segunda-feira, 18 de maio de 2009

Hobbes, as Escrituras e a Soberania Absoluta

A seguir procuramos expor como Hobbes interpreta alguns textos bíblicos como parte da sustentação de sua argumentação sobre a origem da soberania, seu caráter absoluto e a consequente submissão da religião ao poder civil.
Em relação à instituição da monarquia em Israel, verificamos que no De Cive Hobbes faz uma releitura da História de Israel e demonstra a evolução de suas instituições políticas e religiosas. De acordo com essa leitura, após um período em que Moisés deteve o poder civil e o religioso, os sacerdotes passaram, após a sua morte, a exercer o segundo, ficando Israel naquela situação de crise política e moral, assim descrita no Livro de Juízes: “naqueles dias não havia rei em Israel, cada um agia como bem lhe parecia”, chegando a uma anarquia e a uma situação semelhante ao estado de natureza. Em tais condições a instituição da monarquia se deu por necessidade da própria sociedade, pois não havia uma organização social que garantisse a paz. (Jz 21:25).
A afirmação de Êxodo 19: 6: “Vós me sereis reino de sacerdotes e nação santa”, é utilizada por Hobbes como base para a afirmação da tese de que Israel foi um reino sacerdotal, desde Moisés até o rei Saul, quando então, de acordo com a narrativa do I Livro de Samuel, o povo de Israel rejeitou o reino de Deus. Nesse aspecto, nota-se a originalidade e mesmo a audácia de Hobbes ao afirmar que o reino de Deus ainda não veio, o que se dará, de acordo com abundantes citações bíblicas no De Cive, quando Cristo entregar o reino a seu Pai.
Outro texto que serve de base a Hobbes para fundamentar suas idéias é também do Êxodo, que afirma:
“Todo o povo presenciou os trovões e os relâmpagos... e o monte fumegante: e o povo, observando, se estremeceu e ficou de longe. Disseram a Moisés: Fala-nos tu, e te ouviremos; porém não fale deus conosco, para que não morramos. O povo estava de longe em pé; Moisés, porém, se chegou... onde Deus estava”. (Ex 20:18-19 e 21)
Essas afirmações são utilizadas por Hobbes para fundamentar sua tese de que o poder de Moisés estava sob o poder de Deus, bem como que Moisés era seu lugar-tenente e, como tal, portador da revelação, pois Deus não falava diretamente ao povo. A partir disso, Hobbes fundamenta sua negação da revelação direta de Deus aos homens, ou seja, sem um mediador, até chegar, em sua argumentação, a afirmar que é o soberano civil quem reconhece a religião, define o que é canônico, autoriza os cultos públicos, enfim, é do soberano que procede a legitimidade da religião. Enfim, Hobbes nega a autoridade do Papa como sumo pontífice em relação à religião, afirmando a mesma em relação ao soberano.
Outro texto relevante para a argumentação de Hobbes é o de Juízes Jz 9:7-15, que apresenta uma parábola sobre o governo, na qual se usa uma símile sobre árvores que estão em busca de um soberano. De acordo com o texto, após a renúncia da oliveira, da figueira e da videira ao reinado, cada uma alegando um motivo, “todas as árvores disseram ao espinheiro: vem tu e reina sobre nós” (v. 12). Ao que o espinheiro aceitou, dizendo: “Se deveras me ungis rei sobre vós, vinde e refugiai-vos debaixo de minha sombra; mas, se não, saia fogo do espinheiro que consuma os cedros do Líbano” (v. 16).
O texto de Juízes 9, na perspectiva hobbesiana, por um lado, apresenta a origem do poder na comunidade, e por outro, o que é o principal para o filósofo, adverte sobre os perigos da desobediência civil de sua principal e mais temível conseqüência, a guerra civil, a qual Hobbes compara ao espinheiro mencionado na parábola, afirmando que, ou se aceita a soberania absoluta, ou “... estaremos preferindo ser consumidos pelo fogo da guerra civil”.
Hobbes procurará definir de forma cabal a autoridade do soberano citando o I Livro de Samuel, no qual se narram os direitos do rei que haveria de ser constituído sobre Israel, a pedido do povo. O povo declarou a Samuel:
“Teremos um rei sobre nós. Para que sejamos também como todas as nações; o nosso rei poderá governar-nos, sair adiante de nós, e fazer as nossas guerras.... Então o Senhor disse a Samuel: Atende à sua voz, e estabelece-lhes um rei”. (I Sm 8,19-20 e 22)
Hobbes afirma que os direitos do rei de Israel são próprios de uma soberania absoluta, pois diz o texto:
“Estes serão direitos do rei que houver de reinar sobre vós: ele tomará os vossos filhos, e os empregará no serviço dos seus carros, e como seus cavaleiros... outros para lavrarem os seus campos... e outros para fabricarem as suas armas de guerra... tomará as vossas filhas... tomará o melhor das vossas lavouras e os dará aos seus servidores... também tomará os vossos servos... e os vossos melhores jovens... dizimará o vosso rebanho e vós lhe sereis por servos”. (I Sm 8, 11-18).
Com base em tais afirmações, portanto Hobbes afirma, categoricamente:
“Onde a autoridade do rei melhor está definida é nas palavras de Deus mesmo...
- E um tal poder não é absoluto? E no entanto foi Deus mesmo quem o chamou de o direito do rei”.
O primeiro rei de Israel, Saul, detinha o poder de julgar e o de comandar o povo na guerra, o que significava que seu poder era absoluto. O poder de julgar é subordinado ao soberano, de tal forma que a interpretação do juiz “não é autêntica por ser sua sentença pessoal, mas por ser dada pela autoridade do soberano”. Da mesma forma, em relação à guerra, o soberano tem o poder de decidir quando ela é necessária para manter a paz e a segurança e, mesmo que não seja o comandante das tropas na guerra, “seja quem for o escolhido para general de um exército, aquele que possui o poder soberano é sempre o generalíssimo”.
Hobbes, além de demonstrar que a origem da soberania estava no povo, ressalva, com base nas palavras de Samuel, que o povo e o rei não seriam bem sucedidos caso se desviassem dos caminhos de Deus:
“Se temerdes ao Senhor ... assim vós como o vosso rei que governa sobre vós, bem será. Se, porém, perseverardes em fazer o mal, perecereis, assim vós com o vosso rei”. (I Sm 12: 14 e 25)
Porém, na realidade, essas palavras atribuídas a Samuel são lidas por Hobbes, em relação ao caráter absoluto do poder, apenas como conselhos para o rei. O mesmo ele fará em relação a outros profetas, aos apóstolos e ao próprio papa. Tais pessoas podem servir como conselheiros e mestres, e como intercessores diante de Deus face a algum problema social ou político. Após a deposição de Samuel da função de juiz, o exercício conjunto da judicatura e do cargo de comandante-em-chefe deixou de existir. O profeta, portanto, como dissemos, é visto por Hobbes como alguém inferior ao soberano.
Ainda em relação à obediência ao poder constituído, Hobbes refere-se a dois textos que narram oportunidades que Davi teve de matar o rei Saul, que o perseguia, observando que Davi não o matou por respeitá-lo como ungido do Senhor e, portanto, como soberano absoluto. Mais tarde, Davi manteve esse princípio ao ordenar a execução do soldado que veio a executar o rei Saul, mesmo tendo-o feito em obediência a uma ordem do próprio Saul que, ferido numa batalha não queria ser morto por um adversário. Hobbes argumenta em torno dessas narrativas em defesa do poder absoluto do soberano e da obediência dos súditos. Davi afirmara da primeira vez que Saul não lhe poderia resistir, pois estava dormindo numa caverna: “O Senhor me guarde de que eu faça tal cousa ao meu senhor, isto é, que eu estenda a mão contra ele, pois é o ungido do Senhor” (I Sm 24:6). E também, noutra ocasião em que Saul esteve sob suas mãos: “Quem haverá que estenda a mão contra o ungido do Senhor, e fique inocente?”. (I Sm 26:9)
Enfim, para nos determos, provisoriamente, nas citações do Antigo Testamento, observe-se o texto de I Rs 2:26-27, que afirma, em relação ao poder e às mudanças feitas pelo rei Salomão, que sucedeu a Davi
“E a Abiatar, o sacerdote, disse o rei: Vai para Anatote, para teus campos, porque és homem digno de morte... Expulsou, pois, Salomão a Abiatar, para que não mais fosse sacerdote do Senhor... e em lugar de Abiatar (constituiu) a Zadoque por sacerdote”
Desse texto, Hobbes destaca o poder de demissão e de nomeação do rei Salomão sobre o sacerdócio, isto é, do soberano civil sobre a religião, encontrando aí argumentos para a submissão da religião ao poder civil.

