sexta-feira, 25 de setembro de 2009

O que diz respeito à Religião e o que diz respeito à Soberania no pensamento de Hobbes

Prof. Drndo. Isaar Soares de Carvalho – Para a Glória de Deus! – Setembro 2009

Hobbes afirma que, “excetuando apenas este artigo, Jesus é o Cristo, que é o único necessário para a salvação no que se refere à fé interna - todos os demais artigos de fé pertencem à obediência”. (De Cive, Martins Fontes, 1992, Trad. e Introdução de Renato Janine Ribeiro, Parte III, cap. XVIII, 14, p. 377).

Nesse aspecto Hobbes afirma que grande parte dos dogmas dizia respeito não à entrada no reino dos céus, mas a disputas pela “soberania humana”, ao “ganho e ao lucro” e à “glória de espíritos engenhosos”. (Idem)

Dessa forma, Hobbes reduz as questões de obediência ao desejo de acreditar, não à fé interna; ao indivíduo bastava fazer apenas uma profissão externa de uma crença em tudo o que fosse proposto pela Igreja. Isso significa que o cidadão não precisava acreditar internamente em todos os dogmas da Igreja, mas, se o quisesse, poderia afirmar aceitá-los publicamente, sem necessariamente neles crer.
Hobbes afirma ainda que “a discussão sobre a propriedade da Igreja é uma discussão sobre o direito de soberania”. (Idem).

Sobre a pretensão papal a respeito da infalibilidade, Hobbes afirma que alguém que não errasse teria “assegurado um domínio pelo sobre o gênero humano nos planos tanto temporal quanto espiritual”. (Idem, p. 378). Portanto, esse dogma era de caráter político. Na mesma linha, argumentando a respeito do privilégio da Igreja de interpretar as Escrituras, Hobbes afirma que dele decorreria “autoridade simples e absoluta para por termo a toda espécie de controvérsia”. (Idem, p. 378) E, por conseguinte, quem tivesse esse privilégio teria não só o poder sobre todos que a reconhecessem como Palavra de Deus, mas também poder para perdoar, reter pecados e excomungar, para instituir sociedades religiosas, às quais os monges obedeceriam, mesmo estando num Estado inimigo, o que levaria ao conceito de um Estado dentro do Estado, poder de julgar sobre a validade de um matrimônio e, por conseqüência, sobre a “herança e sucessão de todos os bens e direitos”, tanto de particulares quanto de príncipes e soberanos. (Idem, p. 378).

Em relação ao celibato, também era uma forma de controle, pois, por um lado, “os solteiros são menos compatíveis com a vida civil do que os casados”, e por outro lado, como o sacerdócio exige o celibato, os príncipes deveriam abrir mão, por causa dele, ou do sacerdócio, ou do principado hereditário. (Idem, p. 378).

Quanto à canonização dos santos também era uma forma de controle, e herdada do paganismo, pois no império romano costumavam-se considerar deuses os ex-imperadores, o que depois passou a ser feito em sua própria vida, numa forma de honra e prestígio político, e a igreja fez o mesmo, porém de forma ainda mais perjura, pois tomou o nome de Deus em vão, por questões meramente humanas, e assim, o humano foi divinizado.

No Cap. XII do De Cive, intitulado “Das causas internas que tendem à dissolução dos governos”, Hobbes argumenta, com base no princípio de que antes de haver o poder soberano não havia ordens a obedecer e que, portanto, não havia justiça ou injustiça, que os particulares não podem julgar sobre o que é justo ou injusto, pois ao reivindicarem o conhecimento do bem e do mal, “desejam igualar-se aos reis, o que não é compatível com a segurança da república”. (De Cive, Cap. XII, p. 204). Para justificar seu argumento com base nas Escrituras, cita o texto de I Reis que fala da oração de Salomão, no qual o jovem rei assim pede a Deus: “... um coração entendido para julgar o teu povo, para que prudentemente possa discernir ente o bem e o mal”. (Idem).

Diante da ameaça de sedição representada pela Igreja, quer por suas interferências no poder civil, quer por seu controle da mentalidade dos fiéis, chegando a hierarquia eclesiástica, a pretender controlar o mundo, Hobbes afirma que “o legislador sempre é aquela pessoa que detém o poder supremo na república, isto é, numa monarquia o monarca”. (Idem). Ele argumenta com base no pacto recíproco entre os homens que instituíram o governo e conclui que “os reis legítimos assim tornam justas as coisas que eles ordenam, só com ordená-las, e injustas as que eles proíbem, por só proibi-las”. (Idem).

Visando a preservação do direito de legislar, Hobbes chega mesmo a comparar o soberano a Deus, citando a desobediência de Adão e Eva ao comerem da árvore da ciência do bem e do mal. (Idem) Para ele essa proibição constituiu-se no mais antigo dos mandamentos. Em sua metáfora, ter ciência do bem e do mal era atribuição de Deus. Da mesma forma, ter a ciência do justo e do injusto é próprio do soberano civil. O soberano, assim será esse deus mortal, conceito que já aparece, portanto, no De Cive, mas que será exposto nessa acepção no Leviathan.

