sexta-feira, 8 de junho de 2012

Pertencendo ao Reino de Deus e obedecendo ao Reino Civil


Ao Pe. Edélcio Ottaviani, espírito ecumênico e coração fraternal.

            Considerando que Hobbes afirma ser “um homem que ama suas próprias opiniões” e que acredita em tudo o que diz ([1]), poderemos afirmar que ele reconhece a Cristo como Salvador, pois ele diz: “Nossa redenção foi levada a cabo em sua primeira vinda, pelo sacrifício mediante o qual se ofereceu na cruz por nossos pecados”. [2]  Porém, ainda que admitisse ser Cristo o salvador, quanto aos deveres civis Hobbes afirma que Cristo obedeceu ao poder civil dos judeus e a César, isto é, a Roma, como se evidencia a seguir: “Nada foi feito ou ensinado por Cristo que tenda a diminuir o direito civil dos judeus ou de César”. E também quando ela diz: “Dado que ele nada fez senão procurar provar que era o Messias, pela pregação e pelos milagres, ele nada fez contra a lei dos judeus... E também nada fez de contrário às leis de César”. [3]
            Porém, teologicamente podemos afirmar que a obediência de Cristo à sua missão de redentor antecedeu a obediência civil, pois como diz Paulo a seu respeito: “Reconhecido em figura humana, a si mesmo se humilhou, tornando-se obediente até â morte e morte de cruz”. [4] A cruz era um suplício civil. Assim, ele obedeceu tanto ao Pai, em sua missão salvífica, quanto ao poder civil que o julgou e o condenou à morte de cruz.
            Ainda sobre o Reino de Deus e a obediência civil, Hobbes faz importante observação teológica e política ao afirmar que enquanto Cristo pregava a Regeneração não houve a constituição de um Reino, bem como não havia, de sua parte, a negação da obediência aos magistrados de seu tempo, o qual era um tempo de pregação de arrependimento, aquilo a que Paulo chama de plenitude do tempo, na Carta aos Gálatas, que tem uma importante observação sobre a obediência civil, quando se refere à lei: “Vindo, porém, a plenitude do tempo, Deus enviou seu Filho, nascido de mulher, nascido sob a lei”. [5]  Por outro lado, o Evangelho diz que “foi Jesus para a Galiléia, pregando o evangelho de Deus, dizendo: O tempo está cumprido, e o Reino de Deus está próximo; arrependei-vos e crede no evangelho”.[6] Esse é “o tempo da regeneração”, não havendo, de fato, a chamada de Cristo para um novo reino civil, como disse Hobbes.
É isso o que Hobbes quer dizer quando afirma que “a época de sua pregação é muitas vezes por ele mesmo chamada a Regeneração, o que não é propriamente um reino”. [7] Assim, em lugar de pregar a desobediência civil aos seus discípulos, Hobbes lembra que ele “ordenou-lhes que obedecessem aos que se sentavam na cadeira de Moisés, e que pagassem tributos a César”. [8] Sua época, portanto, continua Hobbes, não era a de um reino, “mas unicamente um adiantamento do Reino de Deus que estava para vir, dado àqueles a quem Deus havia concedido a graça de serem seus discípulos e de nele acreditarem”.[9]
            Nesse sentido, Hobbes afirma que “dos piedosos se diz estarem já no Reino da Graça, enquanto naturalizados naquele Reino celeste”.[10] O que é possível entender da seguinte forma: os piedosos são cidadãos do Reino dos Céus. No entanto, isso não os isenta de submeterem-se ao poder da cidade terrena, isto é, ao Estado, porque a época da pregação de Cristo, bem como a Regeneração além de não ser um reino, também não é “uma licença para negar obediência aos magistrados então existentes”.[11]
            Enquanto cidadãos, os cristãos, como quaisquer outros homens, só poderiam ter conhecimento de seus deveres a partir do “do conhecimento do soberano poder”, isto é, de quem reina.[12] Porém, conforme dissemos repetidas vezes, Hobbes afirma que “os súditos devem aos soberanos simples obediência em todas as coisas nas quais a sua obediência não é incompatível com as leis de Deus”. [13] 
