O poder supremo de Deus e a soberania
absoluta do Estado no pensamento de Hobbes.
Para
tratar dessa tensão entre a onipotência de Deus e a soberania absoluta do
Estado, se voltarmos nossos olhos para o Prefácio da obra Do Cidadão,
veremos que ali se encontra previamente traçado o plano de trabalho de Hobbes,
tanto do ponto de vista teórico quanto em relação à moral, à política e à vida
civil. Eis a sua divisa: “Neste livro, verás sucintamente descritos os deveres
dos homens, primeiro enquanto homens,
depois enquanto súditos, e finalmente
na qualidade de cristãos”. [1]
Por
essa síntese verifica-se que ele parte dos direitos de natureza, os quais devem
ser preservados pelo Estado. Enquanto criaturas de Deus, no entanto, conforme as
Escrituras, o fim do homem é a vida eterna. A doutrina cristã precisa do
reconhecimento do Estado para ser ensinada e a Igreja precisa do mesmo
reconhecimento para cultuar a Deus, mas se o soberano civil ordenar algo
contrário à salvação poderá ser desobedecido sem que tal desobediência seja
considerada como uma injustiça.
Ao
mesmo tempo em que afirma a existência de um deus mortal, deduzido da razão
natural e construído artificialmente pelo homem, Hobbes submete as ideias a
respeito do Deus imortal a esse grande homem. Na realidade, como o Estado é
deduzido por natureza, reduzindo a religião ao não demonstrável, Hobbes a submete
à autoridade civil.
Nesse
aspecto, observamos que Hobbes, que prometeu ao leitor buscar nas Escrituras argumentos
para justificar a autoridade civil, ao fim nega a soberania das mesmas
Escrituras, submetendo-as ao soberano, pois ao afirmar que a autoridade das
Escrituras procede da pessoa soberana, ao mesmo tempo ele está limitando essa
autoridade.
E Hobbes, de
fato, reduz a religião a uma instituição que, para ser reconhecida
juridicamente, deve subordinar-se ao Estado, e a Igreja só terá legitimidade
enquanto pessoa se for reconhecida pelo Estado, e o homem não lhe estará
sujeito a não ser como fiel, porém nunca enquanto cidadão. No Leviatã Hobbes se dedica a explicar o
significado da palavra Igreja, primeiro de acordo com as Escrituras, depois
apresentando a seguinte definição própria: “Defino uma Igreja como uma
companhia de pessoas que professam a religião cristã, unidas na pessoa de um
soberano, a cuja ordem devem reunir-se, e sem cuja autorização não devem
reunir-se”.[2]
Importantes distinções são feitas como consequência
dessa definição, as quais eram necessárias em seu contexto. Em primeiro lugar,
as Igrejas só podem reunir-se se forem autorizadas pelo soberano civil. Sendo
assim, em segundo lugar, “não existe na terra qualquer Igreja universal a que
todos os cristãos sejam obrigados a obedecer, pois não existe na terra um poder
ao qual todos os outros Estados se encontrem sujeitos”, o que significa que cada cristão deve
sujeitar-se ao Estado do qual é membro. Em
terceiro lugar, se a Igreja pudesse exercer as funções civis de “mandar,
julgar, absolver, condenar ou praticar qualquer outro ato”, seria o mesmo que
um Estado formado por cristãos. Em quarto lugar, “governo temporal e espiritual
são apenas duas palavras trazidas ao mundo para levar os homens a se
confundirem, enganando-se quanto a seu soberano legítimo”. Em quinto lugar,
mesmo que o homem no futuro venha a ressuscitar e a ter um corpo espiritual,
revestido da incorruptibilidade, isto é, eterno “nesta vida o único governo que
existe, seja o do Estado seja o da religião, é o governo temporal”. Em sexto
lugar, como a Igreja está sob a autoridade civil, “não é legítimo que qualquer
súdito ensine doutrinas proibidas pelo governante do Estado e da religião”. Em
sétimo lugar, este governante deve ser único, “caso contrário segue-se a facção
e a guerra civil no país, entre a Igreja e o Estado, entre os espiritualistas e
os temporalistas, entre a espada da justiça e o escudo da fé. E o que é mais
ainda, no próprio coração de cada cristão, entre o cristão e o homem”. E
