terça-feira, 4 de janeiro de 2011

Hobbes, a inerrância e a exclusividade dos sacerdotes na interpretação das Escrituras

A análise feita por Hobbes da história das formas de organização civil de Israel tem por objetivo principal demonstrar que “a autoridade civil e sagrada estavam unidas nos sacerdotes” e que, “embora... até o advento de Nosso Salvador Jesus Cristo... não se possa saber em quem residia a autoridade, é, contudo, claro que naqueles tempos o poder para interpretar a palavra de Deus não estava separado do poder civil supremo”. (Do Cidadão. Trad. de Renato Janine Ribeiro: S. Paulo: Martins Fontes, 1992, p. 308).

Ao examinar o reino sacerdotal e o reino monárquico, Hobbes escreve contra a infalibilidade ou inerrância dos sacerdotes em relação à interpretação das Escrituras e às objeções que se levantassem contra sua tese de que o poder soberano é quem tem a autoridade para interpretar as Escrituras e, por conseqüência, para designar quem o fará. Ele argumenta que tanto os reis quanto os sacerdotes podem errar, pois todos são mortais:

“Alguém pode objetar aos reis que lhes falta erudição, e por isso raramente têm eles capacidade para interpretar esses livros antigos nos quais está contida a palavra de Deus, e portanto não é razoável que esse ofício de intérprete dependa de sua autoridade. Mas o mesmo poderia ser objetado aos sacerdotes e a todos os mortais: pois podem, todos, errar”. (Idem, p. 307).

Porém, continua o filósofo, os reis têm a autoridade para designar os intérpretes de tais livros. No Leviatã, Hobbes usará um argumento semelhante à ironia sobre o ensino de Geometria usado na obra Do Cidadão, para garantir que o poder civil é o responsável pela educação, bem como estenderá, no Leviatã, o direito ao ensino do Evangelho a pessoas que não fazem parte do magistério eclesiástico ordenado. A ironia sobre os que se recusam a admitir a autoridade dos reis (isto é, do poder soberano) em relação à interpretação das Escrituras e o ensino da Geometria é a seguinte:

“Os que se recusam a reconhecer-lhes essa autoridade, alegando que eles não podem praticar tal ofício em pessoa, é como se dissessem que a autoridade para ensinar a geometria não pode depender dos reis, a não ser que estes mesmos sejam geômetras”. (Idem, p. 216).

Hobbes afirma aceitar como canônicos os livros reconhecidos pela autoridade da Igreja Anglicana e diz que entende “por livros das Sagradas Escrituras aqueles que devem ser o Cânone, quer dizer, as regras da vida cristã” e que “o problema das Escrituras é o problema de saber o que é lei, tanto natural quanto civil, para toda a cristandade”. (Leviatã,Col. Os Pensadores, 2. ed., 1979, Cap. XXXIII, p. 225).

Portanto, o que é canônico é aquilo que dita não só as regras da ética cristã, mas das Escrituras se podem deduzir também as leis naturais, isto é, aquelas que nos são ensinadas pela própria razão, como Hobbes o demonstra na obra Do Cidadão, bem como as leis civis podem também ser confirmadas também através das Escrituras.

Para corroborar a derivação do que é canônico da autoridade civil, Hobbes cita o fato narrado em II Rs 23: tendo sido achado o Livro da Lei na casa do Senhor pelo sumo sacerdote Hilquias, por ocasião de uma reforma do templo, o rei foi comunicado do fato e, tendo ouvido a leitura do Livro, ordenou que se consultasse a profetiza Hulda. Esta disse que o povo de Judá seria punido por ter desobedecido às palavras do Senhor contidas no Livro, mas que o bom rei Josias seria reconhecido por sua piedade e abençoado por ela.

O texto mostra, claramente, o reconhecimento, pelo rei, da autoridade da profetisa. Mas Hobbes valoriza, além disso, o fato de ter sido o rei quem convocou os anciãos de Judá e os habitantes de Jerusalém para firmarem um pacto com o Senhor a partir das palavras do Livro encontrado. Isso para Hobbes é uma prova de que o Livro foi reconhecido pela autoriade civil.

Parte do texto bíblico é uma preciosidade para a argumentação de Hobbes em torno da autoridade civil sobre os livros canônicos, por isso a citamos abaixo:

“Então, deu ordem o rei, e todos os anciãos de Judá e de Jerusalém se ajuntaram a ele. O rei subiu à Casa do Senhor, e com ele todos os homens de Judá, todos os moradores de Jerusalém, os sacerdotes, os profetas e todo o povo, desde o menor até ao maior; e leu diante deles todas as palavras do Livro da Aliança que fora encontrado na Casa do Senhor. O rei se pôs em pé junto à coluna e fez aliança ante o Senhor, para o seguirem, guardarem os seus mandamentos, os seus testemunhos e os seus estatutos, de todo o coração e de toda a alma, cumprindo as palavras desta aliança, que estavam escritas naquele livro; e todo o povo anuiu a esta aliança”. (II Rs 23:1-3).

