sábado, 29 de maio de 2010

A Felicidade desta vida, a Religião e o Estado em Hobbes

Ao meu orientador, Prof. João Quartim de Moraes, por sua agudeza de espírito e por sua paciência

No Cap. XI do Leviatã, intitulado Das diferenças de costumes, Hobbes define os costumes como “aquelas qualidades que dizem respeito a uma vida em comum pacífica e harmoniosa”. Com essa definição demonstra a prioridade, em seu pensamento, da forma de se alcançar a paz civil, isto é, “a felicidade desta vida”, a qual não consiste no “repouso de um espírito satisfeito”, mas sim num “contínuo progresso do desejo”.

Opõe-se, assim, à existência de um fim último e de um bem supremo, afirmada por antigos filósofos morais. Hobbes não cita filósofo algum ao afirmar isso, porém é notório que a idéia de fim último é cara a Santo Agostinho, para quem o homem foi feito para Deus e não encontrará repouso enquanto para Ele não se voltar. Quando à afirmação do bem supremo ou Sumo Bem, é uma idéia imortalizada por Platão, para quem o Bem é a origem do próprio ser e do conhecimento da verdade, e seu pensamento é reinterpretado por Santo Agostinho com o complemento da Revelação, sendo o fim último do homem não a pólis terrena, mas a cidade eterna.

Nesse importante capítulo de sua Antropologia, Hobbes antecipa teses desenvolvidas no célebre Cap. XIII, conhecido por suas definições sobre a miséria humana quando não há um poder comum capaz de colocar a todos em respeito. O progresso do desejo do homem é explicado por Renato Janine Ribeiro de forma comparativa em relação à marcha da própria vida, idéia comum na época da redação do Leviatã e presente na literatura religiosa inglesa no célebre livro O Peregrino (The Pilgrim’s Progress from This World to That Which Is To Come) de John Bunyan, cuja primeira parte foi publicada em 1678 e a segunda em 1684.

A idéia de marcha ou progresso em direção a algum lugar, seja desta vida, ou do provir, era comum na mente dos ingleses do século XVII, e enquanto Bunyan concebe essa marcha rumo à vida eterna, Hobbes a limita aos desejos desta vida. Ele afirma como tese básica de sua Antropologia: “Assinalo assim, em primeiro lugar, como tendência geral de todos os homens, um perpétuo e irrequieto desejo de poder e mais poder, que cessa apenas com a morte”. Hobbes concebe a marcha do desejo do homem como algo infindável, pois o desejo se desloca de um objeto para outro, “não sendo a obtenção do primeiro outra coisa senão o caminho para conseguir o segundo”. Esse desejo de poder e mais poder não cessa senão com a morte, o que é dito de outra forma pelo autor ao afirmar que o homem, quando para de desejar, morre.

Já no Cap. XI o autor também antecipa a idéia pragmática da confiança da segurança da sociedade ao Estado, para que os homens possam levar uma vida quieta e sossegada, na qual possam desfrutar de seus desejos em paz, inclusive do desejo sensual.

No Cap. XIII a igualdade dos seres humanos é concebida como natural: “A natureza fez os homens tão iguais”, afirma o filósofo, a partir de cuja tese refutará argumentos que pudessem se opor, por exemplo: que há homens mais fortes, ou mais sábios. Se há mais fortes, os mais fracos podem unir-se para vencê-lo, ou o mais fraco, através de um secreto ardil, poderá derrotar o mais forte.

Quanto à existência de homens mais sábios, Hobbes diz que há poucos verdadeiramente sábios, mas que a prudência, que é aprendida através da experiência, é comum a todos os homens, o que demonstra a sua igualdade. Ironicamente o autor também que os homens são iguais em relação à presunção de serem mais sábios uns do que os outros, a vaidade, assim, é comum a todos.

A igualdade natural dos homens não garante a vida em segurança, pois quando dois deles desejam a mesma coisa, sendo impossível sua fruição por ambos, instaura-se a competição, e nesse estado de natureza as virtudes principais passam a ser a fraude e a antecipação ao outro, chegando os homens a uma situação em que nada pode ser injusto, pois Hobbes, aparentemente parafraseando o apóstolo Paulo, que afirmou que “eu não conheceria o pecado se a lei não dissesse: não matarás”, ou ainda: “onde não há lei, não existe pecado” (Carta aos Romanos), disse que “onde não há lei, não há injustiça”.

Assim, não há lugar para a indústria, o comércio, a arte, a filosofia, os homens têm um constante medo da morte violenta, a sua vida torna “miserável, embrutecida e curta”, e a razão sugerirá normas de paz que garantirão o convívio em respeito e conseqüentemente, em prazer entre os homens, os quais, por natureza, são lobos uns dos outros.

A "continua marcha do desejo", pois, leva os homens a usarem a razão para garantir-lhes a vida e seu gozo, a razão serve ao desejo fundamental, que é o da vida em paz. Dessa forma, os capítulos XI e XIII se complementam.