Mas isso colocaria o cidadão num conflito: O que Deus disse? A quem devo obedecer como cidadão terreno e do Reino de Deus? Deve, pois, diz o pensador, o cidadão saber o que são as leis de Deus, para saber se o que a lei civil ordena é contrário a elas ou não. Se ele não tiver esse conhecimento, poderá obedecer excessivamente ao poder civil e ofender a Divina Majestade ou, “com receio de ofender a Deus”, poderá transgredir os “mandamentos do Estado”. [14]
            Como Hobbes deriva a legitimidade de qualquer religião do poder soberano, na realidade o cidadão deve, primeiro, obediência ao poder civil, que é a Pessoa que lhe dá as garantias da vida, da liberdade e da paz civil, e nenhuma doutrina contrária a essa paz  deverá ser ensinada na República. E como o caráter da associação é primeiramente civil, segue-se que a instituição eclesiástica deverá submeter-se- ao soberano civil.
            Fiel ao princípio da soberania civil, no cap. XLVI o pensador argumentará contra a Inquisição, dizendo que ela é um erro que não foi aprendido da Filosofia Civil de Aristóteles, do pensamento de Cícero ou de qualquer outro pagão. A inquisição estende o poder da lei até “os próprios pensamentos e consciências dos homens”, mesmo que o discurso e a ação desses não se contradigam, e pune os homens que respondem a verdade de seus pensamentos ou os constrange a mentir, por medo do castigo. A Igreja, portanto, laborava na mentira e na desobediência, a qual era feita de forma tripla: à razão, a Deus, fonte de toda a verdade, e à lei civil, pois se esta permitia a pluralidade de credos. [15] Logo, por que a Igreja presumiria controlar as próprias consciências?
            A atitude dos imperadores romanos que perseguiam os cristãos foi imitado pela Igreja, que perseguiu tanto a cristãos discordantes quanto a não cristãos que laborassem na verdade, através da razão natural. Por isso, a Igreja não só usurpava o poder civil através do paulatino controle das consciências e do incentivo à desobediência civil, mas tornou-se ela mesma uma instituição herética, por obrigar quem conhecia a verdade a dizer a mentira. Hobbes, assim, defendia a obediência civil e a obediência a Deus, a qual permite tanto a desobediência às leis civis que se opõem à sua Palavra quanto ao clero decadente, ministro de Deus.  Seu objetivo era submeter a Igreja ao poder civil e nesse sentido afirma que os textos das Escrituras, por si mesmos, não podem tornar-se leis, a não ser quando esse poder é concedido pela autoridade da República, como verificamos na citação abaixo: “E não são as Escrituras, em todos os textos que constituem lei, feitas lei pela autoridade do Estado, e consequentemente, uma parte da lei civil?”. [16]
            Da mesma forma, o filósofo afirma que os indivíduos particulares não têm permissão para interpretar a lei civil por seu próprio espírito, incluindo aí, obviamente, os líderes da instituição eclesiástica que pretendiam interpretar a lei civil de acordo com seus interesses, como ele já adiantara no Cap. XII do Leviatã, afirmando que a Igreja tinha leis e tribunais particulares, favorecendo seus interesses. Semelhantemente, Hobbes afirma que a pregação e o ensino do Evangelho e das Escrituras não deveria ser restrita aos que eram ordenados pela Igreja, mas, argumenta, desde que o Estado o permitisse, poderia ser feita por qualquer cidadão, pois do contrário a Igreja estaria negando uma liberdade concedida pelo poder civil, como afirma o filósofo:

Um erro do mesmo tipo é também quando alguém exceto o soberano restringe em qualquer homem aquele poder que o Estado não restringiu, como fazem aqueles que se apropriam da pregação do Evangelho para uma certa ordem de homens, quando as leis o permitiram. Se o Estado me dá a liberdade para pregar, ou ensinar, isto é, não mo proíbe, nenhum homem mo pode  proibir. Se me encontro entre os idólatras da América, deverei pensar que eu, que sou um cristão, muito embora não tenha  ordens, cometo um pecado se pregar Jesus Cristo até ter recebido ordens de Roma? Ou que, tendo pregado, não devo responder a suas dúvidas e fazer-lhes uma exposição das Escrituras, isto é, que não devo ensinar?.[17]

                Essa tese de Hobbes, além de ser coerente com sua filosofia civil, relaciona-se claramente com uma das doutrinas básicas da Reforma: o sacerdócio universal de todos os crentes.
            É evidente, pois, na argumentação de Hobbes, a supremacia da lei civil, que subordina todo cidadão e toda instituição ao Estado, salvo a soberania de Deus, isto é, o cidadão não é obrigado a obedecer a qualquer lei ou ordem emanada do Estado que se oponha à Palavra de Deus.
            Hobbes reconhece, no entanto, que nenhuma ordem emanada do poder civil que seja contrária à Palavra de Deus, ou que leve o fiel a perder a vida eterna, deve ser obedecida. Ao mesmo tempo, porém, resiste à Igreja quando esta prescreve aos homens mandamentos que sejam contrários à vontade de Deus e à verdade.
            Para ele a revelação, que é sobrenatural, não contradiz a luz da razão natural, e tanto pela razão é possível desobedecer à Igreja, quando ela obriga os homens a negarem a verdade e a confessarem a mentira, quanto pela fé é possível que se desobedeça, quer ao Estado, quer à própria Igreja, quando esta quer se colocar acima  das leis civis, e muito mais que isso, presumindo ser a representante de Cristo na terra, usurpa o poder do Estado e pretende fazê-lo em relação ao próprio Senhor da Igreja, cujo Reino não é deste mundo.
            A própria definição de heresia, para Hobbes, cabe agora ao Estado, que é responsável pela paz civil. Enquanto a Igreja considerava alguns reis como hereges, para o filósofo, porém, quem define o que é uma heresia é o poder civil.
            Ele deixa isso claro ao afirmar:

O direito de julgar quais são as doutrinas favoráveis à paz, que devem ser ensinadas aos súditos, se encontra em todos os Estados inseparavelmente dependente do poder civil soberano, quer ele pertença a um homem ou a uma assembleia.[18]

            Ele também esclarece que um rei convertido ao Evangelho não perde sua soberania, afirmando:

O direito dos reis pagãos não pode ser considerado anulado por sua conversão à fé de Cristo, o qual jamais determinou que os reis, devido a nele acreditarem, fossem desapossados, isto é, sujeitos a alguém que não ele mesmo, ou então (o que é a mesma coisa) fossem privados do poder necessário para a preservação da paz entre seus súditos e para sua defesa contra os inimigos estrangeiros. Portanto, os reis cristãos continuam sendo os supremos pastores de seu povo. [19]

            Ao tratar do problema da heresia o filósofo retoma a questão da soberania, lembrando que o Quarto Concílio de Latrão estabeleceu que se um rei que tivesse sido admoestado pelo Papa, mas se não expurgasse os hereges de seu reino, e se depois disso não prestasse satisfação ao Papa no prazo de um ano, os súditos ficariam “dispensados de obedecer-lhe”. [20]
            Ao que Hobbes acrescenta:

Penso haver poucos príncipes que não considerem isto injusto e inconveniente; mas gostaria que todos eles decidissem se querem ser reis ou súditos. Os homens não podem servir a dois senhores. Devem, portanto, os príncipes aliviá-los, seja tomando completamente em suas mãos as rédeas do governo, seja deixando-as inteiramente nas mãos do Papa; a fim de que os que desejam ser obedientes sejam protegidos em sua obediência. [21]

Também afirma, em relação à essência da soberania civil:

Quando dizemos que um poder está sujeito a outro poder, ou isso significa que quem tem um deles está sujeito a quem tem o outro, ou então que um dos poderes está para o outro como um meio está para um fim. Porque é impossível entender que um poder tenha poder sobre outro poder, ou que um poder possa ter direito de mando sobre outro... Se um rei tiver o poder civil, e o Papa, o poder espiritual, daí não se segue “que o rei seja obrigado a obedecer ao Papa.[22]

É após essa argumentação sobre o caráter da soberania civil que ele ainda afirmará, sobre a heresia:

Não há qualquer juiz da heresia entre os súditos a não ser seu próprio soberano civil. Pois a heresia não é mais do que uma opinião pessoal, obstinadamente mantida, contrária à opinião que a pessoa pública (quer dizer, o representante do Estado) ordenou que fosse ensinada. Pelo que fica manifesto que uma opinião publicamente escolhida para ser ensinada não pode ser heresia, nem o soberano príncipe que a autorizou pode ser um herege. Pois os hereges são apenas os indivíduos particulares que teimosamente defendem uma doutrina proibida por seus legítimos soberanos.[23]

