segunda-feira, 16 de junho de 2008

Dos Usos da Bíblia na Filosofia Política

Prof. Ms. Isaar Soares de Carvalho
Doutorando em Filosofia -UNICAMP

Meu propósito é fazer algumas considerações sobre alguns dos usos que se fizeram da Bíblia, principalmente por uma área do saber que aparentemente se opõe radicalmente às Escrituras: a Filosofia.

1 - Santo Tomás
Já se viram grandes filósofos utilizando as Escrituras para fundamentar seus argumentos. Comecemos por Santo Tomás (1224-1273), o doutor angélico. Ao tratar dos bons governos, o santo define o rei como aquele “que preside único” e que é um “pastor que busca o bem comum e não o interesse próprio”. (Sobre o Regime dos Príncipes, Trad. de Arlindo V. dos Santos, 1937, p. 19). A comunidade perfeita é governada pelos reis justos, que às vezes, segundo o pensador, são também chamados de pais dos povos, por sua semelhança com o pater famílias. Demonstrando sua preferência pela Monarquia, cita o profeta Ezequiel, que afirma: “O meu servo Davi será rei sobre todos e ele ser-lhes-á, de todos, pastor” (Ez 37,24). Cita também Salomão ao defender o governo de um só: “O rei impera e toda a terra a ele sujeita” (Ec 5,8). Porém, é sua citação do Profeta Jeremias que demonstra de forma mais clara sua preferência pelo governo de um só: “Os muitos pastores arruinaram a minha vinha” (Jr 12,10). Como o rei deve zelar pela paz civil, “perdida a qual perece a utilidade da vida social”, o regime mais útil será aquele que “conservar a unidade da paz”. (Idem, p. 22). Para fundamentar sua tese, cita a Epístola aos Efésios: “Sede solícitos em conservar a unidade do espírito no vínculo da paz”. (Ef 4,3). E logo a seguir argumenta que, como é sabido “que melhor pode realizar unidade o que é de per-si um só”, conseqüentemente, “o governo de um só é mais útil que o de muitos”. (Idem, p. 22). Assim, dos profetas aos livros sapienciais e às Epístolas do Novo Testamento, o doutor angélico procura fundamentar sua defesa da monarquia como a melhor forma de governo.

2 – Thomas Hobbes
O pensador inglês Thomas Hobbes (1588-1679) procurou na Bíblia argumentos para defender a supremacia do poder civil sobre o religioso, tanto na obra intitulada Do Cidadão quanto em sua obra mais citada: Leviatã. Ele argumenta, por exemplo, que Moisés, sendo o portador do poder civil, foi quem ordenou Arão ao sacerdócio.
Outra de suas teses políticas com base bíblica está em sua leitura de uma demonstração de consentimento do povo, através dos anciãos de Israel, com a liderança de Moisés para a saída do Egito e, mais tarde, no pedido de um rei ao último juiz de Israel, o profeta Samuel.
Apesar de uma tradição que vê em Hobbes o pensador do estado absoluto, ele é o pensador da obediência civil e nele se encontram justificativas da origem popular do poder civil, com a tese do consentimento de transferir a uma pessoa soberana o poder e ter assegurada a paz.
Em última instância, como afirma Hobbes em sua epístola dedicatória do Leviatã, como as Escrituras eram as “fortificações avançadas do inimigo, de onde este impugna o poder civil”, sua leitura procurará, ao contrário da Igreja, encontrar na Bíblia os fundamentos da submissão de qualquer poder ao poder civil, visando acabar com um problema que a própria Igreja provocava: a desobediência civil e, por conseqüência, o mais temível de todos os males para uma sociedade: a guerra civil.
Isso ele demonstra muito bem em sua obra da velhice, Behemoth ou o Longo Paramento, na qual via na submissão religiosa e civil ao Papa uma grande fonte de desobediência civil e de discórdia. Por isso, as doutrinas ensinadas, de acordo com ele, não poderiam ser contrárias à paz civil. Visando a preservação da paz, portanto, a Igreja deveria ser submissa ao Estado.
E no cap. XIV do Leviatã, ao tratar da segunda lei de natureza, pela qual o homem deve querer a paz e defender a si mesmo quando julgar necessário, assegurar seu direito a todas as coisas e contentar-se com a mesma liberdade que concede aos outros homens e que estes lhe concedem, o pensador vale-se do Evangelho de Lucas para corroborar sua tese, citando a afirmação de Cristo: “Como quereis que os homens vos façam, assim fazei-o vós também a eles”. (Lc 6,31).
Mais adiante, no cap. XVIII, ao tratar do caráter indivisível do poder soberano e de seu fim principal, que é “a preservação da paz e da justiça”, cita o Evangelho de Marcos, que diz: “um reino dividido em si mesmo não pode manter-se”. (Mc 3,24)

