sexta-feira, 13 de novembro de 2009

Considerações Sobre o Estado, a Religião e o cidadão cristão no pensamento de Rousseau

A Rosa Ferreira de Carvalho (1923-2009), cristã
e cidadã virtuosa, minha querida mãe.

Ao mesmo tempo em que dá preferência a uma religião Civil ou Nacional em oposição ao Catolicismo, Rousseau a critica porque ela será manipulada a serviço do Estado e, baseando-se “no erro e mentiras, engana os homens, e os faz crédulos e supersticiosos", levando o povo a ser "sedento de sangue e intolerante". (Do Contrato Social, Livro IV, Cap. VIII, “Da Religião Civil”, Os Pensadores, 2. ed., 1978, p. 141).

De acordo com Luiz Roberto Salinas Fortes:

“Rousseau reforça o contrato social através de sanções rigorosas que acreditava serem necessárias para a manutenção da estabilidade política do Estado por ele preconizado. Propõe a introdução de uma espécie de religião civil, ou profissão de fé cívica, a ser obedecida pelos cidadãos que depois de aceitarem-na, deveriam segui-la sob pena de morte”. (Jean- Jacques Rousseau. In: www.culturabrasil.pro.br/rousseau).

E acrescenta, numa avaliação das influências do pensamento político de Rousseau:

“O mais notável nessa república projetada era o disposto para banir estranhos à religião do estado e punir os dissidentes com a morte”. (Idem)

Apesar de reconhecer que “o exemplo de religião do homem não hierarquizada é o cristianismo do evangelho... centrada na moral e na adoração a Deus”, Rousseau “a considera ruim para o Estado”. (Idem). O Catolicismo é interpretado com sérias críticas, pois é uma religião hierarquizada e “não é incentivadora do patriotismo, mas compete com o Estado pela lealdade dos cidadãos”, e para ele esse tipo de religião destruiria a unidade social. (Idem). Pregando que o Reino de Deus não é deste mundo, o Catolicismo “tira do cidadão o amor pela vida na terra. Como conseqüência os cristãos estão muito desligados do mundo real para lutar contra a tirania doméstica. Além disso, os cristãos fazem maus soldados, novamente porque eles não são deste mundo. Eles não irão lutar com a paixão e patriotismo que um exército mortífero requer”. (Idem).

Para Rousseau, atendendo ao princípio da unidade política e social, “o Estado deveria usar a lei para banir qualquer... socialmente prejudicial” e as religiões deveriam ensinar, além dos princípios comuns ao Cristianismo, “a sacralidade do contrato social e da lei". (Idem).

Salinas observa ainda que “o fato de que o Estado possa banir a religião considerada anti-social deriva do princípio de supremacia da vontade geral (que existe antes da fundação do Estado) à vontade da maioria (que se manifesta depois de constituído o Estado), ou seja, se todos querem o bem estar social, e se uma maioria deseja uma religião que vai contra essa primeira vontade, essa maioria terá que ser reprimida pelo governo”. (Idem).

Sobre a afirmação de Rousseau de que “Jesus... fez que o Estado deixasse de ser uno e determinou as divisões intestinas que jamais deixaram de agitar os povos cristãos” e de que “os humildes cristãos mudaram de linguagem e logo se viu esse pretenso reino do outro mundo tornar-se neste, sob um chefe visível, o mais violento despotismo”, no entanto, elas nos parecem contraditórias, pois os verdadeiros cristãos procuravam cultuar a Deus sem uma pretensão totalitária. (Do Contrato Social, op. cit., p. 139).

Foram oportunistas quem se apropriaram da fé cristã e a utilizaram como um instrumento de alienação e domínio. E deve-se observar que, apesar de viverem sob perseguição, os cristãos eram bons cidadãos, e Rousseau certamente preferiu como exemplo de virtude política o Estado Romano, não por sua perseguição a inocentes e pelos espetáculos horrendos do Coliseu, nos quais até mulheres gestantes eram mortas por feras, mas sim por sua tese da unidade social, que até pode soar como uma unidade totalitária, conforme aparece no seu texto: “Tudo o que rompe a unidade social, nada vale”. (Idem, p. 141).

Porém, ele não valoriza o fato de esses cidadãos terem dado a própria vida por amor de sua consciência e terem colocado a sua liberdade de culto acima do próprio Imperador. E também não valoriza o fato de que os contribuíram para o desenvolvimento do princípio da subjetividade na cultura ocidental, considerando justa a desobediência ao Estado e o potencial ideológico dos simples fiéis era tão forte que Roma, amedrontada, decidiu persegui-los. Porém, apesar de perseguidos, eles podem ser comparados aos hebreus do Antigo Egito: “... Quanto mais os afligiam, tanto mais se multiplicavam e tanto mais se espalhavam...”. (Êxodo 1,12).
Os cristãos, de cuja obediência civil e virtude militar Rousseau duvida, poderiam ser vistos de forma mais positiva, pois eram capazes de fazer frente à Razão de Estado. Eles serviam primeiro à sua consciência. É digno de nota que Kant faz uma paráfrase do Evangelho para argumentar em prol da supremacia da Ética sobre a Razão de Estado, quando diz, na Paz Perpétua:

