terça-feira, 16 de fevereiro de 2010

Críticas à Filosofia Escolástica no Leviatã

Dedico este breve texto ao meu pequeno filho Thomas, que leva o nome do filósofo em sua homenagem, agradecendo a Deus por preservá-lo conosco neste difícil início de 2010. Para a Glória D´Ele!

Neste breve texto procuramos demonstrar como Hobbes antecipa na Parte I do Leviatã sua crítica ao predomínio da Filosofia das Escolas e de qualquer autoridade que pretendesse colocar-se acima dos raciocínios baseados na Ciência, preparando o leitor para a demonstração de sua Filosofia Civil ao longo do Leviatã.

No Cap. I da obra, intitulado Da Sensação, Hobbes afirma que aquilo que era ensinado nas "escolas de Filosofia, em todas as Universidades da Cristandade, baseadas em certos textos de Aristóteles" era contrário não só à verdade, mas poderia ter um papel em relação à obediência civil, pois afirma:

"Não digo isto para criticar o uso das Universidades, mas porque, devendo mais adiante falar em seu papel no Estado, tenho de mostrar, em todas as ocasiões em que isso vier a propósito, que coisas devem nelas ser corrigidas, entre as quais temos de incluir a freqüência do discurso destituído de significado".[1]

Quanto à origem da religião dos gentios, Hobbes afirma que da “ignorância quanto à distinção entre os sonhos, e outras ilusões fortes, e a visão e a sensação, surgiu, no passado, a maior parte da religião dos gentios, os quais adoravam sátiros, faunos, ninfas, e outros semelhantes, e nos nossos dias a opinião que a gente grosseira tem das fadas, fantasmas e gnomos, e do poder das feiticeiras”.[2]

Quanto à feitiçaria, não admitia que nela houvesse “algum poder verdadeiro”, que tal atividade estava “mais próxima de uma nova religião do que de uma arte ou ciência”, e também que as feiticeiras eram justamente punidas, tanto devido à sua falsa crença quanto à sua prática, feita quando podiam.

Disso podemos inferir que Hobbes estava também antecipando ao leitor o que dirá mais adiante: que as doutrinas que não colaborassem para a paz civil deveriam ser proibidas pelo Estado.

Verifica-se aí a importância do esclarecimento em relação à obediência civil, a qual aparecerá de forma clara ao final do parágrafo citado, quando ele afirma: “Se desaparecesse esse temor supersticioso dos espíritos, e com ele os prognósticos tirados dos sonhos, as falsas profecias, e muitas outras coisas dele decorrentes, graças às quais pessoas ambiciosas e astutas abusam da credulidade da gente simples, os homens estariam muito mais bem preparados do que agora para a obediência civil”.[3]

Dessa forma, Hobbes apresenta na própria definição do Homem sua tese principal, a da necessidade da obediência civil para a consecução da paz, o que seria impossível sem o controle do Estado sobre as doutrinas a serem ensinadas, como ele afirmará mais adiante, no cap. XXX, onde tratará das doutrinas que devem ser ensinadas para a preservação da paz civil.

No Cap. II, ao tratar da Imaginação, partindo da afirmação de que "o homem não pode ter um pensamento representando alguma coisa que não esteja sujeita à sensação" e que "nenhum homem, portanto, pode conceber uma coisa qualquer, mas tem de a conceber em algum lugar, e dotada de uma determinada magnitude, e suscetível de ser dividida em partes", Hobbes dirige-se contra os teólogos de seu tempo, criticando o uso que a Religião fazia das visões e da ignorância do povo, considerando o conhecimento escolástico como sonho ou ilusão. [4]

Sobre as fadas e os fantasmas, afirma que a idéia deles foi concebida “com o objetivo ou expresso ou não refutado, de manter o uso do exorcismo, das cruzes, da água benta, e outras tantas invenções de homens religiosos”.[5] Mais adiante o autor ironizaria os padres, afirmando: “As fadas não se casam, mas entre elas há incubi, que copulam com gente de carne e osso. Os padres também não se casam”.[6]

