segunda-feira, 26 de outubro de 2009

O reino sacerdotal e o poder eclesiástico de acordo com Hobbes

Em resposta a duas perguntas de Guilherme Rocha Botelho, acadêmico de Direito da Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro.


A - O reino sacerdotal em Israel

1 – Em Israel, que era um reino sacerdotal, Moisés tinha tanto a autoridade civil quanto a religiosa e como lugar-tenente de Deus podia delegar o poder ao sumo sacerdote e aos demais sacerdotes, conforme o texto a seguir:

“Disse o SENHOR a Moisés: Toma Josué, filho de Num, homem em quem há o Espírito, e impõe-lhe as mãos; apresenta-o perante Eleazar, o sacerdote, e perante toda a congregação; e dá-lhe, à vista deles, as tuas ordens. Põe sobre ele da tua autoridade, para que lhe obedeça toda a congregação dos filhos de Israel”. (Números 27: 18 a 20)

Aqui, a autoridade de Moisés é sacerdotal, mas claramente se vê que, diante da congregação dos filhos de Israel, ele era o líder político que legitimava o poder do sacerdote a respeito das questões religiosas (“põe sobre ele da tua autoridade”).

2 – O primeiro rei de Israel, Saul, recebeu uma unção do profeta Samuel, como escolhido de Deus para reinar, e foi por desobedecer à palavra de Deus, enviada através de Samuel, que tinha a autoridade sacerdotal, que Saul perdeu o reino, bem como não teve dinastia real, conforme os textos abaixo, de I Samuel:

“Esperou Saul sete dias, segundo o prazo determinado por Samuel; não vindo, porém, Samuel a Gilgal, o povo se foi espalhando dali. Então, disse Saul: Trazei-me aqui o holocausto e ofertas pacíficas. E ofereceu o holocausto. Mal acabara ele de oferecer o holocausto, eis que chega Samuel; Saul lhe saiu ao encontro, para saudá-lo. Samuel perguntou: Que fizeste? Respondeu Saul: Vendo que o povo se ia espalhando daqui, e que tu não vinhas nos dias aprazados, e que os filisteus já se tinham ajuntado em Micmás, eu disse comigo: Agora, descerão os filisteus contra mim a Gilgal, e ainda não obtive a benevolência do SENHOR; e, forçado pelas circunstâncias, ofereci holocaustos. Então, disse Samuel a Saul: Procedeste nesciamente em não guardar o mandamento que o SENHOR, teu Deus, te ordenou; pois teria, agora, o SENHOR confirmado o teu reino sobre Israel para sempre. Já agora não subsistirá o teu reino. O SENHOR buscou para si um homem que lhe agrada e já lhe ordenou que seja príncipe sobre o seu povo, porquanto não guardaste o que o SENHOR te ordenou” (I Sm13: 8 a 1 4)

“Então, disse Samuel a Saul: Espera, e te declararei o que o SENHOR me disse esta noite. Respondeu-lhe Saul: Fala. Prosseguiu Samuel: Porventura, sendo tu pequeno aos teus olhos, não foste por cabeça das tribos de Israel, e não te ungiu o SENHOR rei sobre ele? Enviou-te o SENHOR a este caminho e disse: Vai, e destrói totalmente estes pecadores, os amalequitas, e peleja contra eles, até exterminá-los. Por que, pois, não atentaste à voz do SENHOR, mas te lançaste ao despojo e fizeste o que era mau aos olhos do SENHOR? Então, disse Saul a Samuel: Pelo contrário, dei ouvidos à voz do SENHOR e segui o caminho pelo qual o SENHOR me enviou; e trouxe a Agague, rei de Amaleque, e os amalequitas, os destruí totalmente; mas o povo tomou do despojo ovelhas e bois, o melhor do designado à destruição para oferecer ao SENHOR, teu Deus, em Gilgal. Porém Samuel disse: Tem, porventura, o SENHOR tanto prazer em holocaustos e sacrifícios quanto em que se obedeça à sua palavra? Eis que o obedecer é melhor do que o sacrificar, e o atender, melhor do que a gordura de carneiros. Porque a rebelião é como o pecado de feitiçaria, e a obstinação é como a idolatria e culto a ídolos do lar. Visto que rejeitaste a palavra do SENHOR, ele também te rejeitou a ti, para que não sejas rei. (I Sm 15: 16 a 23)

3 - De acordo com a teologia da aliança, os reis de Israel deveriam servir primeiro a Deus, como Deus único, conforme o primeiro dos 10 mandamentos, mas a maioria deles, bem como da parte do povo, quebrou a aliança com Deus, sendo castigados. Porém, da parte de Deus, essa aliança nunca foi quebrada, e seus profetas sempre falaram de arrependimento, tanto aos reis quanto ao povo, e de restauração vinda de Deus. Assim foi para quem esteve na Babilônia etc.

