII da mesma obra Hobbes interpreta a
natureza humana como fadada à autodestruição caso não haja um poder capaz de
colocar a todos em respeito, concluindo pela necessidade do Estado como uma
solução da razão diante dos apelos das paixões por uma vida segura, a qual é
impossível no estado de natureza. A própria natureza egoísta dos homens os leva
a fazerem um pacto pelo qual alienam o poder a uma pessoa soberana que os
represente, a qual tanto pode ser um indivíduo quanto uma assembleia.
Em
relação aos Caps. XIII e XVI, que tratam do estado de natureza e do pacto que
cria a pessoa artificial, a qual é uma personificação, isto é, uma
representação, Kerstin afirma que “em relação ao mundo das coisas a razão é
racionalidade técnica e em relação ao mundo dos homens é racionalidade
estratégica” (Wolfgang Kerstin, op. cit., p. 71).
Os
sujeitos da ação vêem-se como parceiros, mas também “se encaram um ao outro
exclusivamente no horizonte dos seus próprios interesses; o outro é útil ou prejudicial
para os planos pessoais; o interesse fundamental de cada pessoa visa o aumento
de poder; o homem hobbesiano, como ser racional, é necessariamente um ser de
poder, porque a razão se mostra precisamente na capacidade de pôr à sua
disposição meios utilitários...” (Idem, p 73-74).
No Cap.
XVI Hobbes desenvolve a tese do Estado como pessoa fictícia ou artificial, numa
conclusão da Primeira Parte, relacionada com o que dissera na Introdução sobre
a arte e o artificial. O “autor” é quem delega ou comissiona, o representante
age por autoridade. O caráter soberano do Estado pode ser verificado na
afirmação de que “quando o ator faz um pacto por autoridade, obriga através
disso o autor”, isto é, a multidão, o que é confirmado em sua afirmação de que
o representante comum, quando tem autoridade sem limites, recebe-a de cada
membro da multidão, os quais passam a ser os autores de todos os seus atos, o
que será reafirmado no Cap. XVII, onde ele deixará claro que se estabelece uma
relação entre a pessoa soberana (representante ou ator) e os súditos (autores).
Hobbes
evoca a lei de natureza segundo a qual os contratos devem ser cumpridos,
alertando sobre o cuidado que se deve tomar ao fazer um contrato em relação à
autoridade do ator ou do autor, pois os pactos deverão ser cumpridos, mesmo que
violem a lei de natureza. O mais importante, porém, em relação à multidão e à
pessoa soberana, é sua afirmação de que “ninguém é obrigado por um pacto do
qual não é autor” (Leviatã, Cap. XVI, p. 101). Como contratualista, ele
postula a tese de que a multidão deve fazer uma transferência total do poder de
governo, isto é, um “pactum subiectionis”.
Ao mesmo
tempo em que fala da personificação do Estado, argumenta em favor de sua
necessidade, pois sem ele não poderia haver outras personificações: os atores,
isto é, representantes de outrem, seja de uma instituição, de Deus ou de outro
homem, só recebem sua legitimação devido à pessoa soberana que foi instituída.
Antes dela não havia povo, mas multidão, não havia direito à propriedade, mas
uma guerra de todos contra todos, nem havia representação reconhecida de Deus,
pois é o Estado quem legitima a própria religião. Torna-se claro que, quantos
aos direitos privados, eles só existem devido à alienação do poder à pessoa soberana,
que os garante, pois antes não havia propriedade, mas o conflito permanente.
Bobbio afirma, em relação ao cap. XIV do Leviatã, que “a esfera privada
coincide com o estado de natureza e se dissolve inteiramente na esfera pública,
isto é, nas relações de domínio que ligam o soberano ao súdito” (Norberto
Bobbio, A Teoria das Formas de Governo, p. 108). Assim, o
homem-artífice cria esse “Deus Mortal ao qual devemos abaixo do Deus Imortal,
nossa paz e defesa” (Leviatã, cap. XVII, p. 110).
Hoje
podemos questionar se essa pessoa soberana é mesmo capaz de impor medo a todos,
e se de fato garante a liberdade e a paz dos súditos, devido às situações de
miséria social que vivemos, direta ou indiretamente. A sociedade capitalista,
mesmo com a evolução de suas instituições, mantém-se num estado de guerra. As
instituições jurídicas não garantem a paz, o que é devido à própria natureza. Já
no De Cive, ao mesmo tempo em que o
Estado aparece como solução para a paz civil, está implícita uma insolubilidade
contínua, devido à natureza egoísta do homem, a qual se prolonga para as
próprias relações internacionais.