4 comentários:

Danilo Sergio Pallar Lemos disse...

Parabêns prezado Mestre, excelente exposição para a filosofia e a teologia.

Acesse meu blog. www.vivendoteologia.blogspot.com

Anônimo disse...

Ola Professor .
Alguns textos que o sr apresentou em sala de aula eram bastante interessantes, e parecem que ter a questão politica como pano de fundo, que é o que parece que o sr gosta mais de debater.Pena que esse ano ,o clima era de quartas de final.
Esse ultimo de John Locke,discorria sobre a questão politica com uma certa logica intrinsica

Anônimo disse...

Ola Professor .
Alguns textos que o sr apresentou em sala de aula eram bastante interessantes, e parecem que ter a questão politica como pano de fundo, que é o que parece que o sr gosta mais de debater.Pena que esse ano ,o clima era de quartas de final.
Esse ultimo de John Locke,discorria sobre a questão politica com uma certa logica intrinsica
Renato Saifi

ProfºIsaar Soares de Carvalho disse...

Obrigado, Renato Saifi, por suas considerações. O político e uma de suas formas paralelas e instrumentais, bem como críticas, está no religioso.
Mas mesmo que eu me ponha a falar do político, sou arrastado para minha consciência : não consigo pensar sem as Escrituras.
Grande abraço.
Isaar.