Porém, Hobbes parece exagerar em seu uso do texto bíblico em relação ao caráter absoluto da soberania, quando, argumentando a respeito da necessidade da obediência do povo ao poder civil, independentemente da forma de governo, seja uma aristocracia, uma democracia ou uma monarquia, afirma que os reis são deuses, donde podemos inferir que ele afirma que desobedecer ao poder civil, em qualquer das formas citadas, é o mesmo que quebrar o primeiro mandamento civil:

“Este desejo de mudar é como a quebra do primeiro dos mandamentos de Deus, pois aí Deus diz: Non habeis Deos alienos. Não terás os deuses das outras nações; em outro texto referente aos reis, que eles são deuses”. (Leviathan, cap. XXX, p. 202).

Contudo, considerando os argumentos já expostos sobre a preservação da paz civil e da vida, apesar do exagero do argumento, observando-se o Cap. XIII do De Cive, intitulado “Dos deveres de quem governa”, bem como o Cap. XXX do Leviathan, “Da missão do soberano representante”, poderíamos afirmar que o argumento de Hobbes tem uma finalidade pedagógica. E como Hobbes afirma que um Estado não deverá ser obedecido se não for capaz de proteger os súditos e que “a representação morre, quando o representante fere o representado”, mais uma vez se confirma que o estado é um deus mortal, isto é, é soberano, mas falível.

– Mas haveria mesmo um deus mortal? – Não é isso uma metáfora sobre a soberania e sua falibilidade? Só pode ser, pois pensador tão rigoroso não cometeria tal pecado contra o princípio de não contradição, pois, se é deus, não é mortal, e se é mortal, então não é deus. Daí decorreria, facilmente, sua afirmação de que deve ser obedecida a espada que garantir a paz civil e que, portanto, contra esse soberano chamado de deus pode haver desobediência e rebelião.

Assim, Hobbes afirma a necessidade de um Estado suficientemente forte para garantir a paz civil, o qual deverá ser obedecido para que esta se efetive, porém, perdendo essa capacidade, fica o cidadão livre para obedecer à espada de quem lhe der tal proteção.

Porém, associar Hobbes diretamente à causa monárquica é incorreto, visto que tanto no De Cive quanto no Leviathan ele insiste em usar o termo soberano civil em relação tanto à monarquia, quanto à aristocracia e à democracia, afirmando no Leviathan:

“A prosperidade de um povo governado por uma assembléia aristocrática ou democrática não vem nem da aristocracia nem da democracia, mas da obediência e concórdia dos súditos; assim como também o povo não floresce numa monarquia porque um homem tem o direito de governá-lo, mas porque ele lhe obedece. Retirem seja de que Estado for a obediência (e conseqüentemente a concórdia do povo) e ele não só não florescerá, como a curto prazo será dissolvido”. (Leviathan, cap. XXX, p. 202).

Da mesma forma, associá-lo diretamente ao absolutismo também é indevido. Os leitores parisienses de Hobbes viram, no Leviatã, “a defesa do regicídio” e “em 1683 a Igreja Anglicana manda queimar uma série de obras subversivas... O Leviatã está entre elas por defender, justamente, a submissão ao usurpador bem-sucedido”. (Renato Janine Ribeiro, “Introdução” ao De Cive, p. XXVII, nota 12).

Assim, ainda de acordo com Janine, no De Cive “é um realista quem fala”, ao passo que no Leviathan “será alguém que já se conformou à nova ordem”. Dessa forma, a obra de Hobbes é claramente vinculada à sua carreira e à sua vida. (Idem, p. XXVI, XXVII).
Porém, Janine ainda observa que Quentin Skinner desenvolveu “a tese de que o Leviathan é uma obra representativa da posição dos realistas conformados com a vitória de Cromwell..., de qualquer modo dispostos a serem súditos leais da República”. (Idem, p. XXVII)

Concluindo estas considerações, que se iniciaram em relação à afirmação de Hobbes de que os reis são deuses, cito o início do cap. XXXI do Leviathan, onde ele irá deduzir o caráter absoluto da soberania do estado de natureza e da necessidade de preservação da vida:

“Que a condição de simples natureza, isto é, de absoluta liberdade, como é a daqueles que não são nem súditos nem soberanos, é anarquia e condição de guerra; que os preceitos pelos quais os homens são levados a evitar tal condição, são as leis da natureza; que um Estado sem poder soberano não passa de uma palavra sem substância e não pode permanecer; que os súditos devem aos soberanos simples obediência em todas as coisas, de onde se segue que sua obediência não é incompatível com a lei de Deus, provei suficientemente naquilo que já escrevi”. (Leviathan, Cap. XXXI, p. 211).