domingo, 4 de julho de 2010

Hobbes: um profeta Pós-Reforma?

Ao meu saudoso pai, Epaminondas Soares de Carvalho, Presbítero Emérito da IPI do Brasil (1925-2008)

Do ponto de vista do contexto de suas idéias, é fundamental observar que o pensamento de Hobbes a respeito da soberania absoluta tinha antecedentes na História da Inglaterra, especialmente no caso de Henrique VIII (1491-1547). Este, em 1527, como pretendia repudiar sua mulher Catarina de Aragão e se casar com Ana Bolena, enfrentou a oposição do Papado, o qual, mesmo que estivesse defendendo os princípios da moral cristã em relação à família, apresentava elementos de controle social e político.
A rigor, em relação à soberania, os reis vinham de uma tradição de poligamia que deveria ser pensada não só em relação à moral social em diferentes povos, mas também em relação à própria razão de estado, pois, por exemplo, enquanto se pregava a fidelidade conjugal nos próprios profetas de Israel, os reis tomavam as mulheres que queriam, e enquanto a Igreja pregava sobre a família, os membros do clero não constituíam família, ou negavam o celibato na prpatica etc.
A interferência do Papado na sucessão do trono e na decisão de um monarca em relação ao seu divórcio e novo casamento poderia ser um bom exemplo daquilo que Hobbes viria a chamar, mais tarde, de usurpação do poder civil pela Igreja. Contra essa presunção absurda, Hobbes afirmará no Leviatã (1651): “Seja qual for o poder eclesiástico que assumam..., seu próprio direito, muito embora lhe chamem o direito de Deus, não passa de usurpação”. (Os Pensadores, 2. ed., p. 396).
Em 1534 Henrique VIII rompeu com Roma e o Parlamento o nomeou chefe supremo da Igreja Anglicana. Hobbes afirma aceitar como canônicos os livros reconhecidos pela autoridade da Igreja Anglicana e diz que o que entende “por livros das Sagradas Escrituras aqueles que devem ser o Cânone, quer dizer, as regras da vida cristã” e que “o problema das Escrituras é o problema de saber o que é lei, tanto natural quanto civil, para toda a cristandade”. (Idem, p. 225).
O pensador, assim, nesse aspecto adota uma interpretação da Bíblia reduzindo-a aos problemas da obediência civil, ou seja, ao reino os homens. Como faz na obra Do Cidadão (1642), reduzindo o que é essencial à salvação à afirmação: Só há salvação em Cristo”, buscada no Credo Niceno, no Leviatã ele afirmará:
“As Escrituras foram escritas para mostrar aos homens o reino de Deus, e preparar seus espíritos para se tornarem seus súditos obedientes; deixando o mundo, e a filosofia a ele referente, às disputas dos homens, pelo exercício de sua razão natural”. (Id., p. 49)
Hobbes parte da premissa de que “o conhecimento de toda lei depende do conhecimento do soberano poder”, isto é, de quem reina, mas apesar de suas críticas à Igreja, no Cap. XXX do Leviatã ele afirma “os súditos devem aos soberanos simples obediência em todas as coisas nas quais a sua obediência não é incompatível com as leis de Deus”. (Idem, p. 211). Deve, pois, diz o pensador, o cidadão saber o que são as leis de Deus, para saber se o que a lei civil ordena é contrário a elas ou não, pois, se não tiver esse conhecimento, poderá obedecer excessivamente ao poder civil e ofender a Divina Majestade ou, “com receio de ofender a Deus”, poderá transgredir os “mandamentos do Estado”. (Idem)
Como Hobbes deriva a legitimidade de qualquer religião do poder soberano, na realidade o cidadão deve, primeiro, obediência ao poder civil, que é a Pessoa Soberana, isto é, a instituição que lhe dá as garantias da vida, da liberdade e da paz civil. Logo, afirma o filósofo, nenhuma doutrina contrária a essa paz deverá ser ensinada na República. E como o caráter da associação é primeiramente civil, segue-se que a instituição eclesiástica, como qualquer outra, deverá submeter-se- ao soberano civil.