finalmente, visando a unidade, deve haver apenas um chefe dos pastores, qual
seja, o soberano civil, e isto, afirma Hobbes, “segundo a lei de natureza”.[3]
Assim, no Cap. XLII do Leviatã, intitulado “Do poder eclesiástico”, que por sinal é o mais
extenso da obra, temos um complemento dessas definições, onde Hobbes esclarece,
efetivamente, qual é a missão da Igreja, dizendo:
A missão da qual
Cristo nosso Salvador encarregou seus apóstolos e discípulos foi a de proclamar
seu Reino, não presente, mas vindouro; e ensinar a todas as nações; e batizar
aos que acreditassem; e entrar nas casas dos que os recebessem; e quando não
fossem recebidos, sacudir contra eles a poeira de seus pés, mas não invocar o
fogo dos céus para destruí-los, nem obrigá-los à obediência pela espada. Em tudo isto nada há de poder, mas apenas de
persuasão. Ele enviou-os como ovelhas entre lobos, não como reis entre seus
súditos. Eles não tinham a missão de fazer leis, mas a de obedecer e ensinar
obediência às leis existentes; consequentemente não podiam fazer de seus
escritos cânones obrigatórios, sem a ajuda do poder civil soberano. Portanto, as
Escrituras do Novo Testamento só se tornam lei quando o poder civil legítimo
assim as torna. [4]
A fé é uma questão particular, e caso algum rei se
converta ao Cristianismo, isso não implica que todo o Estado deva tornar-se
cristão também. Assim, a soberania do Estado é preservada, porém, Hobbes mantém
que o Estado é aquele “Deus Mortal, ao qual devemos, abaixo do Deus Imortal,
nossa paz e defesa”.[5] Apenas na terra ele não
tem a quem temer, como afirma o filósofo mais adiante, explicando a metáfora
inspirada no Livro de Jó:
Expus até aqui a
natureza do homem..., juntamente com o grande poder de seu governante, ao qual
comparei com o Leviatã, tirando essa comparação dos dois últimos versículos do
capítulo 41 de Jó, onde Deus, após ter estabelecido o grande poder do Leviatã,
lhe chamou Rei dos Soberbos. Não há nada na Terra, disse ele, que se lhe possa
comparar. Ele é feito de maneira a nunca
ter medo. Ele vê todas as coisas abaixo dele, e é o Rei de todos os Filhos
da Soberba. Mas dado que é mortal, e sujeito à degenerescência, do mesmo modo
que todas as outras criaturas terrenas, e dado que existe no céu (embora não na terra) algo de que ele deve ter medo...”
[6]
Ao dizer que não existe na terra algo de que o
Leviatã deva ter medo, obviamente Hobbes está falando do pretenso reinado
universal do Papado, e do medo infundido por este na sociedade, bem como de
qualquer indivíduo ou instituição que pretenda desobedecer ou sobrepor-se ao
Estado.
No decorrer da História observa-se que,
enquanto na Igreja Primitiva se fazia um grande esforço diante da religião
oficial judaica e do Estado persecutório, na Idade Média e na Idade Moderna,
devido ao domínio da Igreja sobre a cultura e a política, houve uma longa luta
da filosofia e da ciência contra a instituição eclesiástica, que era tão
secular quanto outras, mas com o trunfo de ser representante de Deus na terra,
sobrepondo-se, em nome dessa ideologia, ao Estado, à Filosofia, à Ciência e à
liberdade moral. A Igreja, que no início não tinha expressão política, com o passar
dos séculos tornou-se controladora das consciências. Chegou-se à situação
dialética em que o Estado, de seu perseguidor, precisava libertar-se dela.
Hobbes
teve um importante papel na elaboração de uma teoria que demonstra que sem o
Estado não é possível existir a própria sociedade civil. Logo, a legitimação da
religião também provém do próprio soberano. Não ao contrário, conforme já vimos
ao citar o cap. XII, sobre as vantagens do poder eclesiástico ao coroar um
soberano. Mas Hobbes não está tratando, em sua obra, primeiramente, da religião
cristã, mas da soberania e, por consequência, da religião enquanto instituição
que pretendia ser um Estado dentro do Estado, o que seria uma contradição
lógica e ontológica.
