sábado, 31 de outubro de 2009

Tópicos sobre a Primeira Parte do Leviatã: Do Homem

Prof. Drndo. Isaar Soares de Carvalho – Escrito originalmente em 2005, como aluno especial do Programa de Pós-Graduação em Ciência Política da USP, e revisado em 2009.
Hoje dedico este texto ao meu filho Thomas, presente de Deus, e minha alegria!

Na Introdução do Leviatã Hobbes afirma que o homem pode imitar a natureza e, através da arte, criar um homem artificial, o corpo político. Este, como o homem, é um organismo: pode ter força e saúde e como todo corpo, pode ficar doente e perecer.

Feito à imagem e semelhança de Deus, agora o homem cria. Ele diz: “Fiat” e dá origem, através das paixões e da razão, ao Estado, homem artificial que foi projetado para a defesa e a proteção dos cidadãos: “salus populi é seu objetivo”.

Na primeira parte da obra, partindo do princípio de que quem for exercer o governo sobre uma nação “deve ler, em si mesmo, não este ou aquele indivíduo em particular, mas o gênero humano”, ele examina a matéria e o artífice do homem artificial, isto é, o próprio homem, propondo um novo “conhece-te a ti mesmo”, rejeitando o conhecimento baseado em livros, no costume dos homens de conhecerem os outros sem se conhecerem a si mesmos.

Devido ao papel da teoria do conhecimento para a explicação da origem do Estado, afirma que as interpretações das sensações ou da percepção sensível, tais como aparecem em Aristóteles e nas universidades de sua própria época, são com freqüência um “discurso destituído de significado” (Leviatã, Os Pensadores, 1974, Cap. I, p. 14).

É um pressuposto de sua teoria do Estado e da ação política, portanto, a natureza do homem. Para bem governar, é necessário bem conhecer a natureza das coisas em relação ao homem: “... os caracteres do coração humano, emaranhados e confusos como são, devido à dissimulação, à mentira, ao fingimento e às doutrinas errôneas, só se tornam legíveis para quem investiga os corações” (Leviatã, Introdução, p. 10).

Nesse aspecto Hobbes fazia referência à natureza das coisas, antecipando pesquisas da Psicologia. A Ciência Moderna descobriu que o coração é o centro da circulação sangüínea, e por isso é considerado como a base da vida física: a ele é associado não só o vigor físico, mas também o sentido da vida moral. No século XX Erich Fromm publicou O Coração do Homem, demonstrando teses antecipadas e intuídas por Hobbes sobre a maldade do homem interior. Mas é possível que Hobbes fale do coração em relação ao pensamento judaico, para o qual este é a faculdade e a sede da sensibilidade, da vontade, das paixões, afeições, dos desejos, apetites, da inteligência, dos propósitos e do caráter, significando o próprio interior do homem ou sua alma.

Sendo o Estado hobbesiano comparável a um grande homem, no qual se espelham a natureza e a razão de uma pessoa pequena, a explicação de sua gênese deve, pois, começar por uma antropologia, e enquanto na Filosofia Clássica o método era adequado ao objeto, na Filosofia Moderna o método o precede objeto. “Aquilo que vale como objeto é constituído pelo método” [Cf. Wolfgang Kerstin, “Thomas Hobbes – Filosofia Científica da paz e Fundação Contratual do Estado”, in: Filósofos do Séc. XVII. Uma Introdução. Lothar Kreimendahl,Org.].

Hobbes refuta duas autoridades tradicionais, a de Aristóteles e a da Igreja, que definiam o homem e a ação em termos metafísicos e teleológicos. A vida cívica não é tão natural como assegurava a tradição aristotélica, o que é afirmado por Hobbes tanto De Cive quanto no Leviatã. Ele demonstra, ao contrário de Aristóteles, que “a natureza separa os homens mais que os une” (Pierre Manent, Dicionário das Obras Políticas: “Leviatã”, p. 494).

E ao expor a oitava lei de natureza, critica o naturalismo ideológico de Aristóteles sobre a questão de decidir quem é o melhor homem nestes termos: “... Aristóteles afirma que por natureza alguns homens têm mais capacidade para mandar, querendo com isso referir-se aos mais sábios (entre os quais se incluía a si próprio, devido à sua filosofia), e outros têm mais capacidade para servir (referindo-se com isto aos que tinham corpos fortes, mas não eram filósofos como ele); como se senhor e servo não tivessem sido criados pelo consentimento dos homens, mas pela inteligência, o que não só é contrário à razão, mas é também contrário à experiência” (Leviatã, Cap. XV, p. 95).

A cooperação entre os membros da sociedade deve-se apenas às vantagens gozadas por eles individualmente. A sociedade é formada por pessoas condicionadas por motivos egoísticos e só se transforma em comunidade devido à existência de um poder soberano. Hobbes reconhece a necessidade da criação do Estado tanto para limitar esse egoísmo quanto para permitir a liberdade dos homens e a paz social, pois para ele a falta de paz interna em seu contexto era conseqüência de não saberem os homens a quem obedecer em sã consciência.

As desordens da Inglaterra decorriam primeiramente disso. A obediência á condição e motor da vida social. O conflito entre o poder civil e o religioso – a divergência de opiniões – indica que o homem não é animal político ou social por natureza. Ele não é naturalmente cidadão. A divergência de opiniões é capaz de dividir o corpo político. Porém, a guerra civil não é o único motivo para se defender a existência de um poder soberano, pois em tempos de paz se observa o temor, a desconfiança e a agressividade e “a vida do homem em sociedade é dominada pelo amor próprio, pela vanglória, pelo desejo de levar vantagem sobre o vizinho e de fazer reconhecer sua superioridade” (Pierre Manent, op. cit.,p. 494-495 e cf.Leviatã, cap. XIII).