No capítulo citado, a rigor, verifica-se o luteranismo de Thomas Hobbes, já demonstrado em sua obra Liberty, Necessity, and Change, onde, de acordo com Jürgen Overhoff, no diálogo que veio a tornar-se uma polêmica com o Arcebispo Bramhall, ele afirmara:

“The Reformed Churches had been first and foremost instructed by Luther, the first beginner of our deliverance from the servitude of the Romisch Clergy”.[7]

Hobbes estabelecera desde o início de sua reflexão política, já no Do Cidadão, portanto, uma luta contra a servidão das consciências individuais, da sociedade e do poder civil diante da Igreja. E quem conhecia a Bíblia como ele entenderia facilmente sua metáfora: ele referia-se, ao afirmar isso ao Arcebispo Bramhall, à longa servidão e à posterior saída dos filhos de Israel do Egito sob a liderança de Moisés, modelo de um novo libertador, Lutero, complementado por ele, Hobbes, em relação à autonomia do poder civil diante de qualquer instituição.

Por isso, ao final do Leviatã ele poderá dizer, ainda diante das ameaças do poder eclesiástico:
“A verdade que não se opõe aos interesses ou aos prazeres de ninguém é bem recebida por todos”.[8]

Hobbes tratará da Linguagem no Cap. IV do Leviatã. O filósofo, após referir-se à narrativa sobre Babel, de acordo com a qual houve uma confusão de Línguas e uma impossibilidade de comunicação e de consecução da obra proposta pelos homens passa a considerar a Linguagem, antes um dom de Deus, agora como uma criação humana.

A seguir, então, argumenta contra a Linguagem das Escolas, na qual estão presentes conceitos insignificantes, tais como: “entidade, intencionalidade, qüididade” e outros.[9] Hobbes observa que os nomes ditos universais designam, na realidade, coisas particulares: “... homem, cavalo, árvore, cada um dos quais, apesar de ser um só nome, é, contudo o nome de várias coisas particulares, em relação às quais em conjunto se denominam um universal, nada havendo no mundo universal além de nomes, pois as coisas nomeadas são, cada uma delas, individuais e singulares”.[10] E conclui a distinção conceitual afirmando que “enquanto o nome próprio traz ao espírito uma coisa apenas, os universais recordam qualquer dessas muitas coisas”.[11]

Em sua crítica dos conceitos universais é relevante o recurso à Geometria. Ele afirma que “... a conseqüência descoberta num caso particular passa a ser registrada e recordada, como uma regra universal... e faz que aquilo que se descobriu ser verdade aqui e agora seja verdade em todos os tempos e lugares”.[12]

A Geometria, portanto, é a ciência dos universais e o discurso que se utiliza das conseqüências de forma correta, pois nela começa-se pelas definições, colocadas no início dos cálculos. Aquilo que é descoberto geometricamente, aqui e agora, é verdade em todos os tempos. É nesse contexto conceitual que Hobbes afirma da Geometria “que é a única ciência que prouve a Deus conceder à humanidade”.[13]

E a análise das definições, partindo da Geometria, vai para a crítica da leitura daqueles que simplesmente avaliam as palavras “pela autoridade de um Aristóteles, de um Cícero, ou de um Tomás, ou de qualquer outro doutor que nada mais é do que um homem”. [14]

Para Hobbes, os maus raciocínios e a má leitura podem fazer com que as palavras, de “calculadores dos sábios”, se tornem “a moeda dos loucos”, quando aceitas sob o argumento da autoridade. Dessa forma, Hobbes vai minando a Escolástica e qualquer tradição de autoridade, seja filosófica ou religiosa, mas principalmente esta, desde o início de sua obra, preparando o espírito do leitor para que concorde com o argumento principal de sua obra, longamente sedimentado: o da soberania do Estado sobre a Igreja.

