quarta-feira, 21 de outubro de 2009

As Escrituras na argumentação de Hobbes sobre a Soberania Civil

Comunicação apresentada no Colóquio Internacional Hobbes:
Natureza, História e Política” em 06-10-2009 - Departamento de Filosofia da USP
Autor: Isaar Soares de Carvalho - Doutorando em Filosofia – UNICAMP
Orientador: Prof. Dr. João C. K. Quartim de Moraes
À memória de meu pai, Presbítero Emérito da IPI do Brasil, Epaminondas Soares de Carvalho, que foi alfabetizado através das Escrituras.

OBJETO DE ESTUDO
Nosso objetivo é examinar forma como Thomas Hobbes interpreta as Escrituras para corroborar sua tese de que o poder civil está acima de qualquer instituição social ou política, principalmente, em seu contexto, sobre a instituição eclesiástica.

OS LIMITES DA OBEDIÊNCIA CIVIL E RELIGIOSA
Hobbes afirma:
“Os súditos devem aos soberanos simples obediência em todas as coisas, de onde se segue que sua obediência não é incompatível com as leis de Deus”. (Leviathan, XXX).
Porém, Hobbes parte da premissa de que “o conhecimento de toda lei depende do conhecimento do soberano poder”. (Leviathan, XXXI).

Conhecendo as Leis divinas e as civis
O cidadão deve, pois, conhecer as leis de Deus (este detém o soberano poder) para distinguir se o que a lei civil ordena é contrário a elas ou não. Com isso evitará o dilema de pecar contra o poder civil ou contra a religião:

Eis o dilema do cidadão do Séc. XVII:
1 – Se obedecesse excessivamente ao poder civil, ofenderia a Divina Majestade.
2 – Mas “com receio de ofender a Deus”, poderia transgredir os “mandamentos da república”.

PRINCIPAIS DEMANDAS ATENDIDAS PELA OBRA DE CIVE
Na obra Do Cidadão há uma dialética entre ser cidadão do Reino de Deus e da Pólis terrestre, demonstrada no subtítulo do livro, onde Hobbes afirma que fará uma dissertação a respeito do homem como membro de uma sociedade primeiro secular, depois sacra, que falará dos elementos da filosofia civil de acordo com as leis naturais e divinas, e que demonstrará qual é a origem da justiça e em que consiste a essência da religião cristã, e também da natureza, limites e qualificações do comando e da sujeição.

A IMPORTÂNCIA DAS ESCRITURAS NA DEDICATÓRIA DO LEVIATHAN
Na Dedicatória do Leviathan encontra-se uma afirmação que demonstra que, além de adotar uma concepção do Estado que se opõe ao magistério eclesiástico, Hobbes se vale das Escrituras adotando uma nova hermenêutica, para defender a superioridade do poder civil sobre todas as esferas da vida social, principalmente a religião. A afirmação à qual nos referimos é a seguinte:

“O que talvez possa ser tomado como grande ofensa são certos textos das Sagradas Escrituras, por mim usados com uma finalidade diferente da que geralmente por outros é visada. Mas fi-lo com a devida submissão. E também, dado ao meu assunto, porque tal era necessário. Pois eles [os textos] são as fortificações avançadas do inimigo, de onde este impugna o poder civil”. (Leviathan, Dedicatória).

A idéia central dessa afirmação aparecerá ao longo do Livro, e o que é indicado na Dedicatória será demonstrado de forma recorrente no texto dirigido ao “leitor sem medo”, como demonstra Renato Janine Ribeiro, texto que se encerrará com a corajosa afirmação, dirigida tanto à Igreja quanto ao poder civil, de que “a verdade que não se opõe aos interesses ou aos prazeres de ninguém é bem recebida por todos”. (Leviathan, Revisão e Conclusão)

HOBBES E A CRÍTICA BÍBLICA
Em relação à Bíblia, Hobbes antecipa teses hoje conhecidas sobre a História da formação de seus textos, porém pouco se lhe credita sobre sua contribuição à Crítica Bíblica em nosso tempo. Em relação às datas de redação ele enfatiza em primeiro lugar a afirmação de Gn 12:6: “Atravessou Abrão a terra até Siquém, até o carvalho de Moré. Nesse tempo os cananeus habitavam essa terra”.

