sábado, 28 de novembro de 2009

“O meu reino não é deste mundo” ou: Homens, súditos e cristãos em Hobbes

Ao Prof. Ênio José da Costa Brito, uma fonte de saber e amizade.

No Prefácio da obra Do Cidadão encontra-se o plano de trabalho de Hobbes, tanto do ponto de vista teórico quanto em relação à moral. Eis a sua divisa:

“Neste livro, verás sucintamente descritos os deveres dos homens, primeiro enquanto homens, depois enquanto súditos, e finalmente na qualidade de cristãos” (p. 11).

Por essa síntese verifica-se que ele parte dos direitos de natureza, os quais devem ser preservados pelo Estado. Enquanto criaturas de Deus, no entanto, conforme as Escrituras, o seu fim é a vida eterna. A doutrina cristã deve ser reconhecida pelo Estado, mas se este ordenar algo contrário à salvação, poderá ser desobedecido sem injustiça.

Em sua dialética, ao mesmo tempo em que a afirma a existência de um deus mortal, deduzido da razão natural e construído artificialmente pelo homem, Hobbes submete as idéias a respeito do Deus imortal a esse grande homem. Na realidade, como o Estado é deduzido por natureza, Hobbes, reduzindo a religião ao não demonstrável, submete-a à autoridade civil, a qual, em lugar de ser mortal, assume um caráter sagrado. Assim, o que é sagrado é o próprio Estado.

Para Hobbes a fé é uma questão particular e o Estado não tem um credo específico. Não é porque um rei se converte que todo o Estado será cristão.

Nesse aspecto, Leo Strauss afirma que Hobbes parte das Escrituras para justificar a autoridade civil, mas ao fim as nega. O próprio Hobbes reduz a religião a uma instituição que para ser reconhecida juridicamente, está submissa ao Estado, o que aparece, tanto no De Cive quanto no Leviathan, em sua definição da palavra “Igreja”. Esta só terá legitimidade enquanto pessoa se for reconhecida pelo Estado e o homem não lhe estará sujeito a não ser como fiel, não enquanto cidadão.

Patricia Springborg está de acordo com Strauss. No texto Hobbes on Religion ela afirma que suas obras Historia Eclesiastica (publicada em 1688) e An Historical Narration Concerning Heresy and the Punishment Thereof (publicada em 1680) têm sido ignoradas no estudo do pensamento religioso do filósofo. Em relação à heresia, afirma que Hobbes se refere a uma definição da mesma na Grécia Antiga, o que faz para proteger-se de ser acusado como tal e que, quando Hobbes afirma que a autoridade da Escrituras procede da pessoa soberana, anula essa autoridade.

No decorrer da História observa-se que, enquanto na Igreja Primitiva se fazia um grande esforço diante da religião oficial judaica e do Estado, ambos perseguidores da Igreja nascente, na Idade Moderna, devido ao domínio da Igreja sobre a cultura e a política, houve uma longa luta da filosofia e da ciência diante da instituição eclesiástica, que era tão secular quanto outras, mas com o trunfo de ser representante de Deus na terra, sobrepondo-se, em nome dessa ideologia, ao estado, à filosofia, à ciência e à liberdade moral. A Igreja, que no início não tinha expressão política, com o passar dos séculos tornou-se controladora das consciências. Chegou-se à situação dialética em que o Estado, de seu perseguidor, precisava libertar-se dela.

Hobbes teve um importante papel na elaboração de uma teoria que demonstrasse que sem o Estado não é possível existir a própria sociedade civil. Logo, a legitimação da religião também provém do próprio soberano. Não ao contrário, conforme já vimos ao citar o cap. XII, sobre as vantagens do poder eclesiástico ao “reconhecer” um soberano. Mas Hobbes não está tratando, em sua obra, primeiramente, da religião cristã, mas da soberania e, por conseqüência, da religião enquanto instituição que pretendia ser um Estado dentro do Estado, o que seria uma contradição lógica e ontológica.

É impressionante a tarefa de Hobbes, diante de uma cultura influenciada pela leitura da Bíblia: demonstrar que a paz é alcançada através da filosofia civil ou moral, não da instituição eclesiástica, que se dizia a guardiã das Sagradas Escrituras, justamente destas, que afirmam, na interpretação que Cristo é o Príncipe da Paz, e que seu Reino não é deste mundo.

Hobbes já questiona a própria noção de cânon, afirmando que os livros considerados canônicos eram aqueles que a Igreja Anglicana, isto é, a Igreja submissa ao Estado, assim o decidisse. Acima do Papa estava o Soberano, portanto. Nada mais lógico, pois a instituição que garante a paz civil é o Estado, o que seria uma redundância, pois ele resgata o sentido de Civitas (Estado) tanto no De Cive quanto no Leviathan, mas era necessário afirmar isso em seu contexto.

Hobbes afirma que a discórdia em seu contexto era provocada pela falta de ciência dos teólogos, sendo a finalidade da filosofia moral o alcance da paz civil. Ele estabelece um contraste entre o mundo da discórdia das doutrinas da teologia e o mundo da paz da geometria, isto é, o modelo da filosofia civil e, por conseqüência, da paz, não era a disputa teológica, mas a filosofia moral, que levaria à conclusão de que sem a obediência a um poder comum, que colocasse a todos os homens em respeito, estes não tirariam prazer algum do convívio social, pois continuariam no estado de natureza, como afirma o filósofo no célebre cap. XIII do Leviathan.
Então, por que chamar a esse Estado de “eclesiástico”?

Aparentemente é um Estado laico absoluto. Porém A. P. Martinich discorda disso, afirmando que em Hobbes há uma tentativa de conciliação entre a visão da ciência moderna e a visão cristã predominante sobre Estado. Este, de acordo com Hobbes, subsume em si todas as instituições, principalmente a instituição eclesiástica, chegando mesmo a decidir sobre que é canônico ou não, bem como sobre as doutrinas a serem ensinadas, visando a paz, e assim, nada que se opõe à paz civil deve ser ensinado. Ainda que as doutrinas sejam verdadeiras, nada impedirá que sejam controladas, tendo em vista a paz.

Hobbes possivelmente chame a esse estado de “eclesiástico” retoricamente, isto é, como estratégia discursiva, pois em seu tempo as mentalidades ainda eram marcadas pela visão religiosa cristã do mundo. Porém, com o passar dos anos, essa visão de mundo seria secularizada na mentalidade européia, e os empiristas ingleses estão na base de uma visão laica do mundo que posteriormente serviu de base ao iluminismo francês, a seu agnosticismo e anticlericalismo.

Um comentário:

Anônimo disse...

Oi, Profº Drndo. Isaar Soares.

Ufa, quanto texto para ler... Isso é bom, pelo menos agora mais tranquilo vou poder lê-los com mais calma,afinal já passou a semana de prova. Fiquei feliz que o senhor está com todo vigor na escrita. Parabéns.

Forte Abraço, Pedro Filho
(UNIFAI/SP - Vila Mariana)