O pensador, assim, nesse aspecto, adota uma interpretação da Bíblia reduzindo-a aos problemas da obediência civil, ou seja, ao reino dos homens. E assim como faz na obra Do Cidadão, onde diz que o essencial à salvação se resume na afirmação do Credo Niceno de que “só há salvação em Cristo”, no Leviatã ele afirmará: “As Escrituras foram escritas para mostrar aos homens o Reino de Deus, e preparar seus espíritos para se tornarem seus súditos obedientes; deixando o mundo, e a filosofia a ele referente, às disputas dos homens, pelo exercício de sua razão natural”. (Leviatã, idem, Cap. VIII, p. 49)

Porém, seria necessário observar que, apesar de Hobbes afirmar, em relação aos reis de Israel, que “é verdade que não ofereceram sacrifícios, pois isso constituía incumbência hereditária de Aarão e seus filhos”, há uma narrativa sobre o fato de Saul ter oferecido holocausto, no que foi duramente censurado por Samuel, inclusive com a advertência de que perderia o reino. E posteriormente o rei Davi, tendo também oferecido sacrifícios, não recebeu advertência de qualquer profeta, e tampouco foi punido. Isso mereceria ser estudado do ponto de vista de uma ideologia em torno de Davi e de sua sucessão no trono. (Para quem tiver interesse nesse tema, indicamos a obra de Ariel Finguerman, A Eleição e Israel, S. Paulo: Humanitas/USP: 2003)

Para Hobbes, porém, o que importa é a soberania civil, e seguindo seu raciocínio, como o poder sacerdotal procede do poder civil, é possível que ele admitisse que a pessoa investida desse poder exercesse, excepcionalmente, a função sacerdotal.

Quanto aos profetas, Hobbes afirma que eles eram conselheiros, porém não exerciam autoridade civil ou absoluta sobre os reis, referindo-se novamente ao Rei Josias, que diante de uma profecia do Faraó Neco, decidiu não obedecê-la, porém, enfrentou-o na batalha e morreu. Hobbes argumenta, em relação a esse desfecho trágico para Josias, que apesar de Neco lhe dizer que falava em nome de Deus, pela impossibilidade de saber se ele mentia ou não, Josias não era obrigado, por lei divina ou humana, a acreditar que era Deus quem falava.

E da mesma forma que os profetas, também os apóstolos e seus sucessores, incluindo o Bispo de Roma (considerando tudo o que a doutrina da sucessão de Pedro tem de contraditório), por força da argumentação, poderiam ser considerados, do ponto de vista civil, apenas meros conselheiros do soberano civil, e isso, se este assim o quisesse.

Do ponto de vista teológico, porém, as narrativas bíblicas afirmam que a própria salvação civil poderia estar na boca dos profetas, mas Hobbes oscila entre a admissão do cumprimento das profecias e a dúvida sobre quando e como Deus fala.

Por fim, deve-se observar que Hobbes afirma, no Leviatã, que mesmo uma doutrina verdadeira, caso prejudique a paz civil, poderá ter seu enino proibido pelo soberano. Mas isso é contrário aos próprios princípios do Evangelho e da Reforma, os quais se, por um lado, servem de inspiração ao filósofo para combater o clero, por outro lado, são por ele secundarizados, caso prejudiquem a paz civil. Mas não podemos deixar de perguntar: Por que a verdade prejudicaria a paz civil, se o próprio filósofo diz, na Conclusão do Leviatã: “a verdade que não se opõe aos interesses ou aos prazeres de ninguém é bem recebida por todos”?

2 comentários:

Lailson Castanha disse...

Prof. Isaar, saúde.

As ideias de Hobbes destacada nesse artigo corrobaram as asserção do apóstolo João, quando este afirma: não creiais a todo o espírito, mas provai se os espíritos são de Deus (Jo 4.1) e do apóstolo Paulo quando afirma “sempre seja Deus verdadeiro, e todo o homem mentiroso.” (Rm 3.4).

Fica Claro, nas Escrituras, que a palavra final não está com os homens. Todos devem se submeter ao crivo das Escrituras. O próprio apóstolo Paulo aprovou a atitude dos crentes de Bereia, classificando como uma atiude nobre, que aceitavam a sua palavra, não sem confrontá-la com as com as Escrituras.

É de se extranhar que instituições se apresentem como portadoras de verdades – verdades extra bíblicas. Se existem verdades extra bíblicas, em que iríamos nos pautar para julgá-las?

Toda a Escritura é divinamente inspirada, e proveitosa para ensinar, para redargüir, para corrigir, para instruir em justiça; ( 2 Tm 3.16), portanto, as Escrituras por si mesma é eficaz – não necessitando de porta vozes oficiais, como se arroga a igreja Romana.

Entendo que Hobbes acerta como classifica as autoridads eclesiasticas, “do ponto de vista civil,” como “apenas meros conselheiros do soberano civil, e nunca como a palavra definitiva.

O teólogo moderno Jacobus Arminius (1560-1609), se coaduna com Hobbes quando afirma:

"Nenhum escrito composto por homens - por um homem, por alguns homens, ou por muitos - (com exceção das Escrituras Sagradas,) é axiopison "honroso de si mesmo", ou autopison "de si mesmo implicitamente merecedor de credibilidade", e, portanto, não está isento de um exame a ser instituída por meio das Escrituras.

É tirania e papismo controlar a mente dos homens com os escritos humanos, e impedir que eles sejam submetidos a um exame legítimo, mesmo sob qualquer pretexto que a conduta tirânica for adotada".(1)

Lailson Castanha
______
(1) The Works of James Arminius Vol 2.

ProfºIsaar Soares de Carvalho disse...

Obrigado, caro Laislon, por suas oportunas considerações. Grande abraço. Isaar.