É
impressionante a tarefa de Hobbes, diante de uma cultura influenciada por uma
leitura ideológica da Bíblia, que era o livro por excelência na Inglaterra do
Séc. XVII: demonstrar que a paz é alcançada através da filosofia civil ou
moral, não da instituição eclesiástica, que se dizia a guardiã das Sagradas
Escrituras, justamente destas, que afirmam que Cristo é o Príncipe da Paz, e
que seu Reino não é deste mundo.
Hobbes já questiona a própria noção de Cânon,
afirmando que os livros considerados canônicos eram aqueles que a Igreja
Anglicana, isto é, a Igreja submissa ao Estado, assim o decidisse. Acima do
Papa estava o Soberano, portanto. Nada mais lógico, pois a instituição que
garante a paz civil é o Estado, o que seria uma redundância, mas Hobbes resgata
o sentido de Civitas (Estado) tanto na obra Do Cidadão quanto no Leviatã, pois isso
era necessário em seu contexto.
Conforme já dissemos, para Hobbes a discórdia,
em seu contexto, era provocada pela falta de ciência dos teólogos, e assim ele
entendia que a finalidade da filosofia moral era o alcance da paz civil. Ele
estabelece um contraste entre o mundo da discórdia das doutrinas da teologia e
o mundo da paz da geometria, isto é, o modelo da filosofia civil e, por consequência,
da paz, não era a disputa teológica, mas a filosofia moral, que levaria à
conclusão de que sem a obediência a um poder comum, que colocasse a todos os
homens em respeito, estes não tirariam prazer algum do convívio social, pois
continuariam no estado de natureza, como afirma o filósofo no célebre cap. XIII
do Leviatã.
Aloysius P. Martinich afirma que em Hobbes há uma tentativa
de conciliação entre a visão da ciência moderna e a visão cristã predominante
sobre o Estado.[7]
Este, de acordo com Hobbes, subsume em si todas as instituições, principalmente
a instituição eclesiástica, chegando mesmo a decidir sobre que é canônico ou
não, bem como sobre as doutrinas a serem ensinadas, visando a paz, e assim,
nada do que se opuser à paz civil deverá ser ensinado. Ainda que as doutrinas
sejam verdadeiras, nada impedirá que sejam controladas, tendo em vista a paz. [8]
A rigor, em Hobbes, o Estado é leigo, pois é derivado da
razão natural, não da revelação e nem da missão de Cristo, a qual, como vimos, se
constitui na regeneração do homem. E como ele bem o diz:
O poder eclesiástico
foi transmitido aos apóstolos por nosso Salvador, e... eles foram (a fim de
melhor poderem exercer esse poder), imbuídos do Espírito Santo... Mas toda a disputa seria em vão, se se verificasse
que não lhes foi deixado por nosso Salvador qualquer espécie de poder coercitivo,
mas apenas o poder de proclamar o Reino de Cristo e de persuadir os homens a
submeterem-se-lhe, e através de preceitos e bons conselhos ensinarem aos que se
submeteram o que devem fazer para serem recebidos no Reino de Deus quando ele
chegar, e que os apóstolos e outros ministros do Evangelho são apenas nossos
professores e não nossos comandantes, e que seus preceitos não são leis, mas
apenas salutares conselhos. [9]
Ao falar de disputa,
no trecho citado acima, Hobbes refere-se à discussão do Cardeal Belarmino sobre
a natureza do poder papal: se este deveria ser monárquico, aristocrático ou
democrático. Porém Belarmino, diz Hobbes em seu estilo irônico, parecia ignorar
que “todas estas espécies de poder são soberanas e coercitivas”. [10]
Quanto ao poder de Deus, no Cap. XV na obra Do Cidadão Hobbes afirma que ele é
irresistível: “Em seu reino natural, o direito que Deus tem a reinar, e a punir
os que infringem suas leis, provém exclusivamente de ser irresistível o seu
poder”. [11]
O filósofo argumenta sobre o poder
de Deus referindo-se a Jó e à sua integridade e piedade, à reprovação de Deus
aos amigos de Jó e afirmando que o sofrimento de Jó ocorreu, não com base no
seu pecado, mas sim no poder de Deus: “Deus mesmo, por sua própria voz”, afirma
Hobbes, “confirmou seu direito com argumentos que buscou, não no pecado de Jó,
mas em seu poder divino”. [12] Hobbes