O poder soberano reconhecido será capaz de conter a destruição e a guerra de todos contra todos, nascida do amor próprio e da ausência de um poder comum que pusesse a todos em respeito. Para Hobbes, “ideais como contrato, representação e responsabilidade não tinham sentido, a menos que apoiados por um poder soberano” (George Sabine, História das Idéias Políticas, Vol. II, p. 518).

No Cap. XIII do Leviatã Hobbes interpreta a natureza humana como fadada à autodestruição caso não haja um poder capaz de colocar a todos em respeito, concluindo pela necessidade do Estado como uma solução da razão diante dos apelos das paixões por uma vida segura, a qual é impossível no estado de natureza. A própria natureza egoísta dos homens os leva a fazerem um pacto pelo qual alienam o poder a uma pessoa soberana que os represente, a qual tanto pode ser um indivíduo quanto uma assembléia. Em relação aos Caps. XIII e XVI, que trata do estado de natureza e do pacto que cria a pessoa artificial, a qual é uma personificação, isto é, uma representação, Kerstin afirma que “em relação ao mundo das coisas a razão é racionalidade técnica e em relação ao mundo dos homens é racionalidade estratégica” (Wolfgang Kerstin, op. cit., p. 71).

Os sujeitos da ação se vêem como parceiros, mas também “se encaram um ao outro exclusivamente no horizonte dos seus próprios interesses; o outro é útil ou prejudicial para os planos pessoais; o interesse fundamental de cada pessoa visa o aumento de poder; o homem hobbesiano, como ser racional, é necessariamente um ser de poder, porque a razão se mostra precisamente na capacidade de pôr à sua disposição meios utilitários...” (Idem, p 73-74).

No Cap. XVI Hobbes desenvolve a tese do Estado como pessoa fictícia ou artificial, numa conclusão da Primeira Parte, relacionada com o que dissera na Introdução sobre a arte e o artificial. O “autor” é quem delega ou comissiona, o representante age por autoridade.

O caráter soberano do Estado hobbesiano pode ser verificado na afirmação de que “quando o ator faz um pacto por autoridade, obriga através disso o autor”, isto é, a multidão, o que é confirmado em sua afirmação de que o representante comum, quando tem autoridade sem limites, recebe-a de cada membro da multidão, os quais passam a ser os autores de todos os seus atos, o que será reafirmado no Cap. XVII, onde ele deixará claro que se estabelece uma relação entre a pessoa soberana (representante ou ator) e os súditos (autores).

Hobbes evoca a lei de natureza segundo a qual os contratos devem ser cumpridos, alertando sobre o cuidado que se deve tomar ao fazer um contrato em relação à autoridade do ator ou do autor, pois os pactos deverão ser cumpridos, mesmo que violem a lei de natureza. O mais importante, porém, em relação à multidão e à pessoa soberana, é sua afirmação de que “ninguém é obrigado por um pacto do qual não é autor” (Leviatã, Cap. XVI,, p. 101. Como contratualista, ele postula a tese de que a multidão deve fazer uma transferência total do poder de governo, isto é, um “pactum subiectionis”.

Ao mesmo tempo em que fala da personificação do Estado, argumenta em favor de sua necessidade, pois sem ele não poderia haver outras personificações: os atores, isto é, representantes de outrem, seja de uma instituição, de Deus ou de outro homem, só recebem sua legitimação devido à pessoa soberana que foi instituída. Antes dela não havia povo, mas multidão, não havia direito à propriedade, mas uma guerra de todos contra todos, nem havia representação reconhecida de Deus, pois é o Estado quem legitima a própria religião. Torna-se claro que, quantos aos direitos privados, eles só existem devido à alienação do poder à pessoa soberana, que os garante, pois antes não havia propriedade, mas o conflito permanente. Bobbio afirma, em relação ao cap. XIV do Leviatã, que “a esfera privada coincide com o estado de natureza e se dissolve inteiramente na esfera pública, isto é, nas relações de domínio que ligam o soberano ao súdito” (Norberto Bobbio, A Teoria das Formas de Governo, p. 108). Assim, o homem-artífice cria esse “Deus Mortal ao qual devemos abaixo do Deus Imortal, nossa paz e defesa” (Leviatã, cap. XVII, p. 110).

Hoje podemos questionar se essa pessoa soberana é mesmo capaz de impor medo a todos, e se de fato garante a liberdade e a paz dos súditos, devido às situações de miséria social que vivemos, direta ou indiretamente. A sociedade capitalista, mesmo com a evolução de suas instituições, mantém-se num estado de guerra. As instituições jurídicas não garantem a paz, o que é devido à própria natureza. No De Cive, ao mesmo tempo em que o Estado aparece como solução para a paz civil, está implícita uma insolubilidade contínua, devido à natureza egoísta do homem, a qual se prolonga para as própria relações internacionais.

2 comentários:

Anônimo disse...

Oi, Profº Drndo. Isaar Soares.

Bom Feriado! Boa Semana Entrante!

Legal o texto... Gosto muito da maneira que o senhor dedica seus textos, eu penso que esse caminho já abre a mente do leitor para uma boa compreensão dos escritos hobbessiano. Afinal, o senhor com sua mestria sabe fazer isso muito bem.

Att., Pedro Filho.

Daniel disse...

Olá,Prof°.Isaar,tudo bem?

Gostei do seu texto,espero te encontrar NO próximo semestre.

Um abraço e boas férias.

Daniel aparecido
filosofia - Unifai