3 - John Locke
O filósofo inglês John Locke (1632-1704) leu as Escrituras argumentando contra as monarquias absolutas. No início do Segundo Tratado sobre o Governo ele afirma que a razão é uma “regra comum e medida que Deus deu aos homens” e que quem comete um assassinato declara guerra contra toda a Humanidade, ficando sujeito à punição de qualquer homem. E para fortalecer seu argumento, cita o Gênesis, que narra que Caim, que assassinara Abel, tinha consciência, pela lei de natureza, de que qualquer que o encontrasse poderia matá-lo, pois ele agiu contra a humanidade.
Outra argumentação que ele faz utilizando as Escrituras está em sua afirmação de que “quando não existe judicatura na terra para resolver as controvérsias entre os homens, o Juiz é Deus nos céus”, bem como quando acrescenta que, “na verdade, ele somente é o juiz do que é direito”. (Segundo Tratado, Cap. XIX, par. 241). Com esse argumento ele nega o direito divino dos reis e afirma, inversamente, o direito à rebelião como divino e, logo, como natural, ditado pela razão. Ao tratar disso, cita o juiz de Israel Jefté, que diante do invasor afirmou: “O Senhor, que é juiz, julgue hoje entre os filhos de Israel e os filhos de Amom” (Jz 11, 27). Isso parece servir de base a Locke para afirmar o juízo, não de Deus, mas do povo, diante dos conquistadores, usurpadores e tiranos.
Ele também encontra nas Escrituras uma narrativa em defesa do direito à resistência. Cita o texto de II Reis 18, que narra que o rei Ezequias rebelou–se contra o domínio do império assírio, onde se afirma: “E o Senhor estava com Ezequias, e este prosperou; por isso foi avante e rebelou-se contra o rei da Assíria, e não o serviu”. Locke afirma que, “embora tenha o nome de rebelião, não constitui ofensa perante Deus, mas é o que ele permite e aprova, mesmo quando promessas de acordos, se obtidos pela força, intervêm”, pois, argumenta, “apesar do título que os reis da Assíria tinham sobre Judá pela espada, Deus auxiliou Ezequias a libertar-se do domínio daquele império conquistador”. (Segunto Tratado, Cap. XVI, par. 196). Locke pretende, ao citar esses textos, afirmar que a desobediência e a resistência são legítimas diante das monarquias absolutas e de seus ideólogos.
De acordo com o Prof. Leonel Mello, “Locke influenciou... os filósofos iluministas franceses, principalmente Voltaire e Montesquieu e, através deles, a Grande Revolução de 1789 e a declaração de direitos do homem e do cidadão. As idéias ´inglesas´... transformaram-se nas idéias ´francesas´ e se difundiram por todo o Ocidente”. (Os Clássicos da Política, p. 89). E conforme Chevallier, Locke chegou a servir de inspiração para a Resistência dos franceses ao totalitarismo nazista. (As Grandes Obras Políticas de Maquiavel a Nossos Dias). E saber que ele usou a Bíblia para corroborar seus argumentos!