            Isto é, os legítimos soberanos não são os representantes da religião, os quais, mesmo tratando-se do Papa, não exercem autoridade sobre o poder civil, mas podem atuar, no máximo, como seus conselheiros.
            Já no célebre Cap. XXIX do Leviatã, intitulado “Das coisas que enfraquecem ou levam à dissolução de um Estado”, Hobbes declara, citando indiretamente o Evangelho (o que pode ser notado na frase em itálico):

Assim como houve doutores que sustentaram que há três almas no homem, também há aqueles que pensam poder haver mais de uma alma (isto é, mais de um soberano) num Estado e levantam a supremacia contra a soberania, os cânones, contra as leis, e a autoridade espiritual contra a autoridade civil... Ora, dado ser manifesto que o poder civil e o poder do Estado são uma e a mesma coisa, e que a supremacia e o poder e fazer cânones e conceder faculdades implica um Estado, segue-se que onde um é soberano e o outro é supremo, onde um pode fazer leis e o outro pode fazer cânones, tem de haver dois Estados para os mesmos súditos; o que é um reino dividido e que não pode durar... Ora, se houver apenas um reino, ou o civil, que é o poder do Estado, tem de estar subordinado ao espiritual, e então não há nenhuma soberania exceto a espiritual; ou o espiritual tem de estar subordinado ao temporal e então não existe outra supremacia senão a temporal.[24]

                Assim, o mesmo Hobbes que afirma a soberania de Deus sobre todos os potentados, visando à paz civil, coloca os deveres do cidadão do reino mortal, isto é, do reino civil, em primeiro lugar, e os deveres para com o Deus Imortal em segundo lugar. E assim também, torna-se presente no fundo dessa argumentação a superação do estado de natureza e a obediência ao Poder Comum, capaz de colocar a todos em respeito e de garantir a vida e a paz entre os homens. Dessa forma, o Estado também é sagrado, pois preserva o principal bem que o homem tem, que é sua própria vida, assim como as condições de gozá-la em paz, bem ao qual se chegou através da razão natural.
            Hobbes, ao discutir o Reino de Deus, procurava definir, na Commonwealth, quem daria as ordens, quer por escrito, quer oralmente, as quais deveriam ser obedecidas por todos que pretendiam ser protegidos pelas leis.  Como a paz civil é o maior bem, e como as questões relativas ao Reino de Deus exercem grande influência sobre a sociedade, Hobbes reafirmará no Cap. XLV do Leviatã a tese da supremacia do poder civil sobre a religião, afirmando: “As questões de doutrina relativas ao Reino de Deus têm tamanha influência sobre o reino dos homens que só podem ser decididas por quem abaixo de Deus tem o poder soberano”.[25]



[1] Leviatã, Col. Os Pensadores, 2a. ed., 1979, p. 3
[2] Leviatã, op. cit., Cap. XLI, p. 284
[3] Idem (as três citações são da p. 287).
[4] Fp 2:7-8
[5] Gl 4.4.
[6] Mc 1.14-15
[7] Leviatã, op. cit., Cap. XLI, p. 287.
[8] Idem.
[9] Idem.
[10] Leviatã, op. cit., Cap. XLI, p. 287.
[11] Idem.
[12] Leviatã, idem, Cap. XXXI, p. 211.
[13] Idem, ibidem.
[14] Idem, ibidem.
[15] Leviatã, op. cit., Cap. XLVI, p. 394.
[16] Idem, ibidem.
[17] Idem, Cap. XLVI, p. 394-395.
[18] Idem, Cap. XLII, p. 317.
[19] Idem, ibid.
[20] Idem, p. 335
[21] Idem, p.336
[22] Idem, ibidem.
[23] Idem, p. 338.
[24] Idem, Cap. XXIX, p. 196. A parte em itálico, no esforço de Hobbes de convencer o leitor da Bíblia em seu século, encontra-se assim no Evangelho: “Se um reino estiver dividido contra si mesmo, tal reino não pode subsistir” (Mc 3.24).
[25] Leviatã, op. cit., Cap. XLV, p. 381.