também afirma que Deus rejeitou as queixas de Jó, “não o condenando por
injustiça ou algum pecado, mas simplesmente manifestando seu próprio poder”.[13] E tal
manifestação de seu sublime poder se deu através de sua própria voz, quando
perguntou a Jó: “- Onde estavas tu, quando eu fundava a Terra?”. [14]
Hobbes
também argumenta sobre o ilimitado poder de Deus com base nos Salmos 97 e 99. O
primeiro diz: “O Senhor reina; regozije-se a terra”. [15] O
segundo, escrito pelo mesmo autor, diz: “O Senhor reina; tremam as nações; está
assentado entre os querubins; comova-se a terra”. [16] Hobbes assim
interpreta a afirmação de que Deus reina: “Deus é rei sobre toda a Terra, pouco
importando que os homens o queiram ou não, e não deixará seu trono, ainda que
alguém negue a sua existência ou providência”. [17]
E em seu resgate do temor a Deus em
lugar do temor ao Papado e às suas ameaças, ele afirma que “Deus na verdade
reina lá onde suas leis são obedecidas não por medo aos homens, mas por medo a
ele”. [18] Pois,
continua, se os homens cumprissem a sua lei, não seria necessária a coerção do
poder civil, mas, por não o fazerem, através de Moisés Deus prescreveu ordens
religiosas e civis. [19] Ao
mesmo tempo, porém, afirma que as leis de Deus são aquelas deduzidas da razão
natural, conforme já afirmamos.
Ainda em relação à autoridade civil
em Israel, Hobbes enfatiza que antes da Monarquia os líderes civis eram os juízes,
que carismaticamente comandavam o povo em batalhas e julgavam as suas questões,
tendo vários deles também a vocação profética e sacerdotal, como Samuel. Hobbes
afirma que “eles detinham a autoridade suprema, e, como profetas, interpretavam
o verbo divino... e assim... esses dois poderes continuavam inseparáveis”.[20]
Isso pode ser visto, de forma clara, no caso de Samuel. Eis, pois, no mesmo homem, o exercício da função
civil e da função sacerdotal:
E julgou Samuel todos os dias de sua vida
a Israel. De ano em ano fazia uma volta... e julgava a Israel em todos os seus
lugares. Porém voltava a Ramá, porque sua casa estava ali, onde julgava a
Israel, e onde edificou um altar ao Senhor. [21]
O poder monárquico em Israel foi
pedido pelo povo ao juiz Samuel, tendo sido permitido por Deus, que reconfortou
a Samuel diante da rejeição de seu comando pelo povo, dizendo que não era a
este que o povo rejeitava, mas sim a Ele. Essa derivação do poder do povo
merece destaque na argumentação de Hobbes, que afirma que “o direito pelo qual
os reis governavam estava fundado na concessão mesma do povo”. [22]
Ao tratar da monarquia em Israel é
importante na argumentação de Hobbes, também, a sua afirmação de que o povo
deveria obedecer a seus príncipes em tudo o que dissesse respeito à vida civil,
“exceto quando suas ordens contivessem alguma traição contra a Majestade
Divina”. [23]
Assim, ele mantém a soberania de Deus, o que fará também em relação ao seu
contexto, mas esse tipo de desobediência diz respeito à consciência do fiel,
não eliminando a soberania absoluta do Estado na esfera civil.
E do ponto de vista teórico ele reconhece, também,
os limites naturais do Estado, afirmando no Leviatã que ele “é
mortal, e sujeito à degenerescência, do mesmo modo que todas as outras
criaturas terrenas” e que “existe
no céu (embora não na terra) algo de que ele deve ter medo, e a cuja lei deve
obedecer”.[24]
Sendo assim, o poder supremo de Deus é
reafirmado por Hobbes, mas seus representantes não podem sobrepor-se ao
soberano civil, conforme temos dito, não por mera repetição ou refrão, mas por
força da argumentação e da natureza do próprio discurso.
Ainda em relação a
Israel, Hobbes observa que, após o retorno do cativeiro na Babilônia, não havia
um monarca, voltando o povo a ter uma liderança sacerdotal. De acordo com suas
próprias palavras, “voltaram a estar unidos no sumo pontífice, após o
cativeiro”, o que o tornaria frágil em relação à segurança face ao exterior.[25]
Porém, mesmo que Israel fosse uma nação forte, de qualquer forma o braço de
Alexandre Magno seria irresistível.