4 - Rousseau
Outro pensador que faz uso da Bíblia, a despeito de seu anticlericalismo e de suas amargas críticas aos cristãos no Livro IV do Contrato Social, é Rousseau (1712-1778).
Ele afirma no Livro III da mesma obra: “... Parece natural que os príncipes sempre prefiram a máxima que lhes seja mais imediatamente útil. É o que Samuel expôs vigorosamente aos hebreus...”. Ele referia-se à seguinte advertência de Samuel ao povo que, diante das dificuldades com a sucessão do profeta por seus filhos, pediram-lhe um rei: “Estes serão os direitos do rei que houver de reinar sobre vós: ele tomará os vossos filhos, e os empregará no serviço dos seus carros, e como seus cavaleiros... outros para lavrarem os seus campos... e outros para fabricarem as suas armas de guerra... tomará as vossas filhas... tomará o melhor das vossas lavouras... e os dará aos seus servidores... também tomará os vossos servos... e os vossos melhores jovens... dizimará o vosso rebanho e vós lhe sereis por servos”. (I Sm 8, 11-18).
Dessa forma, verificamos que o mesmo texto que é usado por Hobbes para defender a obediência a um poder absoluto, baseado no consentimento, é visto por Rousseau como uma advertência diante dos perigos das monarquias absolutas. Eis o texto bíblico, pois, sendo usado de formas opostas por dois mestres da Filosofia Política.

5 – Kant
É relevante o fato de que Kant (1724-1804) tenha feito uma paráfrase do Evangelho para argumentar em prol da supremacia da Ética sobre a Razão de Estado, quando diz: “A política diz: ´sede astutos como as serpentes´; a moral acrescenta (como condição limitante): ´e sem maldade como as pombas´”. (“Sobre a discordância entre a Moral e a Política, a propósito da paz perpétua”, In: Immanuel Kant. Textos Seletos, p. 130).
Essa paráfrase que Kant faz do Evangelho coloca a ética cristã acima dos meios comuns autorizados pela Razão de Estado. Em seu pensamento a boa vontade, que é uma virtude exaltada no início do Evangelho de Lucas, está acima da astúcia e da dissimulação e a moral é uma condição limitante da ação política. E sem dúvida essa afirmação, também de sua autoria, constitui-se numa paráfrase do Evangelho: “Procurai primeiramente o reino da razão pura e prática e sua justiça, e então vos será dada por si mesma vossa finalidade (o benefício da paz perpétua)”. (Idem, p. 146).

Conclusão
Mas voltemos à essência das Escrituras. Os rabinos abriam a Torah para ouvirem a Palavra de Deus. Abrir significava, em si mesmo, estar pronto para ouvir. Cristo começou sua pregação em Cafarnaum abrindo o profeta Isaías e o interpretando em relação à sua própria pessoa, afirmando que naquele dia se cumprira a palavra de libertação ali anunciada. E durante todo o seu ministério testemunhou essa profecia e deixou a todos, escribas e iletrados, filósofos e ignorantes, ideólogos ou homens virtuosos, a seguinte orientação: “Examinais as Escrituras, porque julgais ter nelas a vida eterna. E são elas mesmas que testificam de mim”.
William Tyndale (1483-1536), conhecido como o “pai da Bíblia Inglesa”, diante de um sacerdote que afirmou que "seria melhor que ficássemos sem as leis de Deus do que sem as leis do papa", respondeu: “Desafio o papa e todas as suas leis; e se Deus me poupar a vida por muitos anos, levarei um garoto que conduz o arado a conhecer mais a Escritura do que vós”. E também afirmou, noutra ocasião: “Eu havia percebido, por experiência, como seria impossível levar o povo leigo à verdade, a não ser que as Escrituras fossem claramente colocadas diante dos seus olhos na língua mãe”. (Cf. Mary Schultze, William Tyndale, o pai da Bíblia Inglesa: http://solascriptura-tt.org).
Enquanto tantos leram as Escrituras como mero instrumento ideológico e político, esse homem dedicou-se a elas de tal modo que deu por elas e por sua mensagem – a palavra de Deus – a sua própria vida, por crer na vida eterna nelas revelada, Jesus Cristo.

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