Continuando sua crítica às Escolas, classifica os nomes em positivos e negativos. Dos positivos fazem parte quatro grupos gerais, quais sejam: matéria ou corpo; acidente ou qualidade; propriedades dos nossos corpos pelas quais “estabelecemos distinções”; consideração dos próprios nomes e discursos.[15]

Em relação aos nomes negativos, afirma que eles indicam que “uma palavra não é o nome da coisa em questão” e que “todos os outros nomes nada mais são do que sons insignificantes, e estes são de duas espécies”. A primeira espécie consiste nos nomes novos, “cujo sentido ainda não foi explicado por uma definição”, observando que “desta espécie existem muitos, inventados pelos homens das Escolas e pelos filósofos confusos”.[16]

Depois, na mesma linha de raciocínio, acrescenta a segunda espécie: a dos nomes que são compostos por dois nomes, por exemplo: “corpo incorpóreo”, expressão que seria o mesmo que afirmar “quadrângulo redondo”.[17]

Verifica-se nas críticas às duas espécies a Geometria como modelo, devido à sua exigência quanto à precisão das definições. De acordo com Bobbio, “o verdadeiro fundador das ciências morais foi Hobbes”, devido à aplicação de um novo método, com base na Geometria, à análise da vida moral e política.[18]

Ele afirma que para Hobbes a desordem da vida social de sua época era devida a um problema de método e de interpretação, e estava vinculada a doutrinas falsas de escritores antigos e modernos, bem como ao sectarismo dos maus teólogos. Hobbes comparava a concórdia do campo da Matemática “com o reino da discórdia sem trégua em que se agitavam as opiniões dos teólogos, dos juristas e dos escritores políticos”. [19]

Assim, ainda de acordo com Bobbio, para Hobbes os males da humanidade seriam eliminados se fossem conhecidos em suas causas com a mesma certeza das “grandezas das figuras”. As leis de natureza, dessa forma, portanto, “sobre o que se deve fazer ou deixar de fazer”, são deduzidas da razão. [20] Assim, como a discórdia na sociedade civil tinha como uma de suas causas a discórdia dos teólogos, ele pretendia aplicar à moral e à política a mesma precisão da Geometria, tendo nessa ciência um modelo para a ciência política, da qual ele se considera o fundador, e para o alcance do maior bem da vida civil: a concórdia, isto é, a paz.

Notas:
[1] HOBBES. Leviatã ou Matéria, Forma e Poder de um Estado Eclesiástico e Civil. Trad. de João P. Monteiro e Maria B. N. da Silva. 2. ed. S. Paulo: Abril, 1979. Os Pensadores.
[2] Idem, p. 18.
[3] Idem. Para uma descrição detalhada de como essas escolas interpretavam a visão, a audição e o entendimento, e como Hobbes o fazia, ver p. 13 e 14.
[4] Idem, p. 23. Certamente ele está tratando de uma tese própria do empirismo, contrária também ao idealismo de René Descartes.
[5] Idem, p.18.
[6] Leviatã, Cap. CXLVII: Do benefício resultante de tais trevas, e a quem aproveita, p. 406. O termo incubus é assim definido no dictionary.reference.com: “An imaginary demon or evil spirit supposed to descend upon sleeping persons, esp. one fabled to have sexual intercourse with women during their sleep.” ´Por outro lado, succubus significa: “A demon in female form, said to have sexual intercourse with men in their sleep”. (Consulta realizada em 05-01-2010)
[7] Jürgen OVERHOFF, “The Luteranism of Thomas Hobbes”, in: History of Political Thought, XVIII, 4, p. 610. Thorverton, UK, 1997. O texto nos foi enviado pelo autor, gentilmente.
[8] HOBBES, Leviatã, op. cit., Revisão e Conclusão, p. 410.
[9] Leviatã, Cap. IV, p. 24
[10] Idem, p. 25.
[11] Idem, ibidem.
[12] Idem, p. 26.
[13] Idem, p. 27.
[14] Idem, p. 28.
[15] Idem, p. 28.
[16] Idem, p. 29 (todas as citações do parágrafo).
[17] Idem, ibidem.
[18] Norberto Bobbio, Sociedade e Estado na Filosofia Política Moderna, p. 19s.
[19] Idem, p. 20
[20] Idem, ibidem.