4 – O reino sacerdotal, de acordo com Hobbes, durou de Moisés a Saul, quando começou a Monarquia em Israel, e durou até o cativeiro na Babilônia. Depois, quando Ciro, rei da Pérsia, autorizou os judeus a voltarem e a restaurar o culto a Deus, sob sua tutela, começa novamente um reino sacerdotal, sob Esdras e Neemias. Aquela unidade política, porém Israel não mais teve, pois depois foi dominado por Alexandre e posteriormente por Roma.

B - A Origem e a sucessão do poder eclesiástico

A hierarquia da Igreja, nos tempos apostólicos, era feita de acordo com o carisma e as virtudes dos membros da comunidade:

1 – Jesus ensinou por três anos, e dentre os que estavam com ele escolheu doze para que fossem enviados para pregar às ovelhas perdidas da casa de Israel, e Lucas afirma o seguinte:

“Naqueles dias, retirou-se para o monte, a fim de orar, e passou a noite orando a Deus. E, quando amanheceu, chamou a si os seus discípulos e escolheu doze dentre eles, aos quais deu também o nome de apóstolos: Simão, a quem acrescentou o nome de Pedro, e André, seu irmão; Tiago e João; Filipe e Bartolomeu; Mateus e Tomé; Tiago, filho de Alfeu, e Simão, chamado Zelote; Judas, filho de Tiago, e Judas Iscariotes, que se tornou traidor. (Lucas 6:12-16)

2 - Quando Judas foi sucedido entre os 12, o texto bíblico fala das seguintes exigências, de acordo com Atos dos Apóstolos: “É necessário, pois, que, dos homens que nos acompanharam todo o tempo que o Senhor Jesus andou entre nós, começando no batismo de João, até ao dia em que dentre nós foi levado às alturas, um destes se torne testemunha conosco da sua ressurreição”. (Atos 1: 21-22).

3 – Os “diáconos”, como foram chamados pela tradição os escolhidos para atenderem aos necessitados, destes, especialmente as viúvas de origem grega, deveriam atender às seguintes exigências:

“Ora, naqueles dias, multiplicando-se o número dos discípulos, houve murmuração dos helenistas contra os hebreus, porque as viúvas deles estavam sendo esquecidas na distribuição diária. Então, os doze convocaram a comunidade dos discípulos e disseram: Não é razoável que nós abandonemos a palavra de Deus para servir às mesas. Mas, irmãos, escolhei dentre vós sete homens de boa reputação, cheios do Espírito e de sabedoria, aos quais encarregaremos deste serviço; e, quanto a nós, nos consagraremos à oração e ao ministério da palavra. O parecer agradou a toda a comunidade; e elegeram Estêvão, homem cheio de fé e do Espírito Santo, Filipe, Prócoro, Nicanor, Timão, Pármenas e Nicolau, prosélito de Antioquia. Apresentaram-nos perante os apóstolos, e estes, orando, lhes impuseram as mãos”. (Atos 6:1-6).

Observe que havia exigências para essa função (veja os destaques em negrito), e que a escolha foi feita pela comunidade – eis aí um sinal de democracia, comum entre os próprios judeus nalgumas ocasiões, como no caso da legitimação de Moisés como líder no Egito, pois ali ele foi reconhecido pelos anciãos de Israel.

Observe também que a autoridade sobre eles é local, não tem um caráter propriamente civil, faz parte de uma comunidade dentro da grande commonwealth que é o Estado, e é delegada de forma carismática, pela imposição das mãos dos apóstolos, os quais, como diz Hobbes, receberam o poder do próprio Cristo.

Por ser assim é que Hobbes afirma que os profetas, Cristo, os apóstolos e o Papa não tinham poder sobre o soberano civil, mas eram seus conselheiros, podendo ou não ser obedecidos por ele e ainda que um soberano professasse a fé em Cristo, suas decisões morais na área da ação política não faziam parte do credo, mas da natureza das coisas na Política.

4 – Quanto aos presbíteros, que faziam parte do ensino e da liderança da Igreja apostólica, o NT fala que eles eram eleitos pela comunidade e resolviam algumas questões em conselhos:

”E, promovendo-lhes, em cada igreja, a eleição de presbíteros...”. (Atos 14:23).
“... Então, se reuniram os apóstolos e os presbíteros para examinar a questão”.
“... Então, pareceu bem aos apóstolos e aos presbíteros...”. (Atos 15.6 e 22).

5 - Paulo deixou as seguintes exigências para a escolha de presbíteros e diáconos nas novas comunidades que eram fundadas:

5.1 - Presbíteros:

“É necessário, portanto, que o bispo seja irrepreensível, esposo de uma só mulher, temperante, sóbrio, modesto, hospitaleiro, apto para ensinar; não dado ao vinho, não violento, porém cordato, inimigo de contendas, não avarento; e que governe bem a própria casa, criando os filhos sob disciplina, com todo o respeito (pois, se alguém não sabe governar a própria casa, como cuidará da igreja de Deus?); não seja neófito, para não suceder que se ensoberbeça e incorra na condenação do diabo. Pelo contrário, é necessário que ele tenha bom testemunho dos de fora...”.

5.2 – Diáconos:

“Semelhantemente, quanto a diáconos, é necessário que sejam respeitáveis, de uma só palavra, não inclinados a muito vinho, não cobiçosos de sórdida ganância,
conservando o mistério da fé com a consciência limpa. Também sejam estes primeiramente experimentados; e, se se mostrarem irrepreensíveis, exerçam o diaconato. Da mesma sorte, quanto a mulheres, é necessário que sejam elas respeitáveis, não maldizentes, temperantes e fiéis em tudo. O diácono seja marido de uma só mulher e governe bem seus filhos e a própria casa”. (I Timóteo 3.2 a 11) .

Observe que, mesmo sendo uma instituição marcada pelo carisma, como dirá a Sociologia, é uma instituição que tem princípios morais que a distinguem da moral romana, por exemplo, em relação à família... etc.

6 – O próprio Pedro, que era contado entre os 12, e de fato tinha uma liderança entre eles, não seria a favor do domínio exercido pelo Papado sobre as consciências e sobre a propriedade das pessoas, bem como sobre a política.

Compare essa afirmação do apóstolo a seguir com o que citarei logo depois, de Hobbes:

Pedro:
“Rogo, pois, aos presbíteros que há entre vós, eu, presbítero como eles, e testemunha dos sofrimentos de Cristo, e ainda co-participante da glória que há de ser revelada: pastoreai o rebanho de Deus que há entre vós, não por constrangimento, mas espontaneamente, como Deus quer; nem por sórdida ganância, mas de boa vontade; nem como dominadores dos que vos foram confiados, antes, tornando-vos modelos do rebanho. (I Epístola de Pedro 5:1 a 3)

Hobbes:
“... Haverá alguém que não seja capaz de ver para benefício de quem contribuía acreditar-se que um rei só recebe de Cristo sua autoridade no caso de ser coroado por um bispo? Que um rei, se for sacerdote, não pode casar-se? Que se um príncipe nasceu de um casamento legítimo ou não é assunto que deve ser decidido pela autoridade de Roma? Que os súditos podem ser libertos de seu dever de sujeição, se a corte de Roma tiver condenado o rei como herege?... De modo que posso atribuir todas as mudanças de religião no mundo a uma e à mesma causa, isto é, sacerdotes desprezíveis, e isto não apenas entre os católicos, mas até naquela Igreja que mais presumiu de Reforma”.
(Final do Cap. XII do Leviathan, Os Pensadores).


C - O poder pertence a Cristo, Senhor da Igreja

Como ele mesmo disse, de acordo com Mateus 28: 18: “Toda a autoridade me foi dada no céu e na terra”.
O mesmo é afirmado em João 19: 10-11:
“Então, Pilatos o advertiu: Não me respondes? Não sabes que tenho autoridade para te soltar e autoridade para te crucificar? Respondeu Jesus: Nenhuma autoridade terias sobre mim, se de cima não te fosse dada; por isso, quem me entregou a ti maior pecado tem”.

E de acordo com o Evangelho, Cristo se entregou a Pilatos por nossos pecados, e ressuscitou para nossa justificação, conforme ensina Paulo, que não pregou um Evangelho diferente dos demais apóstolos. E o próprio Cristo afirmou, diante de Pilatos, de acordo com João 18.36: “O meu reino não é deste mundo. Se o meu reino fosse deste mundo, os meus ministros se empenhariam por mim, para que não fosse eu entregue aos judeus; mas agora o meu reino não é daqui”.

Portanto, mesmo os reis podem fazer parte do Reino de Deus e a ele se submeterem, mas para Hobbes, a soberania civil não pode submeter-se à Igreja, se não, pecaria contra o princípio da não contradição, pois “soberania e caráter absoluto do governo são unum et idem”, conforme afirma Bobbio em seu livro A Teoria das Formas de Governo.

E não pensemos que esse Estado é tão absoluto assim, pois ele só deverá ser obedecido enquanto preservar o maior bem da comunidade, a paz civil.

Enfim, Hobbes considera que a Igreja só será reconhecida como instituição civil pelo Estado, no capítulo do Leviathan em que explica os significados da palavra “Igreja”. Porém, afirma noutra parte que ninguém, por obedecer ao poder civil, deverá perder a vida eterna, que é um bem maior, indubitavelmente, e foi nesse sentido, pois, que Pedro disse: “Antes, importa obedecer a Deus do que aos homens”. (Atos 5:29)

D - Sendo assim, onde está o reino de Deus? Quem dele participa?

Ora, eis, de acordo com Hobbes, quem dele participa:

“No reino de Deus, não consideramos como seus súditos os corpos inanimados ou irracionais, embora estejam subordinados ao poder divino; e não os contamos, porque eles não entendem o que sejam os mandamentos e ameaças de Deus; nem tampouco os ateus, porque não acreditam que Deus exista; nem mesmo os que, acreditando na existência de Deus, não crêem, contudo, que ele governe estas coisas inferiores; pois estes últimos, embora sejam governados pelo poder de Deus, não reconhecem, porém nenhum de seus mandamentos, nem temem suas ameaças. Considera-se pertencente ao reino de Deus, portanto, apenas esses que confessam ser ele o regente de todas as coisas, e acreditam que ele tenha dado mandamentos aos homens, e fixado castigos para quem os descumprir. Os demais não devemos chamar súditos, mas inimigos, de Deus”. (Do Cidadão, Parte III: Religião)

Hobbes, indiretamente, consciente ou inconscientemente, está afirmando o mesmo que Cristo:
“Interrogado pelos fariseus sobre quando viria o reino de Deus, Jesus lhes respondeu: Não vem o reino de Deus com visível aparência. Nem dirão: Ei-lo aqui! Ou: Lá está! Porque o reino de Deus está dentro de vós”. (Lucas 17: 20-21)


Conclusão

A questão da obediência civil e da obediência ao reino de Deus inquietava também a outros grandes homens do século XVII.
Hobbes deu uma solução baseada na Filosofia Civil e nas Escrituras, reconhecendo não só a necessidade da obediência civil, mas também que o Leviatã é um deus mortal, abaixo do Deus imortal.
Se fôssemos para a área da Música, veríamos o Reino de Deus ser defendido com a mais pura arte e devoção na obra do grande compositor Georg Friedrich Häendel, que possivelmente estava dialogando com o contexto social, político e religioso da Inglaterra ao compor O Messias, cujo coro mais famoso, Halleluiah, afirma: “O reino deste mundo se tornou de nosso Senhor e do seu Cristo e Ele reinará para sempre e sempre”, onde o gênio insiste em repetir: “Rei dos Reis e grande Senhor”.

Proclamar, gritar, com devoção e arte: “King of Kings and Lord of the Lords”, naquele contexto, não seria simplesmente a repetição do coro de um grande Oratório, mas poderia ser, antes de tudo, uma mensagem profética, confirmando a doutrina apostólica de que “antes importa obedecer a Deus do que aos homens” (Atos 5:29).
Como disse Isaías: “The voice of him that crieth in the wilderness, Prepare ye the way of the LORD, make straight in the desert a highway for our God" (Is 40:3 - King James version, a mesma que Hobbes leu)

Ao meu ver, todo o Messias é inspirado nessa "voz de um que grita no deserto: Preparai o caminho do Senhor, fazei no ermo vereda a nosso Deus".

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