“A política diz: ´sede astutos como as serpentes´; a moral acrescenta (como condição limitante): ´e sem maldade como as pombas´”. (A paz perpétua e outros opúsculos, Lisboa: Edições 70, 1995, p. 130)

Essa paráfrase que Kant faz do Evangelho coloca a ética cristã acima do Estado. Nela a boa vontade está acima da astúcia e a moral é para ele uma condição limitante da Razão de Estado. Nele está presente um idealismo que pode ser visto de forma ainda mais clara na tese a seguir:

“As máximas políticas não devem originar-se do bem-estar ou da felicidade de cada Estado, esperadas como conseqüência delas, e por conseguinte não derivam da finalidade que cada um deles estabelece como objeto (do querer), enquanto supremo (mas empírico) princípio da sabedoria política, e sim provir do conceito puro do dever do direito (da obrigação moral, cujo princípio ´a priori´ é dado pela razão pura), quaisquer que venham a ser as conseqüências físicas”. (Idem, p. 148s)

Os cristãos sofreram no próprio corpo as conseqüências de sua autonomia moral e faltou a Rousseau, em seu texto inflamado, observar isso, a ele que, no Emílio, é um cultor da voz interior.

A doutrina do Estado de Rousseau, pois, é totalmente leiga, isto é, não adota princípios teológicos para justificar a soberania do Estado. Como Hobbes, para ele a esfera civil deve ser independente e superior à religiosa. Porém, acrescenta a tese de o cristão, por sua veneração prioritária ao Reino de Deus e às doutrinas da Igreja, ser um mau cidadão, bem como a de que as religiões intolerantes não deveriam ser toleradas.

O caráter laico e religioso de seu Estado se tornaria ainda mais evidente quando os revolucionários franceses, mesmo com seu anticlericalismo, construíram um Panteão (palavra na qual está presente o termo “theós”) ao qual levaram seus restos mortais, assim, um deísta foi venerado num período de renovação do culto do Estado, em pleno séc. XVIII, o “século das luzes”.

Isso demonstra que, conforme ele mesmo admite, se a religião esteve na base das primeiras formas de organização social, agora, mesmo com o esvaziamento dos argumentos teológicos, se demonstra que nenhuma sociedade sobrevive sem a religião, mesmo que ela seja laica, e que um novo sacerdócio poderia estar a caminho, o do Estado total.

Mais tarde, Comte iria cair na mesma contradição, pois negava o Catolicismo, porém o esvaziou de suas datas sagradas e da veneração de santos, colocando em seu lugar um novo calendário, novos heróis e novos rituais, como os republicanos franceses, que organizaram um novo calendário e o citado panteão cívico.
Dessa forma, a crítica de Rousseau a Hobbes, presente na afirmação: “engano-me ao aludir a uma república cristã, pois cada um desses dois termos exclui o outro” veio a ser negada pela prática, pois se não admitia uma república cristã, presumia uma república de caráter inquisitorial, pois ele próprio escreveu adiante: “Quem quer que diga: Fora da Igreja não há salvação – deve ser excluído do Estado, a menos que o Estado seja a Igreja, e o príncipe, o pontífice”. (Do Contrato Social, p. 143, 145).

Porém verifica-se que, tendo negado a fé cristã em relação à virtude cívica, Rousseau não negou, necessariamente, a Religião, pois valorizou os sentimentos religiosos, transferindo-os para o Estado, defendendo uma religião cívica. Em relação a essa última expressão, na verdade, se Rousseau considera a definição “república cristã” como contraditória, devemos reconhecer que ele também usa termos inconciliáveis, pois mesmo para Hobbes o Estado é laico por natureza, mas o pensador inglês teria a virtude a de não cultuar o Estado, mas sim colocar a obediência a Deus em primeiro lugar, citando Pedro, que disse: “Antes importa obedecer a Deus do que aos homens” (Cf. De Cive e Atos do Apóstolos).

E apesar de suas críticas ácidas ao Cristianismo nos moldes católicos, Salinas observa, em relação a Rousseau, que “nas Lettres ecrites de la Montagne... com referência à constituição de Genebra ele advogava a liberdade de religião contra a Igreja e a polícia” e que na Profession de foi du vicaire savoyard “... mostra uma natural e verdadeira susceptibilidade para a religião e para Deus, cuja onipotência e grandeza são, para ele, publicamente renovadas cada dia”. (Op. cit.).

Porém, o modelo de Estado para Rousseau, em relação à religião, era o Império Romano, que além de excluir a maioria da população dos direitos de cidadania, tanto fez culto de si mesmo quanto perseguiu duramente os cristãos, que cultuavam a Deus.

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