No cap. XLVI o pensador argumentará contra a Inquisição, dizendo que ela é um erro que não foi aprendido da Filosofia Civil de Aristóteles, do pensamento de Cícero ou de qualquer outro filósofo pagão. A inquisição estendia o poder dos cânones da Igreja aos próprios pensamentos e às consciências dos homens, mesmo que o discurso e a ação desses não se contradissessem, e punia aqueles que afirmavam a verdade de seus pensamentos, ou os constrangia a mentir, por medo do castigo.
A Igreja, por isso, diz Hobbes, laborava na mentira e na desobediência, a qual se dava de forma tripla: à razão, por negar a verdade; a Deus, que é a fonte de toda a verdade e à lei civil, pois se esta permitia a pluralidade de credos. (Idem, p. 394). Ora, se o próprio poder civil adotava a tolerância religiosa, por que a Igreja, que a ela deveria se submeter, controlaria as próprias consciências?
O totalitarismo dos imperadores romanos que perseguiam os cristãos foi imitado pela Igreja, que perseguiu tanto a cristãos discordantes quanto a não cristãos que laborassem na verdade, através da razão natural. Por isso, a Igreja não só usurpava o poder civil através do paulatino controle das consciências e do incentivo à desobediência civil, mas tornou-se ela mesma uma instituição herética, por obrigar quem conhecia a verdade a dizer a mentira. Para Hobbes, porém, quem deveria julgar se alguém era herege ou não seria o Estado, pois o que estava em jogo, agora, era a paz civil, e toda doutrina contrária a esta não deveria ser ensinada.
Hobbes, assim, ao demonstrar isso, poderia ser comparado a um profeta pós-Reforma que defende a obediência civil e a obediência a Deus, a qual permite tanto a desobediência às leis que se opõem à sua Palavra quanto ao clero decadente.
Seu objetivo é submeter a autoridade da Igreja ao poder civil e nesse sentido afirma que os textos das Escrituras, por si mesmos, não podem ser feitos leis a não ser quando esse poder é concedido pela autoridade da República, como verificamos na citação abaixo:
“E não são as Escrituras, em todos os textos que constituem lei, feitas lei pela autoridade do Estado, e consequentemente, uma parte da lei civil?”. (Idem, p. 394).
Da mesma forma, o filósofo afirma que os indivíduos particulares não têm permissão para interpretar a lei civil por seu próprio espírito, incluindo aí, obviamente, os líderes da instituição eclesiástica que pretendiam interpretar a lei civil de acordo com seus interesses, como ele já adiantara no Cap. XII do Leviatã, afirmando que a Igreja tinha leis e tribunais particulares, em favor de seus próprios interesses.
Semelhantemente, isto é, procurando reduzir a soberania ao Estado, Hobbes afirma que a pregação e o ensino do Evangelho e das Escrituras não deveria ser restrita aos que eram ordenados pela Igreja, mas, argumenta, desde que o Estado o permitisse, poderia ser feita por qualquer cidadão, pois do contrário a Igreja estaria negando uma liberdade concedida pelo poder civil, como afirma o filósofo:

“Um erro do mesmo tipo é também quando alguém exceto o soberano restringe em qualquer homem aquele poder que o Estado não restringiu, como fazem aqueles que se apropriam da pregação do Evangelho para uma certa ordem de homens, quando as leis o permitiram. Se o Estado me dá a liberdade para pregar, ou ensinar, isto é, não mo proíbe, nenhum homem mo pode proibir. Se me encontro entre os idólatras da América, deverei pensar que eu, que sou um cristão, muito embora não tenha ordens, cometo um pecado se pregar Jesus Cristo até ter recebido ordens de Roma? Ou que, tendo pregado, não devo responder a suas dúvidas e fazer-lhes uma exposição das Escrituras, isto é, que não devo ensinar?”.
Essa tese de Hobbes, bem como as demais citadas, sobre o excesso de poder do Papado, além de ser coerente com sua filosofia civil, ainda que não cite Lutero ou Calvino, pode ser claramenre deduzida de uma das doutrinas básicas da Reforma: o sacerdócio universal de todos os crentes.
Eis aí um mais um legítimo herdeiro da Reforma. Ele, que reconhecia que sua obra causava na Itália, a sede do Papado, maior impacto do que a obra de Lutero e de Galileu juntas.

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