Quanto ao temor devido
a Deus, continua Hobbes, embora ele seja devido por quem exerce a soberania
civil, ainda que uma ordem sua se oponha à Majestade divina Hobbes opõe-se à realização de pactos com Deus,
considerando-os impossíveis, afirmando:
Homem algum pode firmar convenções com
Deus, ou obrigar-se para com ele por meio de um voto, exceto na medida em que,
conforme dizem as Sagradas Escrituras, Deus pôs em seu lugar certos homens,
que, portanto, têm autoridade para aceitar tais votos em seu nome.[26]
Tais pactos
seriam em vão se não fossem reconhecidos pela autoridade civil, a qual, para
Hobbes, é o lugar-tenente de Deus. O argumento dirige-se contra aqueles que, em
seu tempo, alegando estabelecer um pacto com Deus, poderiam provocar a
desobediência, a insurreição e assim ameaçavam a paz civil.
Da mesma forma, diz Hobbes, um homem no
estado de natureza também faria pactos com Deus em vão, pois caso seu voto
fosse contrário à lei de natureza, em nada o obrigaria. E se fosse algo já ordenado
por essa lei, não seria voto, mas obrigação de natureza.
E como o voto só poderia ser feito em caso
de “certíssima revelação de que é vontade de Deus”, aceitá-lo não seria
obrigatório, pois não haveria lei que a isso o obrigasse, pois mesmo a revelação
está sujeita ao poder civil, pois é desse que a religião recebe sua
legitimidade e seu reconhecimento.
Posteriormente,
Hobbes afirmará no Leviatã, que “é
impossível fazer pactos com Deus, a não ser através da mediação daqueles a quem
Deus falou, quer por meio da revelação sobrenatural, quer através dos
lugares-tenentes que sob ele governam, e em seu nome”. [27].
A afirmação de que “é impossível fazer pactos com Deus” já
está presente na obra Do Cidadão, e
pode ser entendida, de acordo com Renato Janine Ribeiro, no seguinte contexto:
O rei e o arcebispo de Cantuária, William
Laud, tentam impor à Igreja da Escócia, que é presbiteriana, a organização da
Igreja Anglicana... Disso resulta uma Liga e Pacto Solenes, pelos quais os
escoceses, desde a nobreza até a plebe, firmam uma convenção com Deus, para
defender sua Igreja. Entende-se por aí como era atual Hobbes dizer, neste livro
(Do Cidadão), que é impossível fazer
um pacto com Deus. [28]
Para Hobbes, conforme citamos, só se fazem pactos com o
lugar-tenente de Deus. No caso de Israel, este era Moisés, que passa a ser para
Hobbes um modelo de soberano, pois revela a vontade de Deus ao povo e, ao mesmo
tempo, tem o consentimento deste para governar e lhe prescrever uma lei. Assim,
Israel era ao mesmo tempo um reino sacerdotal e civil.
Na King
James usam-se os termos covenant e kingdom of priests no texto do Êxodo que
fala do pacto entre Deus e os filhos de Israel através de Moisés, como se
observa abaixo:
Now therefore, if
ye will obey my voice indeed, and keep my covenant,
then ye shall be a peculiar
treasure unto me above all people: for all the earth
is mine: And ye shall be unto me a
kingdom of priests, and an holy nation.
These are the words which thou shalt speak unto the children of Israel. [29]
O
significado da aliança de Deus com Israel não é apenas teológico, mas também
civil: através da aliança Deus se torna o soberano desse povo e lhe outorga
leis que garantem a vida comum em segurança, acrescendo a isso a promessa de
suas bênçãos aos obedientes. É uma lei típica de um reino sacerdotal, onde há
deveres civis fundamentais, dos quais Espinosa afirma que aquele povo simples,
inculto, vítima da escravidão, não teria dificuldade de entender, além de, de
acordo com o pensador judeu, não serem mandamentos pesados, onde o mais simples
e essencial deles era o de não matar.
