domingo, 2 de maio de 2010

O Livro de Ester, a Honra e a Soberania Absoluta em Hobbes

Aos meus queridos pais, Epaminondas e Rosa, cuja vida está com Cristo em Deus.

Na Primeira Parte do Leviatã, no Cap. X, intitulado Do poder, valor, dignidade, honra e merecimento, Hobbes já antecipa sua argumentação sobre a soberania absoluta, isso especificamente em relação às honras civis, afirmando que “a fonte de toda honra civil reside na pessoa do Estado, e depende da vontade do soberano”.[1]

Para corroborar seu argumento com uma fonte bíblica, recorre ao Livro de Ester, no qual se narra a honra concedida por Assuero (Artaxerxes), Rei da Pérsia, ao judeu Mordecai. Hobbes dá ênfase ao texto da narrativa que diz: “Assim será feito àquele que o rei quiser honrar”.[2]

Esse argumento, obviamente, dirige-se contra as pretensões da Igreja de sobrepor-se ao soberano civil em relação a quem se deve honrar na sociedade e Hobbes ainda observa que a honra civil, por ser concedida pelo soberano, é temporária.

Hobbes define a honra dessa forma: “A honra consiste apenas na opinião de poder”, dando a seguir exemplos da variedade de ações que poderiam ser consideradas honrosas ou desonrosas, dependendo da opinião, e mesmo observando que muitos duelistas demonstram coragem, mas também outros lutam “para evitar perder reputação, e isso é opinião”.[3]

Hobbes afirma que o Estado é a fonte da honra e dos títulos de honra, e que estes “significam o valor que é atribuído pelo Estado” a duques, condes marqueses, barões e outros.[4] Faz uma explicação erudita sobre a origem e o significado desses títulos, observando que em muitos casos eles não significavam comando de quem os possuía. Depois disso, estabelece relações entre mérito (merecimento) e promessa, afirmando que só se tem mérito daquilo que se tem direito.

Em relação ao Livro de Ester, citado por Hobbes para justificar a origem da honra, façamos algumas breves observações. Desde o seu início, o livro trata da soberania absoluta do poder civil. Em primeiro lugar, mostra um decreto do rei Assuero sobre a obrigação das mulheres de obedecerem a seus maridos. Tal decreto foi posterior à desobediência da rainha Vasti ao rei, assim narrada no texto bíblico:

“Estando já o coração do rei alegre do vinho, mandou ... que introduzissem à presença do rei a rainha Vasti, com a coroa real, para mostrar aos povos e aos príncipes a formosura dela, pois era em extremo formosa. Porém a rainha Vasti recusou vir por intermédio dos eunucos, segundo a palavra do rei; pelo que o rei muito se enfureceu e se inflamou de ira”.[5]

O episódio se reveste de reflexões sobre a soberania, o que se torna claro na seguinte parte da narrativa:

“A rainha Vasti não somente ofendeu ao rei, mas também a todos os príncipes... A notícia do que fez a rainha chegará a todas as mulheres, de modo que desprezarão a seus maridos... As princesas da Pérsia e da Média, ao ouvirem o que fez a rainha, dirão o mesmo a todos os príncipes do rei... Que se inscreva nas leis dos persas e dos medos, e não se revogue, que Vasti não entre jamais na presença do rei Assuero; e o rei dê o reino dela a outra...” (Ester 1, 16-19)

Também na narrativa sobre a audiência de Ester com o rei se repete a questão da autoridade absoluta. Enquanto Vasti, tendo sido chamada à presença do rei, recusou-se a fazê-lo e foi deposta, Ester, agora feita rainha, não poderia comparecer diante da face do soberano sem ser chamada, pois isso lhe custaria a própria vida.

Ela era, na realidade, uma serva do rei. É o que diz o texto:
“Todos os servos do rei e o povo das províncias do rei sabem que para qualquer homem ou mulher que, sem ser chamado, entrar no pátio interior para avistar-se com o rei, não há senão uma sentença, a de morte, salvo se o rei estender para ele o cetro de ouro, para que viva”. [6]

É relevante destacar que o filósofo, após falar brevemente de 16 formas de honra no cap. X do Leviatã, afirma que “todas estas maneiras de honrar são naturais, tanto nos Estados como fora deles”.[7] Porém, ele observa que “nos Estados, onde aquele ou aqueles que detêm a suprema autoridade podem instituir os sinais de honra que lhes aprouver, existem outras honras”, isto é, além das mencionadas por ele anteriormente.[8]

Assim, Hobbes reconhece como única fonte da honra civil o soberano: “Um soberano pode honrar um súdito com qualquer título, ou cargo, ou emprego, ou ação, que ele próprio haja estabelecido como sinal de sua vontade de honrá-lo”.[9]

Observa-se nessa citação da narrativa bíblica do Livro de Ester a hermenêutica hobbesiana de forma clara: a honra provém do poder civil. Certamente Hobbes estava, como exímio intérprete do conteúdo político das Escrituras, opondo-se à presunção eclesiástica de sobrepor-se ao soberano civil e de fazer tamanha inversão na ordem das coisas da política a ponto de pretender coroar o soberano civil, que na realidade é quem legitima toda honra, e que mesmo define e autoriza as diversas formas de culto público, de forma a preservar a paz civil, que é o grande objetivo da luta de Hobbes.

Tanto pela leitura das Escrituras quanto pelas leis derivadas da razão, como expõe no Cap. XIV do Leviatã, Hobbes tem na paz seu grande objetivo, pois de um lado as Escrituras dizem: “Procura a paz e empenha-te por alcançá-la” e também: “É em paz que se semeia o fruto da justiça, para os que promovem a paz”.[10] E por outro lado a primeira parte da primeira lei de natureza, deduzida da simples razão, diz:

“Que todo homem deve esforçar-se pela paz, na medida em que tenha esperança de consegui-la”. [11]

Hobbes escreve sua obra política com argumentos tirados da razão e das Escrituras, visando convencer tanto a incrédulos quanto a crentes que seus argumentos sobre a necessidade da obediência ao poder civil, visando a paz, são verdadeiros, de onde quer que eles sejam deduzidos, da simples razão ou da revelação, cujo maior testemunho para Hobbes é a Escritura.

Notas:
[1] Leviatã, op. cit. Cap. X, p. 55.
[2] Ester 6:11.
[3] Leviatã, idem, p. 57.
[4] Idem, p. 58.
[5] Ester 1:10-12
[6] Ester 4:11
[7] Leviatã, op. cit., Cap. X, p. 55
[8] Idem, ibidem.
[9] Idem, ibidem.
[10] Salmos 34: 14 e Epístola de Tiago 3:18, respectivamente.
[11] Leviatã, op. cit., Cap. XIV, p. 78.

Um comentário:

Anônimo disse...

Ótimo texto, sobretudo a relação de Hobbes com o livro de Ester. Boas ideias!

Atenciosamente, Pedro Filho.
Recife (PE).