Porém, o filósofo coloca entre ambos uma reflexão dedicada à Religião, com o fito de demonstrar, ao final do capítulo XII, o qual é essencial na estrutura da obra, pois aí ele fala da religião como característica natural do homem, das religiões dos gentios, baseadas no medo, e de seu uso na política de forma oportunista, como se a vontade das autoridades civis fosse a vontade de Deus, bem como da religião daqueles que buscam as causas das coisas, chegando à concepção de uma causa não causada, à qual “os homens dão o nome de Deus”, o que foi reconhecido mesmo entre os pagãos, afirma o filósofo, mas nestes não havia necessariamente a adoração do Deus único, a qual, apesar de presente antes de Abraão, como em Abel e Noé, foi revelada a Abraão e aos seus descendentes, e selada através de um pacto, sob Moisés, que tanto era um líder político quanto sacerdotal, a respeito do que o filósofo tratará mais pormenorizadamente no Leviatã (Parte III), mostrando como, com a instauração da monarquia em Israel, o povo rejeitou o pacto com Deus e fez um pacto de obediência ao poder civil, comandado por Saul, que tinha um poder absoluto, dato pelo próprio Deus, donde o filósofo corroborará sua tese da obediência em primeiro lugar ao poder civil, o que já trabalhara antes em sua obra Do Cidadão.

Sobre a peculiaridade da religião ao homem, Hobbes afirma no cap. XII: “Verificando que só no homem encontramos sinais, ou frutos da religião, não há motivo para duvidar que a semente da religião se encontra também apenas no homem, e consiste em alguma qualidade peculiar, ou pelo menos em algum grau eminente dessa qualidade, que não se encontra nas outras criaturas vivas”.
Ele relaciona o desejo do conhecimento das causas com o reconhecimento de um único Deus eterno, como podemos verificar nas afirmações seguintes: “O reconhecimento de um único Deus eterno, infinito e onipotente pode ser derivado do desejo que os homens sentem de conhecer as causas dos corpos naturais, e suas diversas virtudes e operações, mais facilmente que do medo do que possa vir a acontecer-lhes nos tempos vindouros”. Aquele que de qualquer efeito que vê ocorrer... mergulhe profundamente na investigação das causas, deverá concluir que necessariamente existe um primeiro motor. Isto é, uma primeira e eterna causa de todas as coisas, que é o que os homens significam com o nome Deus.

Quanto ao medo como origem das religiões dos gentios, afirma o filósofo: “Alguns dos antigos poetas disseram que os deuses foram criados pelo medo dos homens, o que quando aplicado aos deuses (quer dizer, aos muitos deuses dos gentios), é muito verdadeiro”.

E sobre o uso que as autoridades civis fizeram do medo e da piedade dos povos, afirma o profeta, ou melhor, o filósofo: "Tão fácil é os homens serem levados a acreditar em a qualquer coisa por aqueles que gozam de crédito junto deles, que podem com cuidado e destreza tirar partido de seu medo e ignorância. Portanto os primeiros fundadores e legisladores de Estados entre os gentios, cujo objetivo era apenas manter o povo em obediência e paz, em todos os lugares tiveram os seguintes cuidados. Primeiro, o de incutir em suas mentes a crença de que os preceitos que ditavam a respeito da religião não deviam ser considerados como provenientes de sua própria invenção, mas como os ditames de algum deus, ou outro espírito, ou então de que eles próprios eram de natureza superior à dos simples mortais, a fim de que suas leis fossem mais facilmente aceites".

E acrescenta: "Os romanos, que tinham conquistado a maior parte do mundo então conhecido, não tinham escrúpulos em tolerar qualquer religião que fosse, mesmo na própria cidade de Roma, a não ser que nela houvesse alguma coisa incompatível com o governo civil. E não há notícia de que lá alguma religião fosse proibida, a não ser a dos judeus, os quais (por serem o próprio reino de Deus) consideravam ilegítimo reconhecer sujeição a qualquer rei mortal ou a qualquer Estado. E assim se vê como a religião dos gentios fazia parte de sua política".

E quanto à presença indevida da Igreja em assuntos civis, e à obviedade disso, indaga: “ - Haverá alguém que não seja capaz de ver para benefício de quem contribuía acreditar-se que um rei só recebe de Cristo sua autoridade no caso de ser coroado por um bispo? Que um rei, se for sacerdote, não pode casar-se? Que se um príncipe nasceu de um casamento legítimo ou não é assunto que deve ser decidido pela autoridade de Roma? Que os súditos podem ser libertos de seu dever de sujeição, se a corte de Roma tiver condenado o rei como herege?".

E assim conclui o Cap. XII, que é central em seu pensamento sobre a soberania absoluta do poder civil: “... De modo que posso atribuir todas as mudanças de religião no mundo a uma e à mesma causa, isto é, sacerdotes desprezíveis, e isto não apenas entre os católicos, mas até naquela Igreja que mais presumiu de Reforma”.

Metaforicamente poderíamos afirmar que, enquanto na pregação do apóstolo Paulo "o último inimigo a vencer é a morte", para Hobbes o último inimigo a vencer é a Igreja decadente, que não só entrou em decadência em relação à obediência à Palavra de Deus, mas imiscuiu-se em assuntos civis com a presunção de um poder terreno absoluto, em nome daquele que disse diante de Pilatos:

"O meu reino não é deste mundo".

Um comentário:

Anônimo disse...

Legal, como sempre seus textos professor. Parabéns!