Para Hobbes, como temos dito, o poder sacerdotal recebia
sua legitimidade do poder civil, pois não poderia haver um soberano acima do
soberano. Logo, mesmo no reino sacerdotal o soberano era o poder civil, pois,
como diz Hobbes, Moisés, por ter o poder civil, foi quem ordenou Aarão ao
sacerdócio. De Hobbes a grande luta, portanto, é contra o primado do Papado e
dos presbiterianos sobre o Estado, pois isso chegaria à contradição de um
Estado dentro do Estado.
Por sua
natureza, o homem só cumpre os pactos pelo “medo das consequências de faltar à
palavra dada”, ou pelo “orgulho de aparentar não precisar faltar a ela”. [30] Mas tal orgulho, de
acordo com Hobbes, é raro entre a maior parte da humanidade, restando apenas a
paixão do medo, que pode ser dirigida a dois objetos diferentes: a) o poder dos
espíritos invisíveis; b) o poder dos homens após a constituição da sociedade
civil. E apesar de o poder dos primeiros ser maior, geralmente o medo do poder
dos homens é maior que o relativo aos citados espíritos invisíveis. A religião
surge nos homens antes da sociedade civil e no citado Capítulo XIV do Leviatã Hobbes afirma simplesmente que
“o medo dos primeiros (isto é, dos espíritos invisíveis) é, em cada homem, sua
própria religião”. [31]
Porém, Hobbes reconhece a importância do temor a Deus
para a consecução da paz civil, pois o medo de seu juízo e de sua vingança pode
reforçar os pactos de paz estabelecidos entre os homens, antes da sociedade
civil ou em situação de guerra, como se verifica na afirmação a seguir:
Antes da sociedade civil, ou em caso de interrupção
desta pela guerra, não há nada que seja capaz de reforçar qualquer pacto de paz
a que se tenha anuído, contra as tentações da avareza, da ambição, da
concupiscência, ou outro desejo forte, a não ser o medo daquele poder invisível
que todos veneram como Deus, e na qualidade de vingador de sua perfídia. [32]
E assim o temor a Deus poderia reforçar o pacto de
paz e vencer as tentações (sic) da natureza humana, que deixada a si mesma
levaria o homem a uma vida de “constante temor e perigo de morte violenta”, e a
uma vida “solitária, pobre, sórdida, embrutecida e curta”.[33]
[1]
Do Cidadão, op. cit., p. 11
[2]
Leviatã, op. cit., Cap. XXXIX, p. 277
[3]
Todas as citações deste parágrafo são do Cap. XXXIX do Leviatã, p. 277.
[5]
Idem, Cap. XVII, p. 106
[6] Idem, Cap. XXVIII, p. 191
[7]A.P. Martinich: Hobbes. New York, Routledge, 2005(disponível em
http://books.google.com.br).
[10]
Idem, ibidem.
[11]
Do Cidadão, op. cit., p. 266
[12]
Idem, p. 268
[13]
Idem.
[14]
Jó 38:4
[15]
Sl 97:1
[16]
Sl 99:1
[17]
Do Cidadão, op. cit., p. 264
[18] Idem, Cap. XVI, 15, p.
304
[19] Hobbes afirma que, depois da Lei ter sido dada a
Moisés, era necessário que a repetissem, para que os mais velhos não a
esquecessem e os mais novos a aprendessem, sendo o sábado dedicado à sua
leitura e ensino.
[20] Do Cidadão, idem, p.
305. Como dissemos, porém, no Livro de
Juízes se afirma que “naquele tempo não havia rei em Israel e cada um fazia o
que achava mais reto” (Jz 17:6 et alii).
[21] I Sm 7:15-17
[22] Do Cidadão, Cap. XVI, 16, p. 305
[24]
Leviatã, op. cit., p. 191.
[25] Do Cidadão, cap. XVI, 17
[26]
Do Cidadão, Parte I, Cap. II, p. 52.
[27]
Leviatã, op. cit., Cap. XIV, p. 83
[28] Renato Janine Ribeiro,
Introdução à obra Do Cidadão, de sua
tradução, 1992, p. XXIII e XXIV.
[29]
Ex 19:5-6
[30] Leviatã, op. cit., Cap. XIV, p. 84
[31]
Idem, ibidem.
[32]
Idem, p. 85
[33]
Os termos entre aspas são usados por Hobbes no Cap. XIII do Leviatã.