Outras citações que indicam a posterioridade dos textos:
Afirmações como essa, abundantes no Antigo Testamento, indicam que muitos textos foram escritos longo tempo após a ocorrência dos fatos narrados. Outros textos usam expressões indicativas disso, tais como:

A expressão “até ao dia de hoje” aparece em vários textos do Pentateuco, bem como em outros livros.
Gn 35:20: “Sobre a sepultura de Raquel levantou Jacó uma coluna que existe até ao dia de hoje” (Gn 35:20). O que confirma que o texto foi escrito muito tempo depois do fato narrado.

Jz 1:21: “Os jebuseus habitam com os filhos de Benjamin em Jerusalém até ao dia de hoje”.
Jz 1,26: “E edificou uma cidade, e lhe chamou Luz; este é o seu nome até ao dia de hoje”.
Jz 6:24: “Ainda até ao dia de hoje está o altar em Ofra”.
Jz 10:4: “E tinham trinta cidades, a que chamavam Havote-Jair, até ao dia de hoje, as quais estão na terra de Gileade”.
Jz 15:19: “ Daí chamar-se aquele lugar Em-Hacoré até ao dia de hoje”.

O Livro de Juízes seria um texto bem tardio
É impressionante a observação de Hobbes sobre Juízes 18:30, que diz: “Os filhos de Dã levantaram para si aquela imagem de escultura; e Jônatas, filho de Gerson, o filho de Manassés, ele e seus filhos foram sacerdotes da tribo dos danitas, até ao dia do cativeiro do povo”. Isso indica, de acordo com ele, que o texto é posterior ao cativeiro babilônico.

MOISÉS E A AUTORIA DO PENTATEUCO
Sobre o Pentateuco Hobbes afirma que Moisés “escreveu tudo o que aí se diz que escreveu”, isto é, as afirmações do texto que dizem claramente que eleu, são por Hobbes consideradas fidedignas. Eis os textos em que essas expressões aparecem:
Êx 17:14: “Então disse o Senhor a Moisés: Escreve isto para memória num livro, e repete-o a Josué...”.
Êx 24:3s: “Veio, pois, Moisés, e referiu ao povo todas as palavras do Senhor e todos os seus estatutos... Moisés escreveu todas as palavras do Senhor...”
Dt 31:9: “Esta lei escreveu-a Moisés e a deu aos sacerdotes...”. Trecho que confirma a tese de Hobbes sobre o reino sacerdotal de Israel.
Dt 31:22: “Moisés naquele mesmo dia escreveu este cântico”.
Êx 34:28: “Escreveu nas tábuas as palavras da aliança, as dez palavras”. A narrativa inicialmente afirma que foi Deus quem escreveu as segundas tábuas, mas conclui dizendo que foi Moisés. Porém Dt 10:4 afirma: “... Escreveu o Senhor nas tábuas...”. Isso indica a posterioridade, as tradições orais, a autoria múltipla do texto, bem como seu caráter sagrado.
Nm 33:2: “Escreveu Moisés as suas saídas, caminhada após caminhada...”
Dt 31:24: “Tendo Moisés acabado de escrever todas as palavras desta lei num livro...”

ALGUMAS FONTES USADAS PELOS AUTORES DO AT
Hobbes observa várias fontes do AT, tais como:
O Livro das Guerras do Senhor (Nm 21:14)
O Livro dos Justos (Js 10:13; II Sm 1:18)
A afirmação: "Josué escreveu estas palavras no livro da lei de Deus" (Js 24:26) amplia o conceito de Livro da Lei, não mais restrito ao Pentateuco, ou seria Josué um co-autor deste?
Os escritores utilizaram outras fontes, citadas em Reis e Crônicas:
O Livro da História de Salomão (I Rs 11:41) Livro da História dos Reis de Israel (I Rs 14:19)
O Livro da História dos Reis de Judá (I Rs 14: 29)
Pelo que aqui verificamos sobre o criticismo literário de Hobbes, portanto, o Tratado Teológico-Político de Espinosa não é, como pretendem alguns, a primeira obra a examinar a história da formação dos textos bíblicos. Hobbes publica o Leviathan em 1651, e Espinosa publicará o Tratado 19 anos depois, em 1670, o que não se deve esquecer.

EXEMPLOS DE REFERÊNCIAS DE HOBBES À BÍBLIA COMO PARTE DE SUA ARGUMENTAÇÃO
A primeira vez que Hobbes se refere à Bíblia no De Cive é, possivelmente, quando usa a expressão:“... Através da justiça e da caridade, irmãs gêmeas da paz...”, referindo-se ao Salmo 85,10, que diz: “a justiça e a paz se beijaram”, trecho citado diretamente depois, quando ele examina as bases bíblicas da lei fundamental de natureza que ordena que se busque a paz. (De Cive, Parte I, Cap. IV, p. 87).

A abordagem hobbesiana dos 10 Mandamentos
A importância do recurso às Escrituras aparece de forma ainda mais explícita quando ele compara os Dez Mandamentos ou As Dez Falas (Assêret Hadibrot) aos deveres civis e aos direitos do soberano representante, no Cap. XXX do Leviathan:

60 % dos 10 mandamentos dizem respeito à Lei civil:

É relevante a observação de Hobbes de que os 4 primeiros mandamentos dizem respeito aos deveres para com Deus, enquanto os outros 6 referem-se aos deveres civis.
Deveres para com Deus
1º) Não ter outros deuses diante dele.
2º.) Não fazer para imagens de escultura, não adorá-las, nem lhes prestar culto.
3º.) Não tomar o nome de Deus em vão.
4º.) Santificar o dia do Sábado.

Deveres Civis
5º.) Honrar ao pai e à mãe
6º.) Não Matar
7º.) Não Adulterar
8º.) Não furtar. (6 a 8: Preservação da propriedade).
9º.) Não dizer falso testemunho.
10) Não cobiçar (“O só cobiçar já é injusto)”.

A Súmula dos 10 Mandamentos
A súmula dos 10 mandamentos encontra-se no amor a Deus sobre todas as coisas e no amor ao próximo como a si mesmo. A segunda tábua “se reduz a esse mandamento de caridade mútua, Amarás a teu próximo como a ti mesmo, assim como a súmula da primeira tábua se reduz ao amor a Deus”. (Leviathan, XXX)

As Leis Civis e a conservação da Vida
Em relação aos deveres civis nos 10 Mandamentos, Hobbes afirma que “entre as coisas tidas em propriedade, aquelas que são mais caras ao homem são sua própria vida e membros, e no grau seguinte (na maior parte dos homens) aquelas que se referem à afeição conjugal, e depois delas as riquezas e os meios de vida”. (Leviathan, XXX)

Outras sínteses da Lei de Deus e da Lei Civil na Bíblia
1 -“De tudo o que se tem ouvido, a suma é: teme a Deus, e guarda os seus mandamentos; porque isto é o dever de todo homem” (Ec 12,13).
2 - “Dai, pois, a César o que é de Cesar, e a Deus o que é de Deus” (Mt 22:21).
3 – “Tratai todos com honra, amai os irmãos, temei a Deus, honrai o rei”. (I Pd 2.17)

RELAÇÕES ENTRE POLÍTICA E RELIGIÃO
Numa imagem publicada na edição de 1651 do De Cive vê-se a própria seqüencia da argumentação de Hobbes: A Liberdade é conseqüência do Domínio e a Religião aparece encimada e parece não interferir na esfera política.
Um profeta, apóstolo, um sacerdote ou o próprio Papa serão apenas conselheiros do soberano, não tendo sobre ele autoridade, pois a soberania é, por natureza, absoluta. Mesmo que o soberano civil adote uma confissão de fé, isso não interferirá sobre a natureza das coisas na Política.

HAVERIA ALGUMA FORMA DE GOVERNO SUPERIOR PARA HOBBES?
“A prosperidade de um povo governado por uma assembléia aristocrática ou democrática não vem nem da aristocracia nem da democracia, mas da obediência e concórdia dos súditos; assim como também o povo não floresce numa monarquia porque um homem tem o direito de governá-lo, mas porque ele lhe obedece. Retirem seja de que Estado for a obediência (e conseqüentemente a concórdia do povo) e ele não só não florescerá, como a curto prazo será dissolvido”. (Leviathan, XXX)

“NÃO DE PRINCIPE, MAS DE CIVE
Contra as interpretações de Hobbes como absolutista, o Prof. Renato J. Ribeiro afirma:
“... Já se comentou, muito, que Hobbes escreve De Cive e não De Principe: interessa-se mais pela obediência que pelo exercício do poder. Ocupa-se mais do cidadão que do governante”. (“Thomas Hobbes o la paz contra el clero”, p. 23).
E conclui:
“... Ao afirmar que de um poder irresistível decorre direito absoluto, ele completa que tal poder é somente de Deus; homem nenhum é tão forte que outros não o possam vencer, por coligação, astúcia, ou opondo a seu sono a vigília; só Deus nunca dorme, só Ele tem direito absoluto. (Que lógica resta, então, aos que chamam Hobbes de ateu e defensor do direito absoluto dos reis?)”. [Idem, p. 23].

SERIA HOBBES UM DESCRENTE?

Hobbes e a Redenção:
“Nossa redenção foi levada a cabo em sua primeira vinda, pelo sacrifício mediante o qual se ofereceu na cruz por nossos pecados”.
(Leviathan, Cap. XLI).
A - “Há apenas um Deus”. (Do Cidadão, p. 309).
B - Ele refuta o Panteísmo, reconhecendo Deus como causa do mundo, como se verifica nessa afirmação: “Dizer que o mundo é Deus é dizer que não há causa dele, isto é, que não existe Deus”. (Leviathan, Cap. XXXI, p. 215)
C – Na Epistola Dedicatória de Do Cidadão ele diz: “Que o Deus do céu coroe Vossa Senhoria com longa vida nesta estação mortal, e, na Jerusalém celestial, com uma coroa de glória”. - Seria mera formalidade?
D – A obediência a Deus está em primeiro lugar:
“...Como devemos obedecer antes a Deus que aos homens...”. (Do Cidadão, III, XVIII, p. 359-60).
Ver Atos 5: 29: “...Antes importa obedecer a Deus do que aos homens”.
E – O que é necessário para a salvação:
“O propósito dos evangelistas prova que para a salvação é necessário apenas crer num só artigo – que Jesus é o Cristo” (Idem, p. 367).
Ver I Pd 1:9: “...Obtendo o fim da vossa fé, a salvação das vossas almas”.
F - Renato J. Ribeiro observa, na Introdução de Do Cidadão, que muitas discussões e divisões, e mesmo guerras, são feitas em torno de disputas teológicas que não dizem respeito ao essencial: a salvação.
G – Afirmava Hobbes que seu pensamento não poderia ser declarado herético, pois a doutrina do Leviathan não era contrária ao Credo Niceno, e não havia tribunal religioso que pudesse considerá-lo como tal: a Heresia é uma questão do soberano civil, não da Igreja.

Aspectos céticos de Hobbes em relação a alguns pontos da Religião

A – Sobre a ocorrência de Milagres: “... Se acontecer que, numa reunião, se passe o tempo contando histórias..., se um conta alguma maravilha, os demais narrarão milagres, se os tiverem, se não tiverem os inventarão”.(Do Cidadão: Parte I, Cap. I, p. 31, par. 2). No Leviathan ele afirma que não ocorrem mais milagres, os quais teriam durado até à época da Igreja Primitiva.
B – Hobbes declara ser impossível fazer pactos com Deus. Os que afirmavam fazê-los poderiam incitar à desobediência civil. Tanto em Do Cidadão quanto no Leviathan ele é cético quanto aos votos feitos a Deus. Apenas são válidos os pactos e votos legitimados pelo poder civil. (Do Cidadão: Parte I, Cap. II, p. 52-53).
C – Não crê em quem alega falar diretamente a partir de Deus, mas reduz Sua Palavra às Escrituras (Leviathan, XXXVI). Afirma que “Deus não nos fala mais através de Cristo e de seus profetas em voz aberta, mas pelas Sagradas Escrituras, as quais diferentes homens compreendem de modo diferente” (Do Cidadão, p. 360).

O Deus que realmente falou?
“É certo que Deus é o soberano de todos os soberanos, e portanto quando fala a qualquer súdito deve ser obedecido, seja o que for que qualquer potentado terreno ordene em sentido contrário. Mas o problema não é o da obediência a Deus, e sim o de quando e o que Deus disse...” (Leviathan, XXXIII)

Quem de fato era profeta de Deus?
Que houve muito mais falsos do que verdadeiros profetas verifica-se no fato de Ahab (1 Reis 12) ter consultado quatrocentos profetas, e todos eles serem falsos e impostores, com a única exceção de Miquéias”.
No Antigo Testamento os profetas deviam falar de acordo com Moisés e “predizer o que Deus ia fazer acontecer... E no Novo Testamento há apenas um único sinal, que é a pregação da doutrina que Jesus é o Cristo. Quem quer que negasse esse artigo era um falso profeta.”

Da busca das causas naturais a Deus
“A curiosidade, ou amor pelo conhecimento das causas, afasta o homem da contemplação do efeito para a busca da causa, e depois também da causa dessa causa, até que forçosamente deve chegar a esta idéia: que há uma causa da qual não há causa anterior, porque é eterna; que é aquilo a que os homens chamam Deus...

A natureza de Deus é abscôndita
De modo que é impossível proceder a qualquer investigação profunda das causas naturais, sem com isso nos inclinarmos para acreditar que existe um Deus eterno, embora não possamos ter em nosso espírito uma idéia dele que corresponda a sua natureza”. (Leviathan, XII)
“O reconhecimento de um único Deus eterno, infinito e onipotente pode ser derivado do desejo que os homens sentem de conhecer as causas dos corpos naturais, e suas diversas virtudes e operações, mais facilmente que do medo do que possa vir a acontecer-lhes nos tempos vindouros. Pois aquele que de qualquer efeito que vê ocorrer infira a causa próxima e imediata desse efeito...
..., e depois a causa dessa causa, e mergulhe profundamente na investigação das causas, deverá finalmente concluir que necessariamente existe (como até os filósofos pagãos confessavam) um primeiro motor. Isto é, uma primeira e eterna causa de todas as coisas, que é o que os homens significam com o nome de Deus”.

A Palavra de Deus se evidencia na Razão Natural “Não convém renunciar aos sentidos e à experiência, nem àquilo que é a palavra indubitável de Deus, nossa razão natural. Pois foram esses os talentos que ele pôs em nossas mãos para vivermos, até o retorno de nosso abençoado Salvador” (Leviathan, XXX). Deve-se obedecer ao Reino de Deus. Quanto ao Reino Civil, o homem o projeta à luz da razão, a primeira forma de Deus nos falar.

CÂNON, INTERPRETAÇÃO DAS ESCRITURAS E PAZ CIVIL
É a pessoa soberana quem define o que é canônico, isto é, o que diz respeito aos deveres civis e a pessoa soberana deve interpretar ou delegar a alguém a interpretação que seja de acordo com a consecução da paz civil. Uma doutrina, mesmo que seja verdadeira, se prejudicar a paz civil não deverá ser ensinada.

Quando se completou o Cânon do AT
“Todas as Escrituras do Antigo Testamento foram postas na forma que possuem após o regresso dos judeus do cativeiro em Babilônia, e antes do tempo de Ptolomeu Filadelfo, que as mandou traduzir para o grego por setenta homens, que lhe foram mandados da Judéia para esse fim... As Escrituras foram postas na forma que lhes conhecemos por Esdras”. (Leviathan, XXX).
Isso é ensinado no Pontifício Instituto Bíblico de Roma até hoje.

Os Livros considerados Apócrifos
“Os livros Apócrifos nos são recomendados pela Igreja, embora não como canônicos, como livros proveitosos para nossa instrução”. (Leviathan, XXXIII).
Nesse e noutros aspectos, Hobbes “prepara a tolerância na medida em que diz serem indiferentes à salvação, bem como ao Estado e à Igreja, a maior parte dos temas que levam os homens a disputar sobre a religião”. (Do Cidadão, Introd. de R. J. Ribeiro, p. XXXII, n.19).

A Religião do Estado e a Tolerância na Bíblia

Hobbes cita o caso do General sírio Naamã, convertido ao Deus de Israel, como exemplo de obediência civil e de fé em Deus ao mesmo tempo, numa forma de liberdade concedida pelo profeta Elisieu, o que podemos ver também em relação à tolerância religiosa. O General disse a Eliseu: “Nunca mais oferecerá este teu servo holocausto nem sacrifício a outros deuses, senão ao Senhor. Nisto perdoe o Senhor a teu servo; quando o meu senhor entra na casa de Rimom para ali adorar, e ele se encosta na minha mão, e eu também me tenha de encurvar na casa de Rimom, quando assim me prostrar na casa de Rimom, nisto perdoe o Senhor a teu servo. Eliseu lhe disse: Vai em paz”. (II Rs 5: 17-19) Hobbes cita essa passagem em relação à obediência ao poder civil em primeiro lugar, do qual vem a legitimidade sobre a religião, no Cap. XLII do Levitã, afirmando, em primeiro lugar, que Em primeiro lugar, que "a fé é uma dádiva de Deus, que o homem é incapaz de dar ou tirar por promessas de recompensa ou ameaças de tortura. Mas se além disso se perguntar: E se nos for ordenado por nosso príncipe legítimo que digamos com nossa boca que não acreditamos, devemos obedecer a essa ordem? A afirmação com a boca é apenas uma coisa externa, não mais do que qualquer outro gesto mediante o qual manifestamos nossa obediência; o que qualquer cristão, mantendo-se em seu coração firmemente fiel à fé de Cristo, tem a mesma liberdade de fazer que o profeta Eliseu concedeu a Naaman, o sírio".
Em segundo lugar, afirma que "tudo aquilo que um súdito, como era o caso de Naaman, é obrigado a fazer em obediência a seu soberano, desde que o não faça segundo seu próprio espírito, mas segundo as leis de seu país, não é uma ação propriamente sua, e sim de seu soberano; e neste caso não é ele quem nega Cristo perante os homens, mas seu governante e as leis de seu país".

QUEM PARTICIPA DO REINO DE DEUS?
“No reino de Deus, não consideramos como seus súditos os corpos inanimados ou irracionais, embora estejam subordinados ao poder divino; e não os contamos, porque eles não entendem o que sejam os mandamentos e ameaças de Deus; nem tampouco os ateus, porque não acreditam que Deus exista...
... nem mesmo os que, acreditando na existência de Deus, não crêem, contudo, que ele governe estas coisas inferiores; pois estes últimos, embora sejam governados pelo; poder de Deus, não reconhecem, porém nenhum de seus mandamentos, nem temem suas ameaças. Considera-se pertencente ao reino de Deus, portanto, apenas esses que confessam ser ele o regente de todas as coisas, e acreditam que ele tenha dado mandamentos aos homens, e fixado castigos para quem os descumprir. Os demais não devemos chamar súditos, mas inimigos, de Deus”.(Do Cidadão, Parte III: Religião, p. 240 )

ONDE ESTÁ O REINO DE DEUS?
“Deus na verdade reina lá onde suas leis são obedecidas não por medo aos homens, mas por medo a ele”. (De Cive, Cap. XVI).
Noutras palavras, como disse o Cristo: “Porque o reino de Deus está dentro de vós”. (Lc 17: 20-21)

CRISTO E O PODER CIVIL
“Nada foi feito ou ensinado por Cristo que tenda a diminuir o direito civil dos judeus ou de César”.
Dado que ele (Cristo) nada fez senão procurar provar que era o Messias, pela pregação e pelos milagres, ele nada fez contra a lei dos judeus... E também nada fez de contrário às leis de César”.



CONCLUSÃO
Na mesma Dedicatória do Leviathan, que nos inspirou para pesquisar relevância das Escrituras em seu pensamento, Hobbes diz:
“Sou um homem que ama suas próprias opiniões, que acredito em tudo o que digo”.
E como um escriba sábio, que busca em seu tesouro coisas novas e velhas, encontrou nas Escrituras bases para o consentimento, a soberania absoluta, a paz civil, a preservação da vida, que é o nosso maior bem, e o enfrentamento da Igreja, que distorceu as Escrituras, como ele diz:
O maior e principal abuso das Escrituras e em relação ao qual todos os outros são, ou conseqüentes ou subservientes, é distorcê-las a fim de provar que o reino de Deus, tantas vezes mencionado nas Escrituras, é a atual Igreja”. (Leviathan, XLIV).

Seu objetivo começa a ser alcançado mesmo em sua existência, pois ele diz, sobre o Leviathan:
“Ouço dizer que este livro se retira de circulação em Itália, por tratar-se de um livro que causa maior dano à sua religião que todos os escritos de Lutero e Calvino juntos. Veja... que contraste entre essa religião e a razão natural” (Tönnies, Hobbes, p. 40).

Hobbes faz, assim um “retorno às coisas mesmas” em relação ao Reino de Deus, visando a Paz Civil, lendo as Escrituras não maiss como “as fortificações avançadas do inimigo, de onde este ameaça o poder civil”.

Para ele, enfim:
“As Escrituras foram escritas para mostrar aos homens o reino de Deus, e preparar seus espíritos para se tornarem seus súditos obedientes; deixando o mundo, e a filosofia a ele referente, às disputas dos homens, pelo exercício de sua razão natural”. (Levithan, VIII)...

...Afinal, como disse Cristo:

O meu Reino não é deste Mundo” (Jo 18:36)

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ADENDO: HOBBES: UM ILUMINADO?
1 - Na edição de 1651do De Cive aparece a seguinte frase grega:

“Phrontides dasterai sophóterou”.

Ela pode ter um dos significados abaixo:

A – “Partilhadas reflexões do (mais) sábio (de todos)”.
B -"Reflexões iluminadas do mais sábio".

phrontides (pl.): pensamentos, reflexões, meditações.
dasterai (adj. pl.): repartidas, divididas, distribuídas; pode, também, significar "iluminadas"
sophóterou: “do mais sábio”. O termo está no comparativo absoluto.
(Tradução do Grego feita por Paulo Sérgio de Proença, a quem sou muito grato).

2 – Em uma Carta à M. Sorbière d'Orléans, de 25 de abril de 1646, Mersenne afirma, sobre o De Cive:
"Este livro vale um tesouro e seria desejável que os caracteres usados para sua impressão fossem de prata".

3 - E Hobbes afirma sobre sua própria obra:
"Se a física é uma coisa toda nova, a filosofia política o é mais ainda. Ela não é mais antiga que minha obra o De Cive". (Epístola Dedicatória do De Corpore).
(Tradução do Francês: Antonio Juan Dias, a quem também expresso minha gratidão).

2 comentários:

Anônimo disse...

Olá!
Vivemos em um estado democrático de direito, mas você acha que existe hoje situações no âmibito jurídico que nos leve a pensar o estdo hobbesiano. Me dá um exemplo?

ProfºIsaar Soares de Carvalho disse...

Receber uma mensagem anônima, num "estado democrático de direito", é estranho.
- Poderia identificar-se e explicar por que precisa de um exemplo para a resposta de sua pergunta?

Muito grato.

Prof